terça-feira, 27 de julho de 2010

O ENSINAMENTO ZEN

(13) Baseado em ‘A DOUTRINA SUPREMA’, de Hubert Benoit.


(Jan 2008)



Estudo sobre o Zen, com instruções para se chegar à iluminação que, nas palavras de Buda: ‘é a cessação de todo sofrimento’. Ensina Morrer a cada instante, o exercício interior de, a cada instante, abandonar o filme emotivo-imaginativo, das emoções e imaginações que, o tempo todo, roda em nosso pensamento e penetrar em nosso interior para sentir ‘como estamos, psicossomaticamente’ (Krishnamurti, Benoit e outros).

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“O ser humano normal é aquele que está livre do sofrimento”. (Somos ainda sub-humanos, afirmou Mahresh Mahrish Yogi; ensina Krishnamurti: ‘a vida só tem sentido quando o homem se ilumina’).

Toda a questão para a libertação do ser humano se resume em transpor o abismo que separa a ‘verdade aceita por todos’ da verdade real, não conhecida pela grande maioria dos seres humanos. Muitos, se a conhecem, não a aceitam devido aos condicionamentos, preconceitos, cultura, sociedade, crenças, ilusões, opiniões, interpretações equivocadas. Para o ocidental, isso é muito difícil de compreender, em face de sua cultura dualista, e ele tem de superar muitas dificuldades e caminhar bem devagar para entender. Para as tradições orientais, a visão desse problema é totalmente diferente.

O Zen diz: ‘O homem nada tem de complicado a fazer; é suficiente que ele veja, diretamente, em sua própria natureza’. E o Zen não dá qualquer importância à teoria que estuda a Realidade; só lhe é importante a prática da meditação que o pode levar à percepção dessa Realidade.

Há só uma Realidade; ela produz toda manifestação, todas as coisas físicas ou não, e é ilimitada, eterna e inexprimível. Mas há uma variedade indefinida de verdades, aspectos corretamente interpretados pelos nossos sentidos, que são efeitos da Realidade, e exprimíveis no plano intelectual humano. No atemporal, nível do absoluto, tudo é Um só; no espaço-tempo, nível do relativo, há toda a diversidade de seres e eventos.

É absurdo alguém reivindicar a paternidade de qualquer idéia. O homem não cria coisa alguma (Paulo: ‘é o senhor que opera em nós o pensar, o querer e o fazer). Tudo se molda, ou se revela através de seu intelecto. Se conseguirmos que nossa mente fique limpa das idéias preconcebidas, condicionadas, ela será capaz de criar. Mediante impulsos intuitivos, ela estabelecerá relações cada vez mais ricas de sentido entre os conceitos que já adquiriram ressonância em nossa mente e o plano do absoluto (também R.M.Bucke).

As escolas que ensinam que sofremos porque não dominamos nossos impulsos, ou não nos desapegamos dos desejos, estão equivocadas pois, para o Zen, isso leva a um ou outro apego, dando a ilusão que estamos no caminho correto. Como não vamos bem num caminho, adotamos um outro e presumimos que tudo irá bem agora. Mas, nada vai mal em nós; sofremos porque não compreendemos que tudo é como deve ser, e por acreditar que é preciso fazer algo para corrigir aquilo que, achamos, não está bem. Daí a crença na necessidade de que devemos nos modificar, que devemos ser virtuosos para nos salvarmos.

O problema está em que, ainda, não temos compreensão, ou ‘percepção’, da Realidade. Ela está adormecida dentro de nós; só não está adormecida a crença naquilo que nossos sentidos percebem no mundo das formas. Tudo parece ir mal porque a visão de que tudo já é perfeito, eterno e totalmente positivo, está ‘oculta’ no centro de nosso ser. Daí vem toda a sucessão de eventos, imagens, pensamentos, crenças, totalmente distorcidos pela nossa interpretação, que causa nossos erros e ilusões, e que nenhuma terapêutica pode ser capaz de resolver se não conseguirmos destruir essas ilusões.

Para o Zen, você nada tem que fazer para se libertar; você nunca sofreu qualquer sujeição e nada existe que esteja aprisionando você. Tudo se organizará de modo espontâneo e harmonioso, para sua percepção, exatamente quando você deixar de tentar fazer qualquer coisa para se libertar, e trabalhar somente para despertar sua compreensão adormecida de que sempre esteve liberto. Essa é toda a pureza do ‘não agir’. Não existe qualquer caminho para a libertação; isso é evidente, já que nunca estivemos submetidos a nada e continuamos a não estar. O que temos de fazer é somente compreender a enganosa ilusão de todos os ‘caminhos’. Quando se obtém a clara compreensão de que tudo que se fizer para a libertação é inútil e desnecessário, quando se superar a idéia de todos os caminhos imagináveis, virá o ‘satori’, visão real de que não há caminho, de que não é preciso ir a lugar algum pois, desde toda a eternidade, estamos no centro único e fundamental de tudo. Assim, aquilo a que se dá o nome de ‘libertação’ é a cessação da ilusão da sujeição, e virá após certo trabalho interior, não causada por ele, mas pela Causa Primária, o absoluto. O segredo é este: não há caminhos, não há lugar aonde ir, pois já estamos lá.

Para o Zen, a construção não é superior à destruição (a criação implica tanto destruição quanto construção), a afirmação não é superior à negação, nem o prazer à dor, o amor ao ódio, a vida à morte, o belo ao feio. São fenômenos opostos, mas perfeitamente iguais e complementares. Há, é evidente, preferência dos seres vivos por aquilo que dá prazer. Isso resulta logicamente do desejo de existir, que está no homem e nos demais seres. Na visão do místico, o homem realizado, isto é, liberto do determinismo irracional, e que vive identificado com o Princípio da ordem cósmica, livre da necessidade ilusória de existir e da decorrente preferência pela vida em detrimento da morte, esse homem produz ações boas e construtivas e não más e destrutivas. Mas, não significa que ele seja bom e construtivo, pois já superou esses sentimentos dualistas próprios do homem comum.

O homem percebe, fora de si, fenômenos construtivos e destrutivos, positivos e negativos. Pelo desejo de existir, ele prefere necessariamente construção e não destruição. A preferência afetiva torna-se parcialidade intelectual, e ele passa a acreditar que o aspecto positivo do mundo é o bem, o único legítimo, e que deve eliminar, na medida do possível, o aspecto negativo, que é o mal. Daí decorre a ‘saudade’ de um ‘paraíso’ perdido, considerado livre de todo aspecto negativo. Nesse estágio de raciocínio imperfeito, o homem imagina a existência de dois princípios inferiores (opostos), mas não a do Princípio Superior, cósmico, universal e absoluto, que os concilia. Para ele, os impulsos construtivos, que vê dentro de si mesmo, são positivos, qualidades, virtudes, o bem; e os destrutivos, são negativos, defeitos, o mal. Do mesmo modo que imaginou um paraíso, imagina que o positivo precisa dominar o negativo; que a evolução consiste em eliminar todos os ‘defeitos’ e possuir apenas ‘virtudes’. Pensa que foi isso que o chamado ‘santo’ fez, o homem no qual existem apenas impulsos construtivos, e procura, a todo custo, imitá-lo. No entanto, uma evolução desse tipo não é compatível com a realização intemporal que exige a síntese (união) conciliadora dos opostos, na qual haverá equilíbrio perfeito entre impulsos negativos e positivos.

Ignorando a existência do Princípio Cósmico Único, o homem confere aos princípios inferiores uma natureza absoluta e passa a idolatrá-los. O positivo, o bem torna-se Deus e, o negativo, o mal ou as forças que o produzem, criação inexplicável para cientistas e filósofos que não conseguem conciliar Deus, o misericordioso criador de todas as coisas, com a figura do mal, que é tido, pelas religiões populares, como o inimigo invencível do Criador e dos homens. Se o mal existe, é criação de Deus e implica em que Deus necessita dele, senão não o teria criado ou, então, que não é misericordioso ou não tem forças para destruí-lo, coisas incompreensíveis.

Sem conhecimento de um Princípio Superior Conciliador dos opostos, essa visão dualista Deus-‘Diabo’, ‘bem-mal’, é uma conclusão lógica natural para a mente que não teve uma iniciação mística. Mas essa é uma conclusão incompleta e, assim, ilusória.

Segundo o Zen, os dois princípios inferiores, iguais ‘numenicamente’ (no atemporal), são desiguais ‘fenomenicamente’ (no espaço-tempo), sendo o positivo superior ao negativo, do nosso ponto de vista. Contudo, se a força que move a mão da irmã de caridade é rigorosamente igual à força que move a mão do assassino, a ajuda aos necessitados, ajuda que serve à vida, tem inegável superioridade sobre o ato de matar, que é contra a vida; mas esses dois atos, encarados do ponto de vista cósmico, são iguais, pois não passam de representantes simbólicos das forças positiva e negativa, que são iguais e complementares.

Assim, todo fenômeno construtivo manifesta o jogo da força ativa (ação), e todo fenômeno destrutivo manifesta a força passiva (reação). Eis porque o homem realizado é tão construtivo: ele se libertou das respostas condicionadas apenas reativas, e não mais ‘reage’ simplesmente’, mas, por ser ativo, ele ‘age’.

O comportamento destrutivo do homem ‘mau’ parece resultar de uma força destrutiva ‘ativa’. Mas, o que ocorre é que ele, de início, age para afirmar-se (construção) mas, em virtude de ignorância e de associações equivocadas, essa ação resulta em destruição (reação).

O homem realizado faz o ‘bem’ como mera conseqüência de ser realizado; ele já aboliu toda crença na primazia ilusória do principio inferior positivo, o ‘bem’. Sua conduta não é a do homem que se ‘domesticou’ para ser um ‘santo’; o comportamento deste, fixado, imitativo, sistematizado, pode acabar causando mais destruição do que construção. A conduta do homem realizado, ao contrário, gera mais construção do que destruição, sem que isso seja, em absoluto, uma meta para ele, pois decorre de sua realização e sua atividade se ajusta, de maneira totalmente adequada (ação correta) às circunstâncias. Em resumo, a ética verdadeira é resultado da percepção da Realidade intemporal. Antes disso, toda ética é prematura (forçada, imitação, falsa) e obstáculo (por exigir esforço, força de vontade), pelas restrições que estabelece (o eu está ativo, envolvido num esforço de vir a ter virtudes, ética), à obtenção do satori (iluminação) e de sua ética perfeita. A ética prematura é obstáculo ao satori porque provoca destruição da energia psíquica necessária à sua obtenção, já que exige, daquele que não é virtuoso, esforço para agir como se o fosse.

Isso não significa que o homem que se dedica à sua libertação deva anular sua preferência afetiva pelo ‘bem’ (deve abandonar toda e qualquer preferência) Ele deve aceitar essa preferência com a mesma compreensão e neutralidade com que deve aceitar toda sua vida interior; ele não deve transformar, essa preferência afetiva, numa parcialidade intelectual que seria obstáculo ao estabelecimento de sua paz interior. Não estamos condenando as doutrinas ‘espiritualistas’ que exaltam a virtude, porém o homem deve pensar e agir como considera que deve fazê-lo. Dizemos, apenas, que essas doutrinas, por si mesmas, não levam à obtenção do satori (devido à imposição de mandamentos e regras). Se deseja o satori, o homem deve buscar transcender, pela compreensão, toda doutrina que ensina qualquer parcialidade entre positivo e negativo (entre certo e errado). (Não esqueçamos que antes do satori, toda virtude é prematura e, por isso, forçada, não passando de imitação ou de obediência imposta pela sociedade e pelas religiões). (só não é prematura quando advém da experiência máxima).

O Zen afirma: ‘O caminho perfeito não oferece nenhuma dificuldade, exceto a de recusar toda preferência... (mesmo a preferência ao bem ou ao mal). A mínima preferência pode fazer céu e terra se separarem’ (nos traz de volta ao plano da dualidade ilusória).

As religiões afirmam que o homem deve lutar pela sua salvação, verdadeira contradição pois, então, o homem estaria sujeito (preso) ao dever de ser livre. E todos acreditam nisso que as religiões ensinam tanto que, em geral, o homem treme ante a possibilidade de morrer sem haver atingido a perfeição moral. Vê-se que o homem não pensou que um dever é sempre imposto por uma autoridade. Os religiosos dirão que essa autoridade é ‘Deus’. Mas, quem é esse Deus que, ao me impor algo, é distinto de mim e necessita de minha ação? Não foi ele que me criou como eu sou, sujeito a errar inúmeras vezes, mais inclinado ao mal que ao bem (como diz Teresa de Ávila)?

Assim, a angústia e a atenção do homem se concentram na questão da salvação, erro que lhe traz inquietude, sentimento de indignidade, cuidado egoísta sobre si mesmo, coisas que são obstáculos à sua paz mental, à harmonização interior, ao desapego ao próprio ego, enfim, que impedem o estabelecimento do clima interior de tranqüilidade que condiciona a obtenção do satori. Essas religiões negam qualquer valor ao temporal e se concentram em obter a felicidade após a morte, engano que, fatalmente, implica na necessidade de ensinar os outros, pois, se acredito que tenho de promover minha salvação, não posso deixar de crer que tenho de levar os outros a promoverem a sua. Na pior das hipóteses, isso gera algo como a Inquisição; na melhor, gera o nascimento de inúmeras ‘religiões’ e igrejas que, como mostra a história, se dedicaram a influenciar e a confundir a mente de homens que não as questionavam e não lhes pediam nada.

Ao contrário, o Zen afirma que o homem já é livre, que não existe nenhum grilhão a que esteja submetido; somente ilusões de grilhões. E que ele gozará de total liberdade a partir do momento em que deixar de crer que precisa libertar-se, tirando das costas o terrível dever da salvação.

Por isso, o Zen diz: ‘Não ponha nenhuma cabeça acima da sua. Não busque a verdade; pare, apenas, de apegar-se a opiniões suas ou de outrem’ (como, também, ensina Krishnamurti).

Perguntarão alguns: Se é assim, porque se esforçar para obter o satori? A resposta é: porque o satori representa o fim de todos os sofrimentos do homem. A vida, depois, será muitíssimo melhor. Não é inteligente lutar por uma vida sem sofrimentos e conflitos, de compreensão total?

O homem, que compreendeu que sua realização não é um dever, se limita a responder quando interrogado e, se toma a iniciativa de falar, ele o faz apenas para propor com discrição essas idéias, sem mostrar nenhuma necessidade de ser bem compreendido. É semelhante àquele que, sobrando alimentos em sua casa, deixa a porta aberta para que aqueles que têm fome se sirvam; se alguém entra e se serve, tudo bem; se não entra e não se serve, tudo bem também.

O homem dá muita importância ao viver e despreza o existir; imagina o existir como nada, e o viver como tudo. Na realidade, existir é que é tudo. Vejamos: minhas ações que têm por objetivo servir minha vida natural, animal, vegetativa (comer, repousar, ter relações sexuais por puro desejo animal etc.) elas me afirmam (ou seja, mantêm a minha criação) enquanto organismo em tudo semelhante ao organismo de todos os demais animais, enquanto vivo do ponto de vista cósmico, enquanto engrenagem universal. Mas, todos os dias, ao lado dessas ações, realizo outras que não servem à minha vida vegetativa e nada têm a ver com ela; amiúde até a contrariam. O objetivo destas é me tornarem diferente (sempre para melhor) de qualquer outro homem, isto é, é me afirmarem como indivíduo diferente dos demais, egoisticamente. No entanto, considero vazias de sentido minha vida vegetativa e todas as ações pelas quais sirvo a essa vida (a isto que constitui, aos meus olhos, o existir desprezível), e considero cheias de sentido as ações que me diferenciam dos demais (pois constituem para mim o viver desejável e valioso). Não vejo importância em mim enquanto um eu universal, mas a vejo enquanto sou um eu particular. Por isso, fundar o sentido de minha vida nos meus fenômenos vegetativos e nas ações a eles relacionadas, é considerado absurdo; enquanto que, fundá-lo nas ações que me tornam homem distinto dos demais (melhor, mais forte, belo, poderoso, inteligente, rico, respeitado, sedutor etc.) é considerado sensato.

É evidente, para quem reflete de modo imparcial, que essa visão está errada. Ela supõe que meu organismo particular seja o centro do universo; mas, apenas a Causa Primária é esse centro, e meu organismo nada mais é que simples elo na imensa cadeia de causas e efeitos cósmicos (na qual todos os seres e eventos estão interligados e são interdependentes). Na verdade, só poderei ver o sentido real de meu organismo ao considerá-lo do ponto de vista do universo, enquanto homem universal e não particular; enquanto semelhante a qualquer outro e não enquanto distinto dos demais.

O homem realiza o existir mas, segundo ele, apenas porque o existir é condição necessária ao viver; assim, ele come, repousa, se abriga, somente porque, sem isso, não poderia afirmar-se, egoisticamente, como homem distinto. Ele só faz essas ações banais, comuns a todos, para ter forças e condições de executar as ações necessárias, segundo pensa, para o viver; ele age como quem acredita que só existe para viver. E, fundando o existir no viver, contraria a ordem real das coisas, pois funda o real no ilusório.

Parábola Zen: ‘Um homem estava sobre a colina. Três viajantes, de longe, viram-no e imaginavam o que ele estaria fazendo ali. Um disse: ‘Ele deve ter perdido seu cavalo. ’ O outro: ‘Não, ele deve estar procurando seu amigo.’ E o terceiro: ‘Ele está lá em cima para gozar do ar fresco.’ Como não chegassem a um acordo, foram até o alto da colina. Um perguntou: ‘Porque estás aqui nesta colina? Perdeste teu animal?’ ‘Não, não o perdi. ’ O outro: ‘Perdeste teu amigo?’ ‘Não, não o perdi. ’ E o terceiro: ‘Então estás aqui para gozar do ar fresco?’ ‘Não, não estou. ’ ‘Porque então estás aqui se respondes ‘não’ a todas nossas perguntas?’ O homem que estava sobre a colina respondeu: ‘Estou aqui, simplesmente’. (Esse ‘estou aqui, simplesmente’ envolve toda a filosofia zen; para o zen, não há objetivos, mas possibilidades de objetivos: se acontecer, tudo bem; se não acontecer, tudo bem, também; mas, o profano julga absurdo estar fazendo alguma coisa sem objetivo, ‘estar aqui, simplesmente’).

Para o ser humano comum, em particular o ocidental, ‘simplesmente estar ali’ não tem qualquer sentido, já que ele não faz nada lá, isto é, já que não busca ali nenhuma afirmação egotista, que é o motivo pelo qual, em geral, todos nós agimos. O homem procura sempre ‘agir’ egoisticamente, para se firmar como homem-distinto, desprezando o existir e buscando, a todo custo, o viver. Contudo, para encontrar paz interior, o homem deve reconsiderar tudo isso, perceber o vazio de todas as suas opiniões (crenças, suposições), de seus juízos de valor e, assim, libertar-se do fascínio da afirmação egoísta (do ego), do vazio do viver e dar-se conta da realidade do existir universal. Ele é a ‘fonte fundamental’ quando, através do seu organismo total, mente-soma, aceita ser apenas o que é: um fenômeno, emanação passageira dessa fonte, destituída de qualquer interesse especial e cujo destino, como indivíduo, não tem a menor importância (como Krishnamurti: a morte do homem não tem qualquer significado).

Todas as funções do organismo trabalham para a manutenção da existência do organismo. Todo o viver converge para a ação; a máquina humana foi feita para agir. Isto é, o organismo procura, através da ação, manter sua existência. Suas ações, voluntárias e involuntárias, servem para manter o organismo funcionando, servem para o existir; o homem age para obter alimento, moradia, abrigo, vestuário etc. Percebida a ilusória utilização das ações do homem para sua afirmação egotista como-ser-distinto, vê-se que suas ações, para as quais se dirigem toda energia e arquitetura de seu organismo, só servem para evitar a cessação de sua existência, evitar a morte. Há outras ações que têm a mesma utilidade, mas de forma menos evidente. São aquelas que diferenciam o homem dos outros animais: descobertas científicas, criações artísticas, busca intelectual da verdade, do bem, do belo. Ao tenderem para a melhoria de suas condições, o bom, o belo, o verdadeiro, servem também ao existir, já que o homem deles obtém o abrandamento de suas inquietações, a quietude harmoniosa de seu organismo. Em resumo, o organismo, tende, através da ação, a continuar sua existência. Todas as ações do organismo só objetivam essa continuidade. O viver, ao lado do qual o existir parecia nada, não tende senão ao serviço desse mesmo existir.

A ação emana da existência e serve a ela. Mas, isso quer dizer que a existência não tem nenhum objetivo, a não ser ela mesma? (Aqui é feita abstração da utilidade cósmica da existência, utilidade de que o homem comum não tem qualquer consciência; mas, os iluminados têm).

Concebida, assim, como causa primeira de meu organismo, a minha existência transcende a totalidade dos meus fenômenos, isto é, independe completamente da continuação ou da morte do meu organismo (minha existência não é afetada pela morte do meu organismo). Assim, a morte não tem nenhum significado (essa é a afirmação dos místicos). Isso permite compreender que o medo da morte, que reside no homem e forma o centro de toda sua psicologia, se relaciona com o absurdo desprezo que esse homem tem ao seu existir. Teme perder a existência porque, com relação ao agir, ao viver, considera nulo o existir, mas é no existir, é na existência que está o Princípio Absoluto. É incapaz de suportar a subtração que é a morte, que lhe parece um infinito negativo. Se, ao contrário, perceber o valor infinito do existir, participará de maneira plena da natureza do Princípio, será conscientemente infinito e, portanto, terá como nula a subtração que é a morte (aqueles que chegaram lá sabem que a morte nada significa; Paulo: a vitória sobre a morte). Agarrado à ilusória realidade do viver e temendo a morte, o homem criou angustiantes perguntas e crenças sobre um ‘pós-vida’ (como ressurreição, reencarnação, céu, inferno, carma, satanás, anjos etc.).

Monge: ‘Há um caminho particular para se trabalhar no Tao?

Mestre: ‘Sim, há um caminho: Quando se tem fome, come-se: quando se está cansado, descansa-se. ’

Monge: ‘Mas, isso é o que fazem todas as pessoas; então elas seguem o mesmo caminho que tu?’

Mestre: ‘Não é o mesmo caminho, porque quando comem, elas não se limitam a comer, elaborando toda espécie de imaginação. Quando descansam, não se restringem a fazê-lo, dando livre curso a mil pensamentos ociosos. Eis porque o caminho delas não é o meu caminho. ’

O homem comum só tem consciência de imagens; assim, o fato de ser inconsciente do existir não surpreende. Ele não tem consciência daquilo que nele é real e só a tem daquilo que nele é irreal. A obtenção do satori é apenas a tomada de consciência de existir, hoje inconsciente nele, tomada de consciência da Realidade única e fundamental da vida vegetativa universal que é a manifestação do Princípio Absoluto (‘Isso’ que Eu sou é infinitamente mais do que meu ‘eu’). É a isso que o Zen chama ‘ver em sua própria natureza’.

O homem comum tem de obter a percepção imediata do valor infinito da vida vegetativa pela desvalorização total da sua vida egotista. O trabalho interior necessário para isso consiste apenas em desfazer todas as ilusórias crenças egotistas que lhe mantêm fechado o ‘terceiro olho’. Isso porque para o homem o que é importante é o viver; para ele viver são imagens, pensamentos, ilusões, memória, competições, emoções, adrenalina, ideais, expectativas, ao passo que o existir é morte (o fato, as sensações sem emoções, sem associações nem imaginações).

O homem pode conhecer, indiretamente, a realidade do existir (vida vegetativa) ao perceber, de modo direto, as flutuações ou variações que ameaçam os fenômenos que constituem essa vida. Por exemplo, quando tem fome percebe diretamente a ameaça que a falta de alimento faz pairar sobre sua existência vegetativa. Se não sentisse fome, não teria consciência de que sua manifestação fenomênica está ameaçada. Através da fome, tem consciência indireta de sua existência vegetativa. A alegria e a tristeza de suas afirmações e negações egotistas significam reduções e ampliações da ameaça que o mundo exterior faz constantemente pairar sobre a totalidade de sua vida vegetativa; alegrias e tristezas são, portanto, tomadas indiretas, percepções da consciência de sua existência vegetativa.

Em suma, todas as flutuações positivas ou negativas de como me sinto (disposição, humor, saúde etc.) resultam das variações da pura e perfeita alegria vegetativa fundamental. Isso só é sentido, de forma indireta, nas flutuações do sentimento de segurança ou insegurança relativas à minha vida vegetativa. A percepção direta dessa perfeita alegria vegetativa anula todo medo da morte, medo que vem da evocação mental imaginativa da morte; mas a percepção direta da realidade da existência anula todos os fantasmas imaginados e inventados pelo homem, referentes a um passado ou futuro sem realidade presente. Com o satori, o homem sente a pura e perfeita alegria somente pelo fato de existir enquanto existe.

Não temos diretamente consciência de nossa existência, mas apenas de suas variações fenomênicas. É a crença na realidade absoluta dessas variações que nos separa da consciência daquilo que está sob essas variações (e que nunca sofre variações: a existência numênica, princípio da existência fenomênica). Devemos compreender a perfeita igualdade dos fenômenos opostos (alegria-tristeza, segurança-insegurança, vida-morte, construção-destruição etc.) diante do que é sob essas variações. O Zen diz que a escravidão do homem reside no desejo de viver. E é possível observar em muitos seres humanos o terror de desperdiçar a vida, quando, na verdade, nela nada há a desperdiçar ou a aproveitar, pois ela é o que é.

Quando se observa com imparcialidade, o homem percebe que não é o autor consciente e voluntário de seus sentimentos e pensamentos, que são tão somente fenômenos que vêm a ele. Numa observação criteriosa, o homem perceberá que seus pensamentos chegam a ele. Assim, não somos responsáveis nem mesmo por nossos pensamentos e, em conseqüência, nem por nossas ações, pois não somos seus autores voluntários; portanto, nada fazemos livremente, nada fazemos por nossa decisão ou escolha, isto é, a escolha não é nossa (como diz, hoje, a nova física e Krishnamurti que afirma: ‘aquele que escolhe ou que pensa que escolhe é imaturo’, e a bíblia: ‘É o Senhor que opera em nós o pensar, o querer e o fazer’).

Contudo, o homem julga que pode fazer alguma coisa para diminuir os sofrimentos que o acometem, sobretudo porque sente, ligada a eles, em particular aos sofrimentos morais, uma angústia fundamental, da qual as alegrias são apenas tréguas passageiras. Em sua busca de como se livrar desses sofrimentos, verifica que a maioria dos ensinamentos, que admitem ser possível tal libertação ou salvação, se baseia na teoria errada de que é preciso fazer, aos poucos, evoluir sua consciência através de um trabalho especial (aquisição de virtudes etc.); que deverá transcender a si mesmo, no decorrer da vida, até obter o aperfeiçoamento moral necessário.

Segundo o Zen, o homem nada necessita fazer (para sua salvação) pois, desde sempre, ele possui ‘a natureza de Buda’ (Jesus: ‘o reino de Deus está dentro de vós’, e Paulo: ‘não é por vossas obras que sois salvos, mas pela graça de Deus’). Há nele tudo o que é necessário para ter o percebimento de que sempre foi e sempre é livre. Mas, a condição do homem ao nascer comporta certa modalidade de desenvolvimento que traz um hiato, uma não-união entre soma e psique. Com isso, ele não goza da consciência absoluta que é, no entanto, plenamente sua. Não que lhe falte alguma coisa; a máquina está completa, perfeita. É necessário, apenas, estabelecer a reunião das duas partes, e isso é feito por um trabalho interior, progressivo e que pode ser longo, mas o despertar é instantâneo e fulgurante. É um voltar a si, um abrir os olhos à realidade que sempre esteve aqui. Embora possa durar bastante tempo, o homem obtém, já durante o trabalho, uma redução do sofrimento que resultava da crença de que não é livre.

O homem é um organismo psicossomático (soma e psique, corpo e mente). Quando a mente ainda não está concluída, a criança não tem consciência da distinção entre o eu e o não-eu. Mais tarde, adquire consciência dessa distinção, o que constitui verdadeiro traumatismo. Antes, não havia nenhuma existência autônoma frente a ele; portanto, sua existência nada tinha a temer; mas, de súbito, percebe, ao tomar contato com o obstáculo do mundo, que há coisas que existem independentemente dele e que, por isso, lhe parecem ameaçadoras. Nesse instante surge o medo da morte, do perigo que o não-eu representa para o eu, o que provoca no eu um estado afetivo de guerra contra o não-eu. O indivíduo deseja existir e deseja a destruição daquilo que não lhe é favorável e que existe fora dele. A criança se afirma ao dizer ‘eu; não você!’. O eu é tudo que é favorável à existência do indivíduo; o não-eu, tudo o que é desfavorável. Há dois campos opostos e o que está em jogo, em última análise, é a sua continuidade ou cessação, a vida ou a morte. Nessa fase, o indivíduo passa a ser inteiramente parcial, nunca se colocando no lugar do outro. Daí vem o comportamento das crianças, totalmente afetivo, egoísta e irracional.

Na chamada idade da razão, a mente torna-se capaz de percepções abstratas, gerais, imparciais; pode colocar-se no lugar do outro e imaginar um bem diferente da afirmação do eu sobre o não-eu. Pode sentir impulsos para idéias de Bem, do Belo, do Verdadeiro. Mas, nesse momento, todos os poderosos mecanismos afetivos de auto-afirmação já estão alicerçados sob uma perspectiva inteiramente egotista e parcial. A parte puramente animal do começo já está solidamente estruturada e é radicalmente contrária à parte abstrata quando esta surge. Não existindo a união das partes, o indivíduo não pode usufruir uma consciência una, íntegra. A parte abstrata, isolada da parte animal, não imagina senão formas sem substância, imagens, entre elas uma imagem ideal, divina, bela, boa e verdadeira (o eu, alma, espírito) que, não havendo um justo amor de sua parte abstrata por sua parte animal, o homem passa a adorar e imitar. Surge o amor-próprio, amor de sua parte abstrata por uma imagem, ideal e sem realidade, de si mesmo, o ego (espírito, alma).

Graças à imaginação, cria um mundo subjetivo (interior, imaginado) que lhe é mais favorável, que reduz a competição com o não-eu, e o homem se torna civilizado, adaptado, aceitando a vida em sociedade com todas suas incoerências e absurdos, com isso suavizando a luta contra o não-eu. Mas, a situação se torna grave quando os mecanismos adaptativos (entre eles acordos entre o eu e o não-eu, leis e regras e costumes sociais civilizados) esgotam sua eficácia, e o homem, pelo medo do fracasso, não consegue mais negar suas pretensões de vencer o não-eu. A vida frustrou, pouco a pouco, suas esperanças de ser recompensado por ter sido gentil, bom, sábio; sofreu infelicidades que considera injustas, e deixa de crer naquelas fantasias. Retoma o combate, mas sente que, por isso, a parte abstrata (alma, espírito) como se estivesse do lado do inimigo, o repreende muitas vezes. O homem fica, então, mais dividido ainda. Há aqueles que procuram esquecer a parte abstrata e passam a viver em confortável egoísmo, os materialistas; e aqueles cuja parte abstrata é mais forte e passam a viver em confortável renúncia altruística, os espiritualistas.

A parte abstrata, a mente, foge da realidade, crendo numa salvação futura, frente à resistência do mundo exterior inabalável e negador. Foge para o mundo da imaginação, imitando o que outros fizeram e disseram antes. Assim, o fracasso total é ‘evitado’ pela mente, mas sua imagem persiste indefinidamente diante dela. Portanto, a imaginação tem, frente à angústia, papel protetor da parte abstrata (espírito, alma) que se desvia da luta prática pela existência, a parte animal padecendo mais ainda o medo da morte, já que a deserção da parte abstrata a deixa só diante da agressividade do não-eu. Portanto, a imaginação protege o ego, que não existe, pois é ilusão, e oprime a máquina, que existe, que é real.

Toda e qualquer angústia ou sofrimento moral que atormenta o homem é ilusório. É causado pelo ‘filme’ emotivo-imaginativo, isto é, pela própria imaginação do homem, que não cessa de ‘fluir’, criação artificial da mente. O homem só procura ‘divinizar-se’ no plano temporal porque ignora sua essência divina real. Nasce desconhecendo sua origem e se convence de que não é mais que esse corpo limitado percebido pelos sentidos e, muitas vezes, sofre na vida por se julgar esquecido por Deus quando, na realidade, ele é o próprio Deus. Angustia-se no plano temporal buscando afirmações divinizantes que, nesse plano, não podem ser encontradas, sem, contudo, perceber que não buscaria a Realidade se não participasse de sua natureza, pois não se pode sentir falta de alguma coisa se não se tiver consciência dessa coisa, mesmo inconscientemente.

Portanto, sendo ilusórias as causas da angústia, esta também é ilusória. Podemos experimentar, de modo direto, esse caráter ilusório da angústia. Experimente: se no momento em que sofro ‘moralmente’, descanso num lugar tranqüilo e desvio a atenção do meu ‘pensar’ para o meu ‘sentir’, deixando de lado todas as imagens mentais, e me esforço para perceber, em mim, o famoso sofrimento ‘moral’, nada encontro. Tudo que percebo é alguma fadiga geral, fruto da ansiedade em que me encontrava e do desperdício de energia produzido no ‘medo da morte’. Quanto mais atenção ponho no ‘sentir’ a angústia, retirando a atenção do meu filme emotivo-imaginativo, menos a sinto. Verifico, então, que a angústia é totalmente irreal.

O contrário ocorre no sofrimento físico. Se tenho uma ferida dolorosa, quanto mais tiro a atenção do ‘sentir’ e a ponho no ‘pensar’, desviando assim a atenção da dor, tanto menos sinto a dor. E, quanto menos imagino, desviando a atenção do pensar, do imaginar, para o sentir, tanto mais intensa sinto a dor. Isto porque a dor física é real, e não ilusão como a angústia. Não é que não haja percepção da dor moral; há, mas é ilusória. Quando, no deserto, se vê a miragem de um lago, não se pode dizer que a miragem não está sendo vista, mas é uma ilusão. Quando tenho um sofrimento ‘moral’, eu o percebo, mas o que percebo é ilusão, é fruto da minha imaginação.

Assim, na dor física, quanto mais imagino outras coisas, desviando a atenção da dor, menos sofro; na dor moral, quanto mais imagino ou penso sobre a questão que me abate, mais sofro; se procuro senti-la, ela some. Angústia, sofrimento moral, irritação, violência, procure senti-los e eles somem, porque são irreais, são ilusões.

Há, no imaginar, o medo da morte, que desgasta a energia vital e, assim, diminui a reserva de energia do organismo; ocorre, então, um dano a este. Não é o mesmo dano causado pela dor física; esta afeta uma parte do corpo enquanto um agregado de partes. O sofrimento moral, que dissipa a energia, afeta o organismo como um todo, o que não se revela, na sensibilidade orgânica, por nenhuma dor específica, mas por fadiga, queda da vitalidade, mal-estar depressivo geral. A par disso, surgem, na mente, imagens desagradáveis, ameaçadoras. O sofrimento ‘moral’ resulta disso: associação dessas imagens com o estado depressivo. O desperdício da energia orgânica caminha, evidentemente, para a ausência total de energia vital, que é a morte. As próprias imagens desagradáveis têm um sabor de morte. Aí é que reside a ilusão de que sou vítima. Percebo a negatividade que se aproxima e me ataca, e estou convencido de que sua existência é real; entretanto, ela não existe senão em minha mente, como não existe o lago na miragem do deserto.

Na angústia, é a imaginação que toma a iniciativa do processo. Uma depressão de causa fisiológica pode favorecer o surgimento da angústia (o humor pode ficar ruim durante todo o dia se não dormimos bem à noite); mas, sempre, a angústia depende da mente, pois se ponho minha atenção para ‘senti-la’, só me sinto cansado, e não angustiado.

Na angústia, o homem tem a atenção voltada para o filme imaginativo, com o qual tenta escapar do perigoso ‘não-eu’. O gesto interior, pelo qual desloco minha atenção do ‘pensar’ para o ‘sentir’, é uma virada radical, de 180 graus; viro as costas à imaginação, e passo a olhar para a direção da qual vinha a angústia; digo ‘vinha’ porque, no instante em que dou essa virada, isto é, em que coloco a atenção no ‘sentir’, o filme imaginativo mental iniciador do processo pára, a angústia cessa e só persiste certa fadiga geral. Só existe o fantasma da angústia enquanto não o encaro de frente; quando ouso fitá-lo, vejo que ali nada existe.

Esta compreensão é de utilidade para a realização intemporal, a única solução para acabar com os sofrimentos ilusórios do homem, pois o satori exige o estabelecimento de uma calma perfeita na mente daquele que vive sob as influências do ego em toda plenitude. O homem deve compreender, também, que todos os esforços para a obtenção do satori são inúteis. O satori só acontece quando a mente está livre (e por isso, tranqüila), de preocupações, imaginações e emoções, que produzem funcionamento mental descontínuo, pois só a mente que funciona com continuidade está apta para o despertar.

Emoção, imaginação, pensamento, lembrança, nascem da desatenção, causadora de perda de energia vital do organismo; são como curtos-circuitos, que causam perda de corrente. Quando me esforço para perceber a sensação de que existo, sensação que é quantitativamente variável, minha atenção está ativa e não há emoções nem imaginações; não há desatenção e não há perda de energia. Cessada a atenção, as emoções imediatamente voltam, e a perda de energia recomeça.

Embora minha sensação informal de existir varie quantitativamente - indo da exaltação à aniquilação - devo fazer um esforço especial de atenção para perceber as formas mentais que manifestam esses estados extremos e suas variações. Quando a mente está passiva, isto é, ‘desatenta’, ela fica presa aos estados mentais, o que a deixa agitada, descontínua, sujeita a curtos-circuitos e às conseqüentes perdas de energia.

Para habilitar-se ao satori, o homem precisa despertar, sem cessar, a possibilidade que tem, e que sempre tende a adormecer, de perceber, sob as formas de seus estados (psíquico: moral, humor; e físico: saúde, disposição, energia etc.), essa sensação informal, mais ou menos positiva ou negativa, de existir. Essa atenção isola a mente dos curtos-circuitos e a protege da agitação de sempre, fato que traz a calma necessária para o satori. Para isso, o homem deve tentar, sem cessar, um esforço especial para sentir que existe, que ‘é’, no centro de tudo, no ambiente em que estiver. A sensação informal imediata da existência (vegetativa) é a percepção mais simples que pode haver. Não é necessário parar o que está fazendo no momento; apenas ‘sentir que existe’ no próprio centro do ambiente em que se está. Quando a calma se estabelece de maneira profunda, as condições interiores tornam-se favoráveis à eclosão do satori, no qual todos os dualismos se conciliam e todos os sofrimentos cessam.

É impossível descrever essa sensação interior, a percepção imediata e informal do grau de existência do momento, justamente por seu caráter informal (sem forma). Se pergunto: ‘Como se sente, física e moralmente, neste instante?’, você se cala por dois segundos e depois fala algo como ‘Mais ou menos’. Dos dois segundos em que você ficou calado, o segundo não nos interessa, pois foi o tempo que você usou para por em uma forma exprimível a percepção que você teve do que nos interessa, daquilo que não tinha forma ainda, daquela sensação interior informal do primeiro segundo. No primeiro segundo é que você ficou atento e, por isso, percebeu aquilo que de fato importa: a percepção imediata e informal do seu grau de existência do momento. Como não temos consciência dessa percepção (ainda sem forma e, portanto, inconsciente), e só a temos das formas dela derivadas, só mediante um esforço especial de atenção podemos percebê-la.

O homem deve ativar sua mente formal numa tentativa perseverante de perceber, para além de seus limites, o informal, tentativa que, apesar de absurda em si mesma, leva um dia ao desencadeamento do satori, não como resultado do sucesso dos esforços feitos, mas, ao contrário, como resultado do fracasso definitivo desses esforços. Isso se assemelha à situação do homem que está separado da luz por uma parede e que só pode ver a luz tornando a parede cada vez mais alta; chega um dia em que todos esses absurdos esforços levam a parede a tal altura que ela desmorona bruscamente, queda triunfante que mergulha o homem na luz.

Esse esforço absurdo é que devemos fazer quando nos empenhamos em perceber nossa sensação informal de existir-mais-ou-menos em todos os momentos do nosso dia. Com esse esforço, aprendemos, não a fazer algo novo, mas a deixar de produzir as costumeiras e inúteis agitações interiores, o que trará a calma indispensável para a eclosão do satori, que é a mais alta realização do ser humano (ver, também, Jung).

O determinismo total cósmico age no plano dos fenômenos e no nível universal; só o imaginamos como ordem total; a totalidade dos fenômenos positivos equilibra-se com a totalidade dos fenômenos negativos. Cada fenômeno se integra numa totalidade na qual é equilibrado por um fenômeno exatamente oposto e complementar.

Já a ‘ordem’ do determinismo desordenado relativo aos fenômenos que percebemos no espaço-tempo não é ‘real’, pois é parcial. Porém, o homem, ignorante, toma o que vê pelo ‘real’ e, assim, acredita na realidade única do parcial tanto que o denomina ‘determinismo’. Por outro lado, esse homem tem certa intuição inata da Realidade, o Princípio Supremo, que imagina dotado de liberdade. Como, para ele, o determinismo só existe no nível parcial, pois nem mesmo imagina o determinismo universal, opõe o único determinismo que conhece à liberdade do Princípio Supremo. Assim, chega ao dualismo da oposição determinismo-liberdade, que é totalmente ilusório. Mesmo julgando-se separado, o homem deseja ser livre, sem compreender que é, justamente, sua libertação do determinismo parcial que o levará ao determinismo total e à percepção da inseparabilidade.

Aquém do ato livre adequado existe toda uma hierarquia de atos que são mais ou menos adequados de acordo com a maior ou menor amplitude do determinismo que a eles preside. No ponto mais baixo dessa hierarquia está o ato puramente instintivo, automático, sem nenhuma reflexão, no qual opera uma espontaneidade que está aquém da reflexão. Após, com a intervenção freqüente da reflexão, a espontaneidade inferior desaparece pouco a pouco, e o ato torna-se mais e mais adequado às circunstâncias, até que, com o satori, o ato conquista uma espontaneidade inteiramente nova e se torna perfeitamente adequado à totalidade espaço-temporal do universo fenomênico, superando-se qualquer reflexão (não há mais escolha; o ato praticado é o único que poderia sê-lo). Quanto mais aumenta o rigor do determinismo, mais e mais o ato é sentido como interiormente livre, até que não há mais restrições e o ato é rigorosamente livre. Portanto, meu ato é interiormente tanto mais livre quanto mais rigorosamente definida a razão pela qual tenho de agir.

(Não é verdadeira a renúncia enquanto se atribui um valor àquilo a que se renuncia.).

Atenção total. Tentativa de ver tudo sem imagens, isto é, com atenção total. É esse esforço absurdo, mas necessário, que devemos fazer quando nos empenhamos em perceber nossa sensação informal de existir-mais-ou-menos no decorrer de todos os instantes de nossa vida.

Quando o homem se ‘realizar’, seu organismo psicossomático deixará de ser regido apenas pelas leis do determinismo parcial e passará a sê-lo, também, pela lei do equilíbrio cósmico universal, lei sobremodo ordenada, princípio de todas as leis aparentemente desordenadas do determinismo parcial. No momento em que me ‘realizo’, deixo de sofrer restrições, não porque o que me restringia foi destruído, mas porque se ampliou infinitamente e veio coincidir com a totalidade na qual o ‘eu’ e o ‘não-eu’ são apenas ‘um’, e a palavra restrição perdeu todo sentido. O homem, após o satori, só pratica, em qualquer circunstância, a ação perfeitamente adequada e correta de acordo com os princípios cósmicos. Nisso está a perfeita liberdade (não há mais reflexão nem escolha). Na medida em que diminui minha liberdade ‘exterior’ de resposta, aumenta minha liberdade ‘interior’. Minha vontade é tanto mais livre quanto mais rigorosamente definido é o que tenho a fazer (ver, também, bramanismo, Meditação Transcendental e Krishnamurti).

Para o Zen, deve-se recusar qualquer disciplina ‘particular’ (moral, crenças, religiões, virtudes etc.); deve-se aceitar a disciplina ‘total’, que consiste exatamente em recusar toda disciplina particular. Por isso, ensina o Zen: ‘Deixe de cultivar opiniões’, ‘O caminho perfeito rejeita toda preferência’, ‘Desperte a mente sem fixá-la em nada’.

No estado egotista fundamental, ‘viver’ é afirmar o ‘eu’, é tentar vencer o ‘não-eu’, vitória material pela aquisição de bens materiais, fama e respeito (domínio do ‘eu’ sobre o ‘não-eu’; obtenção da glória que ‘imortaliza’ o ‘eu’ separado, o homem particular). O estado afetivo fundamental original do homem comum é simples: ele ama o seu ‘eu’, em oposição ao ‘não-eu’, e odeia o ‘não-eu’ que, julga, se opõe ao seu ‘eu’. Quanto mais o homem progride no auto-conhecimento, mais esses amores perdem valor e eficácia, o que faz com que o ‘eu’ e o ‘não-eu’ se aproximem, até que, no limite da compreensão, o ego explode no satori, se dissolve no todo, aniquilando-se e realizando-se ao mesmo tempo, quando percebe que o ‘eu’ e o ‘não-eu’ são uma coisa só (nós somos o universo).

As percepções particulares, advindas das sensações do mundo exterior, interpretadas pela imaginação, dependem de meu estado psicossomático (condições mentais e fisiológicas, isto é, dos efeitos produzidos pela boa ou má saúde, insônia, má digestão, álcool, drogas, preocupação, irritação, nervosismo, tranqüilidade etc.) Minha atenção se divide entre duas preocupações: minha afirmação frente à ameaça do mundo exterior, e a ‘avaliação’ interior do resultado favorável ou desfavorável dessa ameaça relativa à continuidade ou à cessação de minha existência vegetativa. No caso do neurótico, tão grande parcela de sua atenção se ocupa com a continuidade ou cessação de seu processo de ‘ser’, e lhe resta tão pouca atenção para o contato com o mundo exterior, que ele tem a impressão que esse mundo é irreal e se sente impossibilitado de se concentrar numa vida normal.

Toda angústia resulta do encontro com o ‘não-eu’ e traduz o medo de ser vencido nesse encontro. O homem não realizado só tem consciência dos fenômenos e, portanto, não está consciente daquilo que os transcende. Ainda que esteja feliz por estar se afirmando, momentaneamente que seja, no antagonismo eu/não-eu, sempre persiste a dúvida se conseguirá manter-se nessa condição. Mas, essa angústia é irreal, não existe, embora pareça existir, e todos os seus fenômenos afetivos se passam como se ela existisse.

Mas, à medida que avanço no auto-conhecimento, numa compreensão correta da vida interior, passo a vincular meu sofrimento, não mais com o que me acontece de forma pessoal, mas com minha condição de homem universal. As angústias se hierarquizam numa escala qualitativa segundo o grau de profundidade de minha compreensão. E, quando essa compreensão atua efetivamente em mim, cessa o processo do meu ser ou do meu nada pessoais, isto é, na medida em que as causas da minha angústia se universalizam em minha compreensão, nessa medida deixo de sofrer. Assim, a compreensão, aos poucos, nos liberta da angústia; quanto mais compreendo que minha angústia depende de uma condição que não se refere de forma específica a mim, tanto mais se desfaz em mim o absurdo e angustiante processo ‘ser ou não ser’ (o medo) do qual provinham todas as minhas angústias. A compreensão dissipa todos os fantasmas desse ilusório processo e atenua, progressivamente, todas as emoções que daí vinham. Assim, caminhamos para o satori. Segundo o Zen, o que anuncia sua chegada são estados interiores de serenidade, de neutralidade afetiva (indiferença), até que a dolorosa angústia se transforma na perfeita alegria de existir.

A essência do trabalho interior é tentar perceber, a todo instante, além de toda a forma, interiormente, a sensação de existir-mais-ou-menos-que-instantes-atrás. ‘Veja em sua própria natureza. ’ O ‘terceiro olho’ está fechado e é preciso, com atenção, olhar para o interior, de modo a eliminar a sua contração para que eu possa ver, definitivamente, em minha própria natureza. Esse ‘olhar’ é o esforço para ‘ver’ a sensação informal de existir-mais-ou-menos, que um dia vai desencadear o satori. Essa sensação não tem continuidade pois, mal me chega na sua pureza informal, me escapa, derivando para percepções formais. Assim, só percebo meu estado de existência do instante. Falta-lhe continuidade, a dimensão temporal, que devo conquistar pelo treinamento, para que a percepção de existir seja uma percepção contínua, uma consciência real.

Assim, a percepção de existir ao meu alcance, hoje, é limitada ao instante presente. Varia incessantemente de acordo com as incessantemente variáveis relações com o mundo exterior. E minha consciência só colherá o fruto do satori quando chegar a perceber a continuidade dessa percepção que é o espetáculo de minha criação. Diz o Vedanta, ‘quando eu me tornar o espectador de meu espetáculo’. Em suma, torne cada vez mais freqüentes essas percepções instantâneas de existir-mais-ou-menos-que-instantes-atrás para que haja uma percepção contínua que será, então, pura percepção de existir. O olhar interior é ver se, em conjunto, psique e corpo, me sinto melhor ou pior que instantes atrás. Não importa se estou melhor ou pior; o que importa é obter uma percepção contínua dessa oscilação do melhor para o pior e vice-versa, do sentir-me feliz para o sentir-me infeliz, do recear para o estar confiante etc. E só me é possível perceber esses estados variados de existência quando as variações não dependem de minha atividade e sim da atividade do ‘não-eu’, do mundo exterior, coisa que só acontece quando me relaciono com atenção ativa com esse mundo. Portanto, sinta-se no próprio centro de sua ação, onde quer que esteja e em qualquer tempo.

Agora, podemos compreender porque o Zen diz: ‘Tao (o caminho) é nossa vida do dia-a-dia’. Uma historieta: ‘Certo dia, um monge pediu ao mestre que o instruísse no Zen. O mestre perguntou: ‘Você já almoçou?’ ‘Almocei. ’, respondeu o monge. ‘Pois, então, vá lavar sua louça. ’ Nada de extraordinário a fazer; apenas as coisas do dia-a-dia, porém com total atenção no que se faz. E por isso, ensina o Zen: ‘Quando estamos com fome, comemos; quando estamos com sono, dormimos; em tudo isto, onde intervém o finito ou o infinito? É só quando, cheio de inquietações, o ego entra em cena e se desmanda, que nós paramos de viver e imaginamos que nos falta alguma coisa.’ Assim, o caminho é a própria vida do dia-a-dia, nada mais.

A batalha que temos de travar é contra a desatenção, essa nossa inércia mental, geradora das inquietações interiores formais; é a luta para ir contra essa corrente, avançando aos poucos até chegar a reintegrar nossa consciência na fonte informal de nosso ser.

Vivemos, sempre, em dois planos: o das sensações, percebidas pelos sentidos físicos, que é real; e o das imagens (interpretação que fazemos do que percebemos com os sentidos físicos), que é mental, ilusório. No primeiro, o homem se assemelha a todos os outros homens; no segundo, iludido, ele pretende ser diferente, único, egotista. Em geral, sua atenção se desloca de um para outro e se aplica apenas a um em cada instante, e os filmes, reativo, do plano da sensação, e ativo, do plano da imagem, se desenrolam continuamente. Tudo o que acontece no plano da sensação, e que me dá segurança ou insegurança, influencia meu processo (ou meu medo) de ser ou de não-ser, que se trava em mim sem tréguas. Enquanto isso, o plano da imagem - que é o mundo exterior interpretado e relembrado - nasce das interpretações que dou ao que percebo no plano das sensações, associado ao que já tenho na memória.

Somente quando se adapta ao mundo exterior presente é que o homem vive simultaneamente nos dois planos (graças às rápidas alternâncias de sua atenção). Quando me esforço (com atenção) para perceber meu estado do instante de existência, verifico que essa atenção dissolve meu filme imaginativo ativo, porque minha atenção se desloca para o filme reativo. Logo, a atenção dissolve minha vida no plano da imagem, que é ilusório, purificando, assim, minha vida no plano da sensação, da percepção, que é real. O trabalho interior elimina minha vida imaginativa e valoriza minha vida orgânica, que é real. Essa dissolução progressiva da vida no plano da imagem nos leva ao despertar para a Realidade. Essa perda é terrível para nós, pois julgamos o ‘viver’, que está no plano da imagem, superior ao ‘existir’, que está no plano da sensação. Isso é como a morte (o morrer a cada instante, de Krishnamurti), uma renúncia ao ‘céu’ ilusório, a tudo que nos parecia ‘sagrado’ anteriormente. O deslocamento da atenção para o plano das sensações reais dissolve as ‘miragens’ do plano da imagem (o filme emotivo-imaginativo) que faziam com que eu atribuísse valor àquilo que não tem valor algum, pois é pura ilusão. Embora o Zen afirme que nada temos a fazer, esse trabalho interior exige atividade incessante da atenção como se estivéssemos ‘com a cabeça quente, em chamas’, o tempo todo.

Não posso conhecer a força vital que permeia sem cessar o organismo, por ser informal, mas posso percebê-la. Quando me sucede algo agradável, se consigo expulsar de minha mente todas as idéias a isso relativas, sinto em mim, diretamente, uma espécie de efervescência de vida em excesso; quando sucede algo desagradável, se consigo afastar todas as idéias a ele relativas, sinto em mim, diretamente, uma espécie de vazio, como uma torrente que me arrasta para o nada. Logo, posso levar a atenção ao ponto exato em que tem início a manifestação do nascimento, em meu ser, da energia primordial. Quando levo a atenção para perceber o que está por trás da sensação agradável ou desagradável, verifico que a agitação imaginativa (vinda da satisfação ou insatisfação) cessa. A atenção no plano formal desintegra a energia vital; a atenção no plano informal (de como me sinto, por exemplo), a mantém íntegra, a acumula, acumulação necessária ao surgimento, de súbito, do satori.

A atenção ao koan (não é este que tem importância) faz com que a mente se afaste do mundo das formas, que é o propósito dessa prática. Contudo, é necessária a atenção ao mundo real presente das formas, que produz excitação, agitação, fazendo com que a energia informal jorre de sua fonte central; levando-se, então, a atenção para o informal, que impede a desintegração da energia jorrada, esta é acumulada para o satori.

Segundo os místicos, o homem já participa da natureza de Buda; é perfeito, nada lhe falta. Mas, não se dá conta disso por estar preso no emaranhado de suas atividades imaginativas. Tais atividades são necessárias no início da vida do homem, enquanto a máquina humana não está ainda concluída. Mas, uma vez plenamente desenvolvida, a imaginação impede a acumulação de energia necessária para se chegar ao conhecimento não-dualista. Infelizmente, o homem toma o alívio momentâneo de sua angústia, proporcionado pela imaginação, como uma melhora real de suas condições, no sentido do anulamento da angústia. Na realidade, esse alívio momentâneo tem um preço: o agravamento progressivo da condição para a qual ele busca alívio. Ele crê na utilidade de suas ‘ruminações mentais’, identificado com a mente imaginativa, porque não vê nada em si mesmo além desse ‘eu’ pessoal, do qual tem uma percepção dualista. Ignora a existência em si de algo diferente do ‘eu’, invisível e que trabalha nas sombras, em seu benefício.

No entanto, quando observa a vida de seu corpo, verifica que trabalhos maravilhosos de todo tipo aí, ‘espontaneamente’ se realizam, sem que para isso tenha concorrido aquilo que denomina ‘eu’. Seu organismo é mantido por processos cuja complexidade desafia qualquer imaginação. Quem faz tudo isso? Se o conhecimento mediato dualista espontaneamente se desenvolveu, será que o conhecimento não-dualista não poderá também se desenvolver espontaneamente?

Para o Zen, a evolução normal do homem é espontânea e inconsciente e culmina no satori (como também afirma Krishnamurti). O Princípio age continuadamente; mas o filme emotivo-imaginativo trabalha contra esse desenvolvimento, por desperdiçar a energia. Porém, quando começamos a compreender que essa força que nos faz evoluir age espontânea e continuadamente em nós, mesmo que disso não estejamos conscientes, veremos que o mundo dos fenômenos nos oferece um interesse menos constrangedor. O Zen diz: “Desapegue-se; deixe que as coisas sejam como são. Obedeça à natureza das coisas para estar em harmonia com o Caminho.” E o homem passa a ver o mundo com ‘indiferença’ (como ensina Krishnamurti e tantos místicos ocidentais e orientais). Por nós mesmos, somos incapazes de estabelecer em nós qualquer harmonia. É o Princípio que o faz. Deixemos, portanto, de oferecer resistência com nossas atividades imaginativas e com desatenção, que o Princípio fará sua parte. E, à medida que deixo de dar atenção a opiniões, as crenças diminuem e a ‘Fé’ cresce. Por isso diz o Zen: ‘O satori cai sobre vós de súbito, depois que esgotardes todos os vossos recursos’. .............

Emoção e Estado Emotivo

As emoções e o estado emotivo podem ser causados por imagens, isto é, por excitações psíquicas, sutis; do mesmo modo, a emotividade pode ser desencadeada por excitações somáticas, grosseiras. Um mal estar somático pode ser a causa de minha ‘fossa’ e, seja a causa psíquica ou somática, a ‘contratura’ que ela desencadeia afeta ao mesmo tempo nossa psique e nosso corpo, o que significa que uma certa contratura muscular (dos músculos estriados ou lisos) sempre acompanha a contratura psíquica causada por imagem subconsciente, e vice-versa.

A emotividade relaciona-se sempre com alguma dúvida quanto a ‘eu ser’; essa dúvida, ‘ser ou não ser’, paira constantemente sobre meu processo que se desenrola na expectativa de uma ‘absolvição’ definitiva. Na jamais adormecida subconsciência, o homem vive esperando um veredicto ilusório, do qual sente que depende sua absolvição ou condenação definitiva.

A emotividade é necessariamente negativa, é uma contratura ansiosa; a atividade da subconsciência onde ela atua relaciona-se com a necessidade do Absoluto, isto é, com a necessidade da realização atemporal. Após o satori, embora o homem ainda experimente emoções, percebe que por trás delas não está mais a presença constante da angústia; essa modificação no pano de fundo constitui uma transformação tão intensa e fundamental de toda nossa vida afetiva que não nos é possível nem mesmo imaginar os sentimentos do homem depois do satori. O trabalho interior tem em mira esse instante perfeitamente não-emotivo e de perfeita felicidade. Por isso, o homem acredita com freqüência que deve controlar as emoções, o que é um erro e inutiliza todo o seu trabalho. Devemos, sim, refrear o estado emotivo pela aquisição de indiferença, e só a compreensão intelectual pura (meditação) é eficaz para isso. O estado emotivo é eliminado quando, atento, procuro percebê-lo.

Na prática, isso deve comportar gestos interiores reiterados, breves e sutis. Não é insistir trabalhosamente como se fosse preciso ‘apreender’ algo; nada há para ser ‘apreendido’. Trata-se de ‘ver’, pela vontade, num relancear de olhos instantâneo e perfeitamente simples, como me sinto globalmente nesse instante, e repetir esse gesto, de maneira suave e discreta, o mais freqüentemente possível. Ou consigo ou não consigo sentir; se não consigo, recomeçarei segundos após, mas o gesto deve ser executado de uma só vez. Esse exercício faz cessar a consciência que tenho habitualmente de minha vida dualista, numa ruptura decisiva e instantânea.

A consciência normal e superficial que temos comumente nada mais é que ‘alguma coisa deformada’ que conseguimos perceber da consciência total.

Nada é bom, nada é mal; mas nós classificamos tudo assim e, depois, sofremos com isso. Do Zen: ‘Logo que tendes o bem e o mal (logo que divides, que classificas); segue-se tremenda confusão e a tranqüilidade está perdida’.

O homem julga, sempre, que lhe falta alguma coisa, e espera essa coisa que, acredita, seja capaz de preencher sua carência. Essa aspiração se manifesta na sua expectativa de uma ‘vida verdadeira’ no futuro, diferente de sua vida atual, e que viria a afirmá-lo total e perfeitamente, e não mais de uma maneira parcial e imperfeita. Quer percebamos ou não, todo ser humano vive à espera que finalmente tenha início a ‘verdadeira vida’, da qual tenha desaparecido toda negatividade. Essa falsa crença cria a ilusão de tempo e de que esse tempo lhe escapa continuamente e que parece alongar-se entre o momento presente imperfeito e o momento futuro perfeito a que aspira (o vir-a-ser). Cria, assim, a ilusão de um futuro para o qual projeta a satisfação de seu desejo. O satori não deve ser imaginado como um estado ao qual tenhamos de conseguir acesso, no futuro, mas como nosso estado eterno, independente do nosso nascimento e da nossa morte (já estamos nele; apenas não o percebemos).

O caminho perfeito não oferece nenhuma dificuldade a não ser a de negar qualquer preferência (tudo é o que é; aceitemos isso).

Se desejas trilhar o Caminho Perfeito, não cries pensamentos nem a favor das coisas nem contra as coisas que no mundo ocorrem (Marco Aurélio: não reclames de teu destino, pois ele vem de onde tu vieste).

Opor aquilo que amais àquilo que não amais, eis a doença do espírito (enquanto houver em nós qualquer diferença entre bem e mal, não estamos no caminho).

Não procureis a verdade. Deixai, apenas, de vos apegar a opiniões, para que não vos retardeis no dualismo (nas ilusões, maia).

Deixa que as coisas sejam como elas são (de nada adianta reclamar; nós não as escolhemos).

Se desejas o Caminho, não alimentes nenhum preconceito contra os objetos dos sentidos (interpretações equivocadas, cores, formas, sons, aromas, sabores, tato) nem contra lembranças, emoções, expectativas.

O iluminado não tem apegos, nem inimizades (para ele tudo é o que deve ser).

Não sendo dois, tudo é o mesmo, um só, e tudo o que existe aí está incluído.

Toda percepção do mundo exterior, em qualquer instante de nossa vida, contém uma possibilidade de satori, porque estabelece uma ponte entre o eu e o não-eu, fato que contém uma possibilidade de identificação entre o eu e o não-eu, esses dois falsos-opostos e que pode nos permitir a percepção do self-quântico.

Etc., etc....

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quarta-feira, 14 de julho de 2010

A ESSÊNCIA DOS ENSINAMENTOS DE KRISHNAMURTI

(12) ‘O DIÁRIO DE KRISHNAMURTI’, de M. Lutyens. (Jan 2008)


(Síntese)



A autora, que durante anos acompanhou Krishnamurti pelo mundo, afirma que aqui está a essência de seus ensinamentos. Ele escreveu diariamente, de junho de 1961 a janeiro de 1962, enquanto fazia palestras pelo mundo e, todos os dias, era abençoado com a percepção daquilo que está além do espaço e do tempo.

Obs.: aquilo que a física quântica denomina “consciência una”, o absoluto, é “mente” para K., embora, às vezes, nos livros, haja certa confusão no uso dessas palavras; “criatividade” é “criação”.

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No cérebro estão armazenados todo o conhecimento e as experiências, isto é, tudo aquilo que já passou; logo, o cérebro nada mais é do que passado. Por isso, é limitado. Suas atividades são planejadas, refletidas, raciocinadas, mas, por funcionar dentro dos limites do espaço e do tempo, não pode entender nem perceber aquilo que está além do espaço e do tempo, aquilo que é ilimitado, o todo, o absoluto, o que chamamos ‘Deus’. O absoluto é a mente não localizada; (a mente localizada é a ‘parcela’ da mente que está no cérebro de cada um); a mente se acha vazia e, por causa desse vazio, o cérebro existe no espaço e no tempo para que o todo se perceba a si mesmo, como afirmam cientistas e sábios. Só quando o cérebro se libertar de seu condicionamento, isto é, não mais avaliar, comparar, conceituar, pensar, se emocionar, se recordar e deixar a avidez, a inveja, a ambição, poderá compreender aquilo que é integral, a mente, ‘Deus’. Essa compreensão traz inteligência e compaixão. O raciocínio e o intelecto jamais compreenderão o absoluto porque o limitado não pode compreender o ilimitado, o finito não pode compreender o infinito.

“... começou de novo aquele sentimento de imensa vastidão; simplesmente, ela estava ali; não havia centro (eu) no qual a experiência ocorresse, ou de onde ela surgisse”. (a ‘coisa’ surge quando o ego cessa suas operações; como ensinam os místicos: ‘quando o eu não é, Deus é’; e o Velho Testamento: ‘Aquieta-te e sabe: Eu sou Deus’).

A imaginação, a emoção e a memória, interferem e distorcem a observação, que só é pura quando o cérebro está vazio e imóvel. O cérebro só se torna imóvel quando, por ter atingido um estado de extrema sensibilidade, é incapaz de interferir e distorcer as coisas, e se acha passivamente consciente.

Para se perceber ‘Deus’ é necessário que cessem todos os mecanismos de defesa psicológica criados e adotados pelo homem: experiências, dependências de caráter religioso, deuses, crenças, conhecimentos. Essas coisas nos condicionam totalmente; e só cessam pelo auto-conhecimento trazido pela meditação.

O homem é incapaz de criar, porque nele domina o ego, com suas aptidões, talentos e técnicas, mas, sempre limitado. A criação jamais é produzida pelo ego, a mente localizada, que é parte, fragmento, mas sempre pelo todo (e a parte pode se transformar no todo através da meditação).

Todo processo do pensamento deve ser compreendido; todo pensamento é reação contra alguma coisa, e a ação, que dele resulta, traz confusão e conflito.

Todos julgam difícil e indesejável a ação gratuita, a ação que não visa lucro. As atividades do homem e os valores sociais sempre se baseiam na ação que lhe pode trazer vantagem e satisfação. E isso sempre produz descontentamento, o que acaba gerando ciúme e ódio. Por outro lado, a satisfação freqüente destrói a sensibilidade do cérebro.

Ser virtuoso, apenas para merecer as graças dos ‘céus’ ou o respeito social, faz a vida estéril e sem sentido. Esse comportamento, por ter um objetivo, forma uma cadeia de fugas de nós mesmos, fuga “daquilo que é”, pois ficamos tentando parecer o que, na verdade, não somos.

A vida não tem sentido se não formos capazes de perceber a essência das coisas, isto é, de perceber o todo. Mas isso está além do pensamento e do sentimento, além do raciocínio, além do alcance do cérebro.

O importante não é mudar, mas fazer cessar a interferência do eu; mudar é, apenas, continuação modificada do que foi, do que existiu antes. As reformas sociais e econômicas são apenas reações, continuação modificada do que sempre existiu. Tais mudanças não destroem as raízes do egocentrismo. A destruição, no sentido em que empregamos a palavra, é uma ação que não visa resultados nem objetivos. Por exemplo, a destruição da inveja é um processo total; tal ação, livre de motivo, elimina a repressão e o controle. É possível realizar essa destruição; basta ver a totalidade da inveja. Essa percepção é instantânea e não depende de tempo. Isto é, no instante em que se compreende o que é verdadeiramente a inveja, esta deixa de existir (o mesmo ocorre com o medo, o ódio, ambição etc).

O controle, sob qualquer forma, prejudica a plena compreensão dos fatos. Todos vivem atormentados por muitos medos. Conformação, fruto da existência disciplinada, jamais nos liberta do medo. O hábito destrói a liberdade; o hábito de pensar, de beber e outros, conduzem a uma vida superficial e aborrecida. A religião organizada, com suas crenças, dogmas e rituais, impede o acesso à vastidão da mente (à consciência una). E é esse acesso que purifica o cérebro e dele elimina a noção de tempo e de espaço. O homem que se associa a religiões organizadas é imaturo.

“...sempre que estávamos quietos, sozinhos, em qualquer lugar, a coisa tornava-se perceptível. Mas, é absurdo tentar expressar estas coisas verbalmente; as palavras, por mais esmeradas e precisas, não transmitem a realidade”. (‘a palavra não é a coisa’; não há palavras que possam descrever o absoluto, ou conceituar ‘Deus’, como os místicos sempre afirmaram).

Existe, na vida, um único movimento indivisível que é exterior e interior. A maioria segue o movimento exterior, do conhecimento, das idéias, crenças, respeito à autoridade, busca de segurança, de prosperidade etc. Em reação a tudo isso, há aqueles que seguem o movimento interior, com suas visões, esperanças, segredos, conflitos, desesperanças. Sendo este movimento uma reação (pois o ego interfere e reage com sua interpretação em relação àquilo que percebe do mundo exterior), ele se acha em conflito com o mundo exterior; disso nasce a contradição com seu sofrimento, ansiedade e a vã tentativa de mudar ou fugir do fato, daquilo que ‘é’, fuga sempre impossível.

O fluir interior e o fluir exterior da vida formam um único movimento indivisível. Com a compreensão profunda do mundo exterior, daquilo que é, dos fatos, sem as interpretações e comparações que sempre o ego faz, inicia-se o movimento interior, mas agora não mais em oposição ou contradição entre si. Cessado o conflito, o cérebro, ainda que altamente sensível e alerta, aquieta-se. Só assim, torna-se válido o movimento interior. Deste movimento, nascem uma sabedoria e uma compaixão que não resultam do raciocínio ou do auto-sacrifício intencional, mas daquela profunda compreensão.

“A força e a beleza da flor estão em sua total vulnerabilidade...” (a vulnerabilidade da não-memória, da não-resistência, do não-planejamento, do não-pensamento, da inocência, do eterno fluir..., pois não existem reações).

No pensamento nada existe de novo ou de santificado. O pensamento pode reunir uma confusão de sistemas, dogmas, crenças, imagens e símbolos; porém, suas projeções são tão sagradas quanto os projetos para a construção, por exemplo, de uma casa, pois na área do pensamento nada existe de sagrado; o pensamento pode produzir qualquer coisa bela ou feia. Existe, porém, o sagrado que não vem do pensamento, nem do sentimento ou emoção; não é reconhecível pela memória, nem pelo raciocínio, nem pode ser imaginado pelo cérebro. Nem a palavra, nem o pensamento, nem o símbolo ou o dogma podem definir o sagrado. Ele é indizível, incomunicável. Isso é um fato.

Um fato é para ser visto, mas o ato de ver não pode ser interpretado (pelo eu, pelo raciocínio). Quando o ‘eu’ interpreta um fato, este se torna impuro e deixa de ser um fato. O “ver” é da mais alta importância; está fora do espaço e do tempo, é imediato e instantâneo. E o que se vê é sempre novo (se há interferência do eu, com o raciocínio, lembrança, associação, conceituação, não é mais ‘ver’; o fato torna-se impuro). No ‘ver’ não há repetição, nem o processo gradual do tempo.

O sagrado não necessita do observador (enquanto, para que se manifestem, no espaço-tempo, o mundo e seus objetos, há necessidade de um observador com mente senciente, como afirmam os físicos quânticos e psicólogos).

“O sagrado está presente inundando o quarto e transbordando por cima dos montes, atravessando os mares, cobrindo e transpassando a terra e o universo”

Amor não é apego. O amor não produz sofrimento, desespero, esperança, enquanto o apego produz tudo isso. É impossível tornar o amor respeitável ou ajustá-lo ao esquema social. Possuir e ser possuído são considerados formas de amor, erradamente. O desejo de possuir uma pessoa ou objeto não é apenas uma exigência social ou das circunstâncias, mas nasce das profundezas da nossa solidão. Cada um procura preencher essa solidão (que todos possuem por não entenderem o significado da vida) de diferentes modos: bebendo, seguindo uma religião, uma crença, viajando, enriquecendo, buscando um afeto, ou com outra atividade qualquer. Mas, tudo isso é apenas fuga; fuga geradora de apego, prisão, conflito e frustração e, evidentemente, sofrimento. Mas, apesar dessas fugas, a solidão permanece. Não podemos fugir da solidão; ela é um fato, e a fuga do fato, daquilo que é, ou a tentativa de modificá-lo, é origem de mais confusão e sofrimento, pois pensamos que podemos fugir e não podemos; ninguém pode fugir àquilo que é. O importante é compreender profundamente o porquê da solidão; compreendendo, a solidão desaparece.

O homem, ao se ligar a alguma organização, crença, afeto ou atividade, deixa-se possuir por elas e, ao mesmo tempo, pensa que as possui. Essa posse é considerada, por todos, uma ação que visa ao bem, que se destina a melhorar o mundo e que, por isso, representa amor. Controlar ou moldar alguém, em nome desse falso amor, exprime a idéia de possuir. É apenas o desejo de encontrar segurança e conforto psicológico numa pessoa ou coisa, mas tal desejo somente produz apego. Mas, no apego, só existem dor e medo (o medo de perder o objeto possuído), com a conseqüente reação que conduz ao desapego ou ao ódio. Dessa contradição entre apego e desapego, nascem conflito e frustração.

Nada possuir, nem mesmo uma idéia, nem coisa ou pessoa, é uma situação maravilhosa. Sempre que uma idéia ou pensamento cria raízes, existe posse e daí nasce a luta pela libertação (com ansiedade e sofrimento).

A solidão e o isolamento fazem parte do conhecido; deles há freqüentes experiências, reais ou imaginárias. Da solidão nasce a auto-suficiência, que origina cinismo e medo, que dão origem a diferentes deuses. Mas o isolamento ou a solidão voluntários não levam à verdadeira solidão; o nascer desta deve ser tão natural e espontâneo como o nascer de uma flor, livre de motivo ou de busca de recompensa. A verdadeira solidão não surge na mente individual e não é percebida pelo ‘eu’. Na verdadeira solidão ocorre a criação que destrói o ‘eu’ (a memória, o conhecido), e está sempre na área do desconhecido.

“... em meio à conversa, a ‘coisa’ surgiu. Sua presença, extraordinariamente bela e grandiosa, transmitia êxtase inexprimível. Como se tudo estivesse parado, não havia a mais leve agitação, o mais leve pensamento ou visão (experiência dos sentidos). Não existia nem o observador que interpreta, observa, condena ou aprova. Só uma infinita e silenciosa imensidade que transmitia êxtase indizível. Estavam, ali, o começo e o fim de todas as coisas...”.

Seja o que for que façamos, as experiências e os traumas que sofremos não devem deixar marcas (na memória). Suas cicatrizes reforçam o ego e, à medida que envelhecemos, ele se fortalece e torna suas muralhas quase intransponíveis.

No auge da paixão e da sensibilidade é que experimentamos a essência das coisas. E a beleza é tal que está além da palavra e da imaginação. O volume e a forma, a luz, a cor e o som, estão limitados pelo espaço e pelo tempo, presos na contradição da dualismo do belo e do feio. Mas a verdadeira beleza está além do saber e da erudição, além do espaço-tempo, no reino do absoluto.

O sucesso, em qualquer área, no campo político ou religioso, na arte ou nos negócios, é selvagem. A conquista do sucesso produz mais egocentrismo, o que leva à ausência de compaixão e ao sofrimento.

O essencial é a destruição do passado, o total esvaziamento do cérebro, devendo, no entanto, a reação e a memória se dissiparem sem esforço.

O poder emana do ascetismo, da ação, do status, da virtude, da dominação, do mando. Mas, todas essas formas de poder são maléficas, pois corrompem e pervertem. O uso do dinheiro, do talento, da habilidade para obter o poder, ou o poder que de tudo isso emana, sempre é nocivo. Existe, porém, um poder inteiramente diferente. Ele não é adquirido com sacrifícios, virtudes, preces, boas ações ou crenças, nem pela adoração ou por meditações que visem ao auto-conhecimento. Todo esforço para ser ou para vir a ser isto ou aquilo deve cessar naturalmente. Só assim pode existir aquele poder que não representa o mal, aquele poder que é inexprimível (indizível).

É fácil a gente se iludir sobre quase tudo, especialmente sobre exigências, necessidades e desejos mais profundos e sutis. É uma tarefa difícil nos livrarmos inteiramente dessas coisas. Mas, é preciso libertar-nos delas, pois, do contrário, o cérebro cria toda forma de ilusão. Assim, desejar a repetição de uma experiência, por mais bela ou interessante que tenha sido, é criar terreno onde nasce o sofrimento. E a paixão do sofrimento é tão limitante quanto a paixão do poder. O homem adquire aquela força inefável ao libertar-se de toda forma de desejo e vontade, ao compreender que desejo e vontade são reações do ego e, assim, somente levam a conflito e sofrimento.

A ação humana se baseia no desejo, na escolha e na vontade, o que produz conflito, contradição e sofrimento. Toda ação desse tipo tem um motivo, uma causa e, daí, não ser ação pura mas reação, isto é, uma ação contaminada pelo ego. Mas, a ação oriunda daquela força não tem causa, nem motivo; é pura e, por isso, imensurável e é a própria essência da vida.

“A singular presença inundava o quarto... cada recanto de nosso ser estava invadido por aquela força poderosa que tudo purificava com sua ação sagrada. É a coisa que todos desejam e, por desejarem tanto, ela lhes escapa. O monge, o sacerdote, o sanyasi torturam sua natureza no desejo de encontrá-la, mas virtude nenhuma ou oração poderão suscitá-la. É que ela não pode ser adquirida. Toda súplica, toda busca, todo motivo, devem cessar. E essa força, esse amor, não existirá se a morte for o meio de alcançá-la”. (Se o homem morrer para alcançá-la?).

Com os olhos e cérebro treinados para observar, escolher, comparar, medir, avaliar, justificar e condenar, olhamo-nos interiormente, reconhecemos objetos comparando, o que vemos exteriormente, com aquilo que já temos na memória, elaboramos idéias e associações que se transformam em raciocínio. Mas esta operação não vai muito longe, pois se acha dentro dos limites de sua própria observação e razão. Esta contemplação interior ainda faz parte da visão externa e, portanto, as duas não diferem muito. Há, porém, um tipo de observação que é diferente da observação exterior que se reflete no mundo interior. O cérebro e os olhos têm visão parcial e incompleta. Para ter a visão completa, o cérebro deve estar vivo e desperto, sem perder a tranqüilidade; precisa deixar de escolher e de julgar, e deve estar passivamente consciente. Então, aquela visão interior não sofrerá a influência das interpretações do ego; e do clarão da compreensão virá uma nova percepção.

Toda sensação e emoção vêm do cérebro (espaço-tempo), mas não o amor, a compaixao e a inteligência; estes brotam do atemporal.

Porque existe a deterioração, tanto interior quanto exterior? O tempo traz o desgaste e a destruição de todos os sistemas mecânicos; e, pelo abuso ou pela doença, traz o desgaste de toda espécie de vida orgânica. Mas, donde vem a decadência psicológica? Porque escolhemos, tantas vezes, o mal em vez do bem, o ódio em vez do amor, a ambição em vez da generosidade, a ação egocêntrica em vez da ação franca? Porque o ciúme e não o amor? Ver o fato é uma coisa; as opiniões, explicações, interpretações que lhes damos, são outra coisa. Ver o fato dessa decadência é da maior importância, e não o ver as razões e origens desse fato. Perante o fato, a explicação pouco significa e, assim, o satisfazer-se com explicações e palavras é um dos principais fatores da deterioração psicológica. Por que a guerra e não a paz? O fato é que somos violentos. O conflito, tanto o interior quanto o exterior, é nossa vida do dia-a-dia, na forma de ambição, de busca de sucesso, e de frustração. A compreensão profunda, desse fato, e não sua explicação, põe fim à deterioração. A escolha, uma das maiores causas da deterioração psicológica, deve cessar totalmente para fazer parar o processo dessa decadência. O desejo de preencher o vazio interior e a satisfação ou a frustração e tristeza que daí vêm, são, também, fatores desse processo. A percepção dos fatos, sem julgamentos e sem conceitos, põe termo à deterioração psicológica.

“Tamanha a imensidão daquele sentimento que o cérebro não podia nem assimilá-lo, nem se recordar dele... Nenhum pensamento podia corrompê-lo”.

Certas coisas estão bem claras:

1. Precisamos ser “indiferentes” ao aparecimento e ao desaparecimento dos fenômenos, dos acontecimentos, dos fatos do dia-a-dia.

2. O desejo de continuar ou repetir uma experiência, ou de memorizá-la, não deve existir, por mais gratificante que ela tenha sido.

3. É indispensável sensibilidade física e certa indiferença ao conforto.

4. “Deve haver sempre autocrítica e uma boa dose de humor...” (pois estamos sempre sujeitos a insucessos e frustrações).

5. É inútil perseguir a “coisa”, pois o seu surgimento é sempre espontâneo. E, para essa percepção, o cérebro deve estar imóvel e tranqüilo.

É fundamental o ato de ver, mas ver sem discriminar ou comparar, sem conceituar, sem escolher, sem idéias, sem adicionar valores, sem interpretar; essas atividades significam interferência do ego e isto contamina todo o ato de ver. Erradamente, nós só olhamos para as coisas imediatas e, preocupados em satisfazer nossas necessidades básicas, olhamos para o futuro, contaminado sempre pelo passado. Estamos acostumados a ver somente aquilo que está perto de nós. Nosso olhar, como nosso cérebro, é limitado pelo espaço-tempo. Nunca vemos além disso, nem sabemos como fazê-lo. Mas, nossos olhos têm de ver além desse limite, além do limite das idéias e valores criados pelo homem (o que a meditação proporciona), porque, só então, surgirá aquela bênção que nenhum deus pode proporcionar.

Como é fácil nos iludirmos, projetar fantasias, sobretudo quando se trata do prazer. Mas, não existirá ilusão nem decepção se não existir em nós o desejo, consciente ou inconsciente, de experimentar, se nada buscamos, se estamos indiferentes a toda espécie de experiência.

Para que tenhamos maturidade é indispensável que exista:

1. total simplicidade, que vem da humildade; simplicidade não em relação a coisas ou posses, mas na própria essência do ser; simplicidade em tudo;

2. paixão intensa, não apenas física, mas também moral;

3. sensibilidade, tanto em relação às coisas do mundo exterior, quanto em relação àquela beleza que transcende o pensamento e o sentimento;

4. amor, não aquele amor que contém ciúme, apego, dependência, ou que se divide em carnal e divino;

5. uma mente que, sem qualquer objetivo, motivo ou desejo, penetre em suas próprias profundezas, livre para ir além do espaço-tempo.

Essas coisas são adquiridas pela meditação.

Criação não significa paz. Paz e conflito pertencem à esfera do espaço-tempo, ao movimento exterior e interior da existência. O inefável nem mesmo pode ser imaginado pelo pensamento, pois este é o próprio tempo, enquanto a criação o transcende, está além do espaço e do tempo.

A coisa existe; eis tudo. Nada pode freá-la, nem fazê-la surgir. Ela não encerra nem futuro, nem passado, nem presente. Não tem origem, nem direção, nem forma, medida ou qualidade, e abrange todas as visões e todas as coisas. É indiferente, intocável, grandiosa. Sem ela nada existe. Tentar interpretá-la é distorcer a verdade e errar.

O cérebro se alimenta de suas próprias reações e experiências; vive delas mas, tanto a reação quanto a experiência o limitam e o condicionam. Sem a experiência, sem o conhecimento, sem a memória, é impossível agir para as necessidades da sobrevivência; mas essa ação é sempre fragmentada e limitada. A experiência serve apenas para fortalecer o ego. O ato de experimentar é condicionado pela experiência, pelo passado (porque o ego interpreta tudo que experimenta em face do conhecimento que já possui). Estamos, assim, atados ao passado, àquilo que já é conhecido. A liberdade está no esvaziar a mente de toda experiência (pensamento, memória, emoção, imaginação, isto é, de todo condicionamento). Quando o cérebro cessa de alimentar-se da memória e do pensamento, quando morre para o ato de experimentar, sua atividade deixa de ser egocêntrica e vai buscar forças em outras fontes. Isso é o que torna a mente religiosa. Quando cérebro está livre do tempo, por terem cessado suas reações e associações, surgem a inocência e o amor.

A criação não é para os talentosos nem para os bem dotados; esses conhecem a criatividade, não a criação. A criação é incomunicável. Criar é ir além do pensamento, da imagem e da palavra. Logo, o cérebro não dispõe de meios para entrar em contato com a criação. Para a criação, o conhecimento é obstáculo, mas, sem o auto-conhecimento, nada se cria. O afiado instrumento do intelecto nem mesmo pode imaginar a criação. Escrever um poema não é criação. Esta só vem com o findar de toda atividade cerebral; não deve restar nem sombra de conflito ou imitação. A criação resulta da morte total (não fisiológica, mas morte (esquecimento) de tudo isso que chamamos vida; do conhecido, do passado, do que somos).

“... No instante em que descansávamos, contemplando as nuvens, surgiu, de repente, aquela bênção pura. Inundou completamente a sala e o coração; de intensidade envolvente e penetrante, sua beleza derramava-se sobre a terra... Sentimos alegria irreprimível; não havia causa, sentimentalismo, nem emoção que a ocasionasse. Era uma alegria pura, simples, imaculada, rica, inocente. Por trás dela, não havia pensamento ou motivo, nem podíamos compreendê-la, pois era inteiramente gratuita. Essa imensa alegria jorrava de todo nosso ser, cujo interior estava completamente vazio... jorrava sem direção; mas, ao conhecê-la, o coração e a mente jamais serão os mesmos”.

A consciência não pode conter a imensidão da inocência; não pode buscá-la nem cultivá-la, mas pode recebê-la. A totalidade da consciência tem de aquietar-se, e fazer cessar todo desejo e busca. “Aquilo” surge quando a consciência silencia. Meditar é esvaziar a consciência, mas sem a intenção de receber e, sim, para desfazer-se de toda finalidade, propósito e motivo. É preciso haver espaço para o silêncio, espaço que surge com a destruição do pensamento e de suas associações. Só nesse vazio ocorre a criação. Mas essa destruição tem de ocorrer naturalmente, espontaneamente, sem esforço.

Costumamos olhar de fora para dentro, isto é, vemos um fato ou coisa, fora de nós e, em seguida, reagimos, interpretando-o, conceituando-o, comparando-o; passamos de um conhecimento para outro, sempre acumulando e o ato de suprimir é, ainda, processo de acumulação. Nossa consciência é formada por milhares de lembranças e reconhecimentos (associações); é a percepção da folha trêmula, da flor, do homem que passa, da criança correndo; a percepção do rochedo, do rio, do céu, do mar, do vento, do odor desagradável ou bom, da melodia, das cores. Com esse processo de experimentar e reconhecer em face das reações exteriores e interiores, procuramos tomar consciência do mundo interior e tentamos penetrar mais e mais na profunda vastidão da mente. Mas, todo esse processo de experimentar e reconhecer está ainda na consciência, que é limitada pelo espaço-tempo. Conhecemos a consciência pelos sinais interiores, pela profundidade e complexidade de pensamento e sentimento. Mas, tudo isso é ainda só a forma externa da consciência; partindo do exterior estamos tentando descobrir o interior. Será isso possível? Teorias e especulações nada significam; são mesmo obstáculos a todo descobrimento. A partir do conhecido tentamos chegar ao desconhecido. Mas não existe, em nosso cérebro, nenhum instrumento ou mecanismo capaz de realizar essa proeza.

O presente é a sombra de ontem, que se prolonga até o amanhã, um tanto alterada, mas conservando as características de ontem. O cérebro, como só vive no passado, nada mais é que passado. A consciência está sempre armazenando, acumulando, interpretando aquilo que recebe; ela não pára de receber de todos os sentidos e da memória; de acumular, de experimentar, de julgar, comparar, planejar, modificar. Ela não vê apenas com os olhos mas, também, com todo o acúmulo de informações e conhecimentos já armazenados na memória (interpretações). Receber e acumular informações, na forma de imagens, sons etc, é a própria razão de sua existência. Guarda tudo aquilo que tem recebido ao longo dos séculos - instintos e defesas - na memória genética, sempre acumulando, ou rejeitando com a intenção de acumular mais. Ao voltar-se para o mundo exterior, ela o faz para julgar, medir ou comparar. E, voltando-se para o interior, o faz com aquela mesma visão exterior, que pesa, mede, compara e julga. E não tem fim esse processo, no qual há um misto de fugaz alegria e de sofrimento.

Mas, observar, ver e escutar sem a interferência da consciência (do ego) - uma ação que não visa receber - faz parte do movimento que leva à liberdade. (‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’). Esta ação não tem ponto de partida e, assim, age em todas as direções, sem a barreira do espaço-tempo. É completo seu ato de escutar e ver. Disso nasce a atenção. Já, da concentração nasce o conflito criado pela distração, exclusão e escolha.

Expresso ou não, verbalizado ou buscando expressão, o pensamento é a própria mente localizada. Ele nunca está quieto; a ação, que se expressa nas formas de pensamento, intensifica o seu processo de reação. Mas, haverá beleza no pensamento? A beleza e o amor que o pensamento conhece são os opostos da feiúra e do ódio. Mas, na dimensão onde existe verdadeira beleza e verdadeiro amor não existem opostos.

Ver, sem interferência do pensamento ou da reação da memória (do ego), difere totalmente do ver baseado no pensamento e na sensação. É superficial o que se vê com o pensamento. Ver, sem o pensar, é visão integral. E isso é totalmente explosivo. Para ver e ouvir verdadeiramente, a consciência deve aquietar-se, condição essencial para que surja a criação destruidora (das ilusões e do sofrimento). Isto é a totalidade da vida (o nível da mente total, como fala Wilber); o pensamento é apenas um fragmento disso.

“Aquela estranha bênção surge espontaneamente e é sempre diferente”.

A essência do pensamento é aquele estado em que não existe nem pensador, nem pensar. Por mais profundo e elevado que seja o pensamento, ele jamais deixará de ser frívolo e superficial. Aquela essência surge com o cessar do ato de pensar. Contudo, não existe método nem sistema capaz de fazer cessar o pensamento.

A essência do ser é o não-ser, e para “ver” a totalidade do não-ser, deve o homem libertar-se do desejo de “vir-a-ser” (isto é, a essência do ser é o próprio universo, o todo; para se compreender a totalidade, o todo, deve o homem libertar-se do desejo de vir a ser aquilo). Não há liberdade se existe continuidade (do ser, memória, ego), pois tudo que continua é limitado pelo tempo. Toda experiência prende o pensamento no tempo, e só a mente livre do desejo de experimentar é que pode perceber sua própria essência. Esse estado psicológico, que é o cessar de buscar a experiência, não significa paralisia mental; ao contrário, é o começo do fim da mente acumulativa (de experiências) e condicionada. Acumular é ato mecânico, repetitivo. Torna-se livre a mente que destrói esse mecanismo de acumulação e defesa e, assim, permanece indiferente ao ato de experimentar.

O que deve existir é a percepção do fato, e não a experiência do fato; a opinião sobre o fato, sua avaliação, considerá-lo belo ou feio, agradável ou ruim, é experimentar, reagir ao fato. E isso significa interpretar o fato, fugir dele. Porém, ver um fato sem a interferência do pensamento ou emoção, sem avaliá-lo, sem analisar se é bom ou ruim, é fenômeno profundo e grave. A experiência, isto é, interpretar o fato, é coisa tola, imatura e sem valor; é algo que se perde ou se ganha com a maior facilidade.

A maturidade não resulta do tempo, nem é questão de idade ou de cultura. Nem livros, nem instrutores, nada e ninguém pode nos dar maturidade. Ela não é um fim em si mesma; e vem sem que o pensamento a procure; chega de súbito, imprevistamente. E é imprescindível haver, na vida, esse amadurecimento, que não resulta da doença ou do sofrimento, nem do esforço ou da esperança. Nele existe austeridade; não a austeridade da penitência ou do hábito religioso, mas da displicente e espontânea indiferença para com as coisas mundanas, frente a suas virtudes, seus deuses, sua respeitabilidade, esperanças e valores. Cumpre negar tudo isso para que nasça a austeridade contida no estar só. Estar só é viver livre de qualquer influência (de livros, gurus, crenças, opiniões). Essa solidão é a essência da austeridade, e surge quando o cérebro funciona com clareza, não perturbado por traumas psicológicos causados pelo medo e pelos conflitos.

Todo conflito destrói a sensibilidade e a energia do cérebro; a ambição, com seu incessante esforço de vir-a-ser algo mais, provoca desgaste do seu delicado mecanismo; a avidez e a inveja o perturbam através do prazer e da frustração. É essencial uma atenção sem escolha, uma percepção livre da idéia de receber ou de ajustamento a um padrão. Também, comer em excesso ou deleitar-se com alguma coisa, perturba o corpo e deixa o cérebro insensível.

“A coisa vem quando o cérebro não a está buscando, quando nem sequer estamos pensando nela...”.

A imaginação não tem qualquer valor e é perigosa; só o fato tem valor. A fantasia e a imaginação podem dar prazer, mas sempre decepcionam. Importa compreender a fantasia e a imaginação pois, no próprio ato de compreender, elas desaparecem. O cérebro deve cessar com sua incessante e habitual tagarelice do certo e do errado, do bom e do mau, do interpretar e comparar.

Experimentar sem o experimentador é algo completamente novo; nessa condição é que surge a ‘luz’. Não se trata de intuição, na qual o observador aceita, interpreta e obedece, de modo racional ou cego. Não é desejo, ânsia, que interpretamos como intuição ou “voz de Deus”. É preciso abandonar, duma vez, tudo isso que impede a compreensão desse sentimento, dessa percepção, desse estado de atenção; estado de atenção, pois “sentir” exige o rigor da lucidez, de um cérebro livre de qualquer confusão ou conflito.

Só se pode sentir a essência das coisas quando há humildade para investigar, até o fim e sem desvios, o sofrimento, a inveja, o medo, a violência, a ambição. O cérebro, porém, não possui essa humildade. Essa investigação requer a mais elevada forma de simplicidade, não aquela de vestir a roupa do mendigo ou de fazer apenas uma refeição por dia. É necessária a destruição de nossas defesas psicológicas, das resistências, das crenças e de seus deuses. Sem isso, nunca viremos a conhecer aqueles mistérios que são a vida e a morte, o amor e a beleza absolutos.

Meditação é a atenção em que existe um estado de consciência (de atenção) sem escolha no movimento de todas as coisas - o canto dos pássaros, o serrote cortando a madeira, a agitação das folhas, o vento, o barulho do riacho, o menino gritando, os sentimentos, os motivos, os pensamentos contraditórios e, indo mais fundo, a percepção da consciência total. Nessa atenção, o tempo deixa de existir, e as distorções, interferências e movimentos da consciência (mente) se aquietam e silenciam. Nesse silêncio existe um movimento incomparável e imenso, imperceptível, que constitui a própria essência do sagrado e da vida total.

“Íamos começar a almoçar, quando ela penetrou pela porta aberta da sala. Podíamos senti-la fisicamente qual uma onda a invadir o quarto. Tratava-se de uma intensa e crescente energia, de poder destruidor. As palavras não são a coisa, e a realidade é verbalmente inexprimível; ela deve ser vista, ouvida, sentida...”. “... não se tratava da morte do corpo; isso seria um acontecimento bem simples; mas a morte que destrói (o homem velho) dando lugar à criação...”

Aquilo que tem continuidade significa decadência, automatismo, ambição, hábito. Aí existe a corrupção, mas não a morte. A morte é o nada absoluto, é o vazio do qual desabrocham a vida e o amor. Sem a morte total, não há criação.

A meditação não é busca ou pesquisa. É uma explosão e um descobrimento. Não é o ajustamento do cérebro ou uma análise introspectiva. Também não é concentração, que acumula e escolhe. É uma coisa que vem naturalmente ao compreendermos, e em conseqüência abandonarmos, as afirmações e realizações positivas ou negativas. Só acontece com o total esvaziamento do cérebro. Nada o cérebro pode criar enquanto não estiver limpo de todas as coisas que acumula para proteger a existência egocêntrica. O importante é esse esvaziamento e não o que se encontra no vazio; só, então, se pode perceber esse vazio. Daí brotam todas as virtudes - não as virtudes aprovadas pela moralidade vigente, nem as virtudes da respeitabilidade social. Desse vazio brota o amor; do contrário não é amor. Esse vazio é o princípio e o fim de todas as coisas (é a ausência do ‘eu’; e, quando o ‘eu’ não está, ‘Deus’ está: ‘Aquieta-te e sabe: Eu sou Deus’).

Uma coisa é o silêncio mecânico provocado por nós; outra coisa é o silêncio do vazio. O silêncio provocado por nós é repetitivo, habitual, corruptor, forçado; o cérebro, quando exausto e em conflito, procura-o como refúgio. O silêncio do vazio é explosivo, criativo e nunca é o mesmo. Não podemos buscá-lo e ele jamais se repete; portanto, não oferece nenhuma segurança.

Porque essa luta incessante em busca da perfeição? Não se tratará, apenas, de uma idéia transmitida pelo sacerdote ou pelo guru a fim de que o homem se mantenha disciplinado e sociável? Na busca de perfeição o que na verdade se procura é segurança, conforto, aplausos e reconhecimento; assim, ela é sempre lucrativa para aquele que a busca. Um hábito mecânico, praticado repetidas vezes, acaba por atingir a perfeição. Mas, só se pode aperfeiçoar o hábito; pensar, acreditar sempre na mesma coisa, acaba por se tornar automático. Será essa a perfeição que todos desejam? A perfeição é uma forma ambicionada de bom êxito, e é exaltada pelos respeitáveis e pelos que atingem o sucesso. No entanto, a tentativa de atingir a perfeição significa, realmente, o desejo de chegar nos primeiros lugares, bater o recorde, como numa competição. É como estar competindo com o semelhante ou com os santos, para atingir a perfeição, e isso é, erradamente, considerado ato de fraternidade e amor, ato enaltecido pelos respeitáveis. Mas cada passo para se chegar à perfeição só produz frustração, e leva a confusão e sofrimento, o que aumenta o desejo individual de se tornar mais perfeito. Sempre desejamos ser perfeitos em algum sentido. Isso equivale a um meio de preenchimento (do vazio existente em nós), e o prazer resultante é vaidade, orgulho, de onde vai nascer mais frustração e sofrimento; pois o desejo de perfeição, exterior ou interior (que se assemelha à competição), nega o amor e, sem amor, não importa o que se faça, há sempre frustração e sofrimento.

O amor não é nem perfeito, nem imperfeito; só quando ele está ausente é que surgem estes dois opostos. O amor jamais busca a perfeição. Ele é chama límpida e pura, enquanto o desejo de atingir a perfeição é apenas fumaça que esconde a realidade ante nossos olhos. Desse modo, a perfeição está no esforço mecânico do hábito, na imitação e no medo crescente (medo de não atingir a perfeição, medo de ficar para trás, de ser menos que os demais). No mundo educa-se para a competição e para o sucesso; o objetivo, o motivo, adquire tanta importância que o amor, à coisa em si, desaparece. É como se um instrumento musical não seja usado por amor à melodia, mas por aquilo que representa para o músico em termos de fama, prestígio, lucro e poder.

O importante é ser e não o vir-a-ser. Ao findar o esforço para vir-a-ser surge a plenitude do ser (Como diz Benoit, a salvação se efetiva quando abandonamos todo esforço em busca da salvação). O esforço para vir-a-ser deve cessar; daí nascerá aquilo que transcende os limites da moral e da virtude social.

A meditação é a ausência do eu, do ego, a morte; é o silêncio do vazio interior. O cérebro, o pensamento, não pode, de maneira nenhuma, gerar esse silêncio, que somente surge com o parar do funcionamento do cérebro, parar que deve ser espontâneo, sem motivo, sem esperança ou garantia de recompensa. Essa é a única maneira de o cérebro permanecer sensível, vivo e tranqüilo. Faz parte da meditação a compreensão, pelo cérebro, de suas atividades superficiais e profundas, o auto-conhecimento; nisto consiste a base da meditação e sem o auto-conhecimento que a meditação pode trazer tudo se torna sem significado e conduz à auto-ilusão e à auto-hipnose.

A maturidade não vem com a idade ou com o tempo. Não existe um tempo entre o agora e o amadurecimento. A maturidade é aquele estado no qual cessou toda a escolha; só os imaturos escolhem e, assim, ficam conhecendo o conflito que nasce da escolha. Na maturidade só existe uma direção a ser seguida: aquela que não vem da escolha. Qualquer espécie de conflito revela imaturidade. Não existe amadurecimento psicológico; pois não existe evolução psicológica; o que existe é, apenas, esse processo orgânico e natural de crescimento, com a inevitável acumulação de conhecimentos, o que nos traz maior compreensão das coisas do mundo, mas não do intemporal. Maturidade é a compreensão que transcende todo e qualquer conflito, seja ele interior ou exterior.

O conflito, a frustração e o preenchimento formam um só movimento, tanto interior quanto exterior. O conflito deve ser compreendido em sua inteireza, não apenas intelectualmente, mas no contato vivo e real com sua essência. Esse contato emocional e direto com o conflito, com a crise, deixa de ocorrer se simplesmente nos limitarmos a aceitá-lo intelectualmente, ou a negá-lo de forma sentimental, ou a fugir dele. A aceitação ou a rejeição não alteram o fato, e nem o raciocínio ou a imaginação podem provocar a crise necessária para que o compreendamos em sua totalidade. Isso só vem com a percepção pura do fato. Essa percepção não acontece se houver identificação com o fato, condenação ou aprovação. Ela só é possível quando o cérebro cessa sua atividade, limitando-se a observar, deixando de classificar e interpretar, de julgar e avaliar. Existirá, necessariamente, conflito enquanto houver desejo de preenchimento, com sua inevitável série de frustrações; enquanto existir a ambição, com seu disfarçado espírito de competição, enquanto houver inveja e o enganador desejo de vir-a-ser.

A compreensão independe do tempo; está sempre no presente, nunca no amanhã; é agora ou nunca; deixada para depois, sofre a interferência do ‘eu’ e se deteriora. Desde que cesse no cérebro o julgamento e a interpretação do ato de “ver”, o ‘ver’, ter percepção, compreender, é instantâneo. O “ver”, isto é, o compreender profundamente, independe de raciocínio. Na maioria das vezes, é o medo que impede o “ver”, que impede a compreensão. O medo, com suas defesas e sua coragem, é origem de conflito. O “ver” não vem do cérebro; o “ver” não é nosso, é atemporal. E a percepção do fato, não contaminada, cria sua própria ação, sempre correta, completamente diferente da ação baseada no raciocínio ou no pensamento; esta provoca conflito sem fim.

Existe paixão quando não há nenhuma exigência interior. Roupa, alimento e abrigo são necessidades básicas de sobrevivência, não exigências psicológicas; estas se traduzem nos secretos desejos e anseios que conduzem ao apego. O sexo, a bebida, a fama, a idolatria, com toda sua complexidade; o desejo de auto-preenchimento, seguido da inevitável ambição e frustração; a busca dos deuses e da imortalidade, todas estas formas de íntimas exigências (psicológicas) geram o apego, origem do medo, do sofrimento e da solidão. A necessidade de auto-expressão através da música, literatura, pintura ou outro meio qualquer, conduz a desesperado apego a esse meio. O músico que usa seu instrumento para alcançar fama, ou glória, deixa de ser músico; ele não ama a música em si, mas sim o lucro que ela lhe dá. Utilizamos uns aos outros de acordo com nossas necessidades e disfarçamos essa mútua exploração com palavras agradáveis e melodiosas; e isso dá origem a mais conflito e a mais sofrimento.

Apelamos para Deus como refúgio, ajuda ou um remédio qualquer, e assim, a igreja, os sacerdotes e as religiões, adquirem enorme significado, quando, na realidade, nenhum significado têm. Para atender nossas íntimas necessidades psicológicas, fazemos uso de tudo, das pessoas, máquinas, técnicas, sem que tenhamos nenhum amor por elas; só por nosso interesse egoísta. E assim é nosso dia-a-dia. Daí porque há tanto conflito e sofrimento em nossa vida.

Só existe amor quando não há nenhuma forma de utilização, exploração ou dependência. As exigências psicológicas, com sua inconstância e sua eterna busca, que levam à substituição de uma dependência por outra, de uma crença por outra, de um compromisso por outro, é a própria essência do “eu” (é o que forma e o que é o “eu”). Adotar uma idéia, um método, um dogma, ou pertencer a alguma seita - o que mostra, como se supõe, desprendimento e altruísmo -, é a origem e a essência do eu. Isso não passa de disfarce, de máscara. O homem atinge a maturidade ao libertar-se de todas essas exigências psicológicas. Dessa liberdade nasce uma paixão pura; pura porque livre de motivo e de busca de recompensa.

A maioria questiona apenas o superficial. Outros vão mais longe, e outros negam tudo. Contestar certos fragmentos da existência é relativamente fácil: a igreja com seus deuses, a autoridade e o poder que dela emanam, o político, com suas atividades egocêntricas. Podemos ir longe na contestação de valores que aparentam ter importância, como as relações sociais, os absurdos praticados pela sociedade e pelos governos, o conceito do belo firmado pelos críticos ou pelos que julgam saber. Mas, é possível deixar de dar atenção, abandonar tudo isso e ficarmos sozinhos, não no sentido de isolamento e frustração, mas por termos compreendido o seu significado, sem esforço ou sentimento de superioridade, na certeza de termos esgotado a questão, de termos investigado cada coisa até o fim.

E, como é importante negar! Negar sem desejar recompensa, sem alimentar a amargura ou a esperança nascidas da experiência e do saber. Negar é ficar só, sem preocupar-se com o amanhã. É fundamental ficar só, livre de qualquer padrão ou método, qualquer experiência, qualquer dependência; é o único meio de libertar a consciência da escravidão ao tempo. Rejeitar a experiência e o conhecido é penetrar no desconhecido. O negar é de efeito imediato, explosivo; não se trata de exercício intelectual; no próprio ato de negar há energia, energia da compreensão, energia que jamais cede diante do medo e do conformismo. É devastadora a negação; ela não mede conseqüências, nem exprime uma reação, não sendo, pois, o oposto da afirmação. Na contestação não há escolha e, assim, ela não surge do conflito dos opostos. Escolha é conflito e vem da imaturidade. A nossa libertação do conhecido decorre da completa negação do pensamento, da idéia e da palavra, do ‘eu’. O amor nasce da total negação e da total recusa à emoção, à imaginação e ao sentimentalismo.

Pouca gente admira as montanhas, as flores, as nuvens, o pôr do sol, as estrelas, a lua. A maioria olha, sem ver, e passa adiante. O ato de ver exige humildade e inocência. Lá está aquela montanha iluminada pelo sol, e poder vê-la como se jamais a tivéssemos visto, vê-la com o olhar livre do passado, livre da memória acumulada, é uma maravilhosa experiência. A palavra experiência aqui é inadequada, pois é, erradamente, impregnada de emoção, saber, reconhecimento e da idéia de continuidade; mas não se trata de nada disso. Referimo-nos a alguma coisa totalmente original, nova. Para vermos o novo é necessária a humildade jamais contaminada pelo orgulho ou vaidade; a humildade que faz surgir a inocência.

A humildade não é uma virtude cultivável, nem pertence ao campo da moral social ou da respeitabilidade. Mesmo os santos a desconhecem, pois aceitam louvores por sua santidade. Aquele que adora uma imagem ou um ser mais elevado não é humilde pois está, sempre, a pedir, a implorar, a mendigar. O acúmulo de bens, experiências ou aptidões, nega a humildade.

O ato de aprender está livre do processo de acumulação, mas a aquisição de conhecimentos não está. O saber, o adquirir conhecimentos, é de natureza mecânica; o aprender é de instante a instante. Havendo comparação (avaliação, medição, julgamento, conceituação, classificação), cessa o ato de aprender, que é fruto de percepção imediata e instantânea, fora dos limites do tempo, e que, por ser instantâneo, não tem a interferência do eu.

A humildade não admite comparação; é impossível cultivá-la e não se pode falar em mais ou menos humilde. A moral e a técnica podem ser cultivadas e avaliadas. Mas a humildade, como o amor, está além dos limites do cérebro e, portanto, nele não pode estar; está além do ego.

A meditação é fenômeno extraordinário desde que seja sem direção e sem propósito, sem causa ou motivo, sem método preestabelecido (espontânea, sem esforço e inconsciente). É a morte sem retorno, ação devastadora que atinge todos os recantos mais secretos do pensamento e da memória. Na meditação o tempo cessa; não existe o amanhã. Isso é meditação e não essa tola e calculista atividade do cérebro que busca segurança. A meditação destrói toda segurança. Nela existe grande beleza, não a beleza criada pelo homem ou pela natureza, mas a beleza vinda do vazio, de onde surgem todas as coisas. Toda e qualquer operação mental, dentro do espaço-tempo, tem de cessar. Meditação significa risco e destruição para aqueles que querem levar uma vida acomodada, superficial, de ilusão e sonho.

A morte é inevitável. Podemos tentar esquecê-la, racionalizá-la, ou acreditar na reencarnação ou na ressurreição. Mas, quer busquemos refúgio nas religiões, nos livros, ou onde for, ela estará presente em todos os momentos da vida. É necessário conviver com a morte para conhecê-la. Nosso medo impede que ela se revele. De nada serve o acúmulo de conhecimentos. Há sempre um limite, mas não para a morte. Amar não significa aceitarmos a morte; não podemos habituar-nos com a destruição. Para nós é impossível amar o desconhecido (pois não o conhecemos). Mas, na verdade, nada conhecemos, nem a nós mesmos, nem os seres mais íntimos. Entretanto, é preciso amar o desconhecido. Porém, só amamos aquilo que nos traz segurança e conforto. Temos aversão à insegurança e ao desconhecido, pois temos medo deles. Podemos apreciar o perigo, dar a própria vida por alguém, matar em defesa da pátria, mas nada disso é amor. Há sempre, nessas ações, o desejo de recompensa, de reconhecimento e, sobretudo, de satisfação pessoal.

Mas, sabemos o que é o amor? Nós conhecemos a sensação de ter alguém, a emoção, o desejo, o sentimento e o processo mecânico de pensar nesse alguém, mas nada disso é amor. Dizemos amar nosso marido, nossa esposa, os filhos; odiamos a guerra ao mesmo tempo em que a fazemos. Nosso amor contém ódio, ciúme, inveja, ambição e medo; logo, isso não é amor. Amamos o poder, a fama, males que corrompem. Mas, o amor é o desconhecido com sua extraordinária beleza. Penetrar nesse desconhecido significa não mais estar no desespero ou na dúvida. É morrer para o passado e, portanto, viver na total incerteza do amanhã, pois saberemos que tudo é incerto. Para o amor e a morte não há continuidade. Somente a memória e o quadro na parede têm continuidade mas isso, como acontece com todas as coisas mecânicas, produz desgaste, dando lugar a novos quadros e novas memórias. Continuidade é deterioração, e esta não pode conter a morte, nem pode conter a vida.

“Do estado de absoluta atenção e silêncio surge o novo, surge a criação”.

A meditação não é atividade egocêntrica geradora de desatenção e conflito; nada tem em comum com a ausência de pensamento da criança absorta em seu brinquedo. Também não é recurso a ser usado para aquietar a mente. Está muito além disso. O auto-conhecimento é o princípio da meditação.

Viver é perceber a totalidade que contém o fragmento. Mas, o que acontece é exatamente o oposto: vivemos grudados ao fragmento, e com isso queremos atingir o todo, a totalidade. Só conhecemos o fragmento, que é sempre estreito, limitado, mas através dele buscamos, sem sucesso, o desconhecido, o absoluto. Jamais abandonamos o conhecido, pois nos traz a ilusão de segurança, quando, na verdade, tudo em que confiamos pode falhar, até as coisas mais simples, em particular no campo das relações humanas, das crenças e dos deuses de nossa criação, onde tudo é impermanente e imprevisível. Em face do receio da impermanência, vivemos numa incessante busca de segurança psicológica, o que constitui a essência do conflito. É importante compreender o mecanismo criador da ilusão de que existe segurança em alguma situação ou lugar, para que essa ilusão não se torne uma coisa real para nós.

Não se pode discutir com o fato. O que é falso deve ser posto de lado, não por desejarmos a verdade, mas por lhe percebermos a falsidade. Isso não é um ato de renúncia, mas um ato de inteligência.

Compreensão é maturidade, é ausência de conflito e de sofrimento.

Não há começo nem fim na meditação; nem bom êxito, nem insucesso; nem ganho, nem perda. É movimento livre de objetivos, pois nem mesmo pertence ao “eu”, já que ela está além do tempo e do espaço. A meditação não pode ser experimentada, pois o ato de experimentar pertence ao ‘eu’ e é limitado pelo tempo, espaço, memória e reconhecimento. A meditação ‘surge’ da observação passiva realizada pelo “eu” quando está livre da autoridade, da ambição e do medo. Sem liberdade e sem auto-conhecimento, não pode haver meditação. Enquanto existir escolha, não haverá auto-conhecimento, auto-compreensão e, por conseqüência, não há meditação. A compreensão vem “do que é” quando cessa o conflito da escolha. O romantismo, a fantasia, a poesia e a crença - tudo que desperta emoção - nega a meditação, pois a emoção distrai. O movimento da meditação nasce da atenção total.

A beleza da flor está na forma, no perfume, na cor, que se percebe de imediato; isso é a flor não contaminada, pura. Ter memória do que ela foi, associá-la com as imagens da memória, não é a verdadeira flor. A meditação é a beleza pura da flor, isto é, a percepção não contaminada, pura.

O conhecimento arquivado na memória é obstáculo ao percebimento do novo, é barreira à criatividade. Embora indispensável para a sobrevivência, ele não nos ‘salva’ porque pertence ao passado. E, além disso, jamais conduzirá à verdade, pois não existe método, artifício ou conhecimento capaz de fazer isso. Para que haja ordem no mundo caótico em que vivemos é necessária a virtude, que é ausência de conflito. Mas, nem a virtude extrema nos leva à imensidão do desconhecido. Para isso, é necessário esvaziar o cérebro do conhecimento e do pensamento, sem, contudo, esperar qualquer recompensa. É fundamental que o cérebro fique vazio. O método e a busca devem cessar, para que floresça o vazio criador, livre do centro (o ego) que calcula e avalia, mede e compara. Como o amor, o vazio daquela imensidão surgirá mansamente, sem princípio e sem fim, irradiando energia inesgotável.

A meditação não é um processo de concentração; esta implica resistência, exclusão, isolamento e conflito. Durante a meditação, pode acontecer que a mente se concentre, sem excluir ou resistir, mas a concentração inicial impede que a meditação venha. Meditação é movimento de liberdade natural, que cessa quando volta o observador. Na ausência do meditador, a meditação é veloz e imensurável movimento, que está além de qualquer símbolo, pensamento, sentimento, raciocínio ou emoção; além do espaço e do tempo.

Até na morte desejamos ser importantes; não há limite para nossa vaidade e presunção. Almejamos a fama e o poder ou a amizade daqueles que os possuem. Queremos que nosso poder e nossa fama sejam percebidos; isto é o que lhes dá significado. Desejamos a aprovação de todos ou daqueles que dominamos. O poder é o eterno mal exercido pelo político, pelo santo ou pela mulher sobre o marido, e vice-versa. Apesar de destruidor, todos desejam ardentemente possui-lo, e aqueles que o possuem querem sempre mais.

É preciso desenvolver uma sensibilidade capaz de responder prontamente aos desafios da vida, mas que não interfira no nível psicológico (coisa que só se adquire pelo auto-conhecimento que a meditação proporciona).

Para nós, é insondável a ação do desconhecido, pois o infinito é inacessível ao pensamento. Na absoluta quietude do cérebro, quando por demais sensível, o pensamento cessa sem que isso represente a morte; daí nascem a renovação e uma diferente qualidade de pensar que destroem todo o sofrimento.

Desejamos só o conhecido, aquilo que não é o verdadeiro. Inacessível aos crentes e filósofos, esses teóricos da vida, a paz não é uma reação contrária à violência. Para que exista a paz, os opostos e o conflito da dualidade devem cessar. É natural a dualidade no campo da matéria, como a que existe entre claro e escuro, homem e mulher, mas o conflito dos opostos, no campo psicológico, é totalmente desnecessário e nocivo. Esse conflito surge do vazio interior e da ânsia de preenchimento, do desejo sexual, da busca de segurança psicológica, que dão origem ao atrito dos opostos. A fuga ao conflito dos opostos, do apego para o desapego, a busca das virtudes, são métodos prescritos pela religião e pela própria lei, como forma de aquietar a aflição do homem. Mas, essa ordem estabelecida pela lei é superficial, e é apenas ilusão a tranqüilidade que a religião oferece à mente confusa. Nada disso se compara à paz que vem da ausência de conflito, na qual toda forma de necessidade psicológica deixa de existir, e dá lugar ao vazio criador. O mecanismo psicológico da resistência interna e da busca de segurança deve cessar para que, de seu vazio, surja a verdadeira paz.

A quietude surge quando existe paixão, que dá intensidade à meditação. Meditar não é analisar uma idéia ou conceito; é ir além do pensamento; é penetrar no desconhecido, pertencer ao infinito.

Inteligência não é capacidade de inventar, nem memória ou mero exercício mental ou verbal. Por mais informados e hábeis que sejamos em certos aspectos, somos ignorantes em outros. O acúmulo de conhecimento, a competência, a aptidão e o talento, não refletem, necessariamente, uma mente inteligente. Mas, a sensível percepção da vida, de seus problemas, contradições, suas aflições e alegrias, isso revela sabedoria e inteligência. Estar consciente disso tudo, sem escolha, sem ser perturbado pela complexidade das questões vitais, sem resistir ao fluir avassalador da vida, é ser inteligente. Implica não ser dependente das circunstâncias e, portanto, ser capaz de compreender e de libertar-se da influência e das condições do ambiente. A inteligência nasce da destruição do passado psicológico; essa destruição é a essência da inteligência, e a falta de inteligência produz sofrimento na ação pois, quando agimos sem ela, criamos conflito e sofrimento, que são negação da inteligência e indicam imaturidade.

A ignorância vem da falta de auto-conhecimento, esse aprender sem fim. Não nos referimos ao acúmulo de saber, que cria e reforça, inevitavelmente, o centro do conhecimento, da experiência, o ego; nesse processo acumulativo não há lucidez. Com a compreensão do processo do pensar e do sentir, ao cessarem a resistência e o desejo de mais e mais, vêm o auto-conhecimento e a inteligência. O auto-conhecimento, como ação no presente, difere totalmente da autocrítica exercida pelo centro nascido da experiência e do saber, no qual o passado, vindo à tona (por associações), impede a compreensão dos fatos do presente.

“Nada se compara ao ar puro e à beleza dos campos, das matas e florestas, longe do ruído do tráfego e da poluição das cidades. O período de adaptação ao ritmo da cidade dificulta o aparecimento daquela força”.

Tempo e pensamento (ego) são inseparáveis. É impossível destruir um sem destruir o outro. Não se pode dar-lhe fim por um ato da vontade, por ser a vontade o próprio ego em ação. O pensamento significa acúmulo de memória e de experiência; é reação da memória, é condicionado, mecânico, e desconhece a liberdade. Está preso ao conhecido, que vem do passado e é condicionado por este; projeta a ilusão de um futuro e constrói sua prisão, modesta ou luxuosa. O pensamento é incansável no eterno esforço de aprimorar-se e controlar suas fantasias, inventar seu próprio padrão e ajustar-se ao ambiente. É incapaz de transcender a si mesmo, pois suas atividades, mesmo as mais amplas, nada trazem de novo pois nunca vão além do limite da memória. Esta é indispensável para a sobrevivência física do homem; mas é destrutiva no campo psicológico, porque a atividade egocêntrica do pensamento corrompe toda ação (que nunca será sem motivo).

A sensível percepção da totalidade da vida, seus problemas, contradições, aflições, alegrias, revela sabedoria. Estar consciente de tudo isso, sem escolha, é ser inteligente. A mente é sempre prisioneira do tempo, mas a inteligência derruba todas as barreiras, pois age livre de qualquer objetivo de ganho. A inteligência nasce da eliminação do pensamento e do tempo psicológico; sem inteligência, qualquer transformação é só continuidade modificada do que foi.

A compreensão das necessidades psicológicas é de vital importância. A satisfação das necessidades básicas de alimento, roupa e abrigo, é necessária. Mas, existirão outras necessidades? Mesmo que estejamos sujeitos ao conjunto das exigências psicológicas, devemos questionar sua validade. Será inevitável vivermos sob a pressão das exigências do sexo, da busca de preenchimento, da ambição, inveja, avidez, competição, de ser mais e melhor do que somos? Através dos tempos, o homem fez disso sua vida e esse padrão de existência é incentivado pela sociedade, pela religião e pelos psicólogos. Como somos condicionados e medrosos, não resistimos a esse apelo e aceitamos essa maneira de viver. E a fuga e a encenação tomaram lugar em nossa vida. A busca de preenchimento, a necessidade de ser alguém, nascem do medo do futuro, do medo do desconhecido. São inúmeras as necessidades psicológicas que se multiplicam e se modificam constantemente (pois são artificiais, criadas pela sociedade e pela cultura). Eis porque todo desejo é contraditório. O desejo é inevitável; variam os objetos do desejo, mas ele está sempre presente. Fraco ou forte, controlado, negado, aceito, reprimido ou aniquilado, está sempre ali. Que há de errado com o desejo que, mesmo causando sempre conflito, desordem, sofrimento, frustração, não conseguimos evitá-lo? Devemos compreendê-lo, sem repressão e sem disciplina; então poderemos entender as necessidades psicológicas. Essas exigências e o desejo são inseparáveis, bem como o anseio de preenchimento dessas necessidades e o medo de não o conseguirmos. Mas, seja o desejo nobre ou vil, sua essência é conflito. Do eremita ao santo, ao político, todos somos consumidos pelo desejo. No entanto, se compreendermos o porquê das exigências físicas e psicológicas, ele deixa de ser uma tortura. Dessa compreensão, ao superar o conteúdo do pensamento e do sentimento, a ansiedade do desejo se transforma numa chama criadora, na qual é consumida toda mesquinhez humana. Nessa chama estão o amor, a morte e a beleza, cuja inesgotável energia é a própria vida.

A atividade da memória, a ação baseada no conhecimento, o conflito dos desejos opostos, a busca de liberdade, estão dentro dos limites do cérebro. Por mais que este se aperfeiçoe, amplie ou acumule conhecimentos, jamais terá fim o sofrimento. Enquanto o raciocínio for apenas reação da memória, do que já conhecemos, o sofrimento não cessará. Existe, no entanto, um “pensar” nascido do completo vazio da mente; por ser destituído de centro, pois não existe o eu, este vazio é ação do infinito. Daí surge a verdadeira criação, diferente da criação humana. O amor, a compaixão e a inteligência estão nesse vazio criador.

Fala-se do medo. Trata-se apenas de imaginação, pois está sempre no futuro ou no passado, jamais no presente. Ao surgir o sentimento denominado medo, será, realmente, medo? Frente ao perigo, seja de ordem física ou psicológica, é impossível fugir dele. Contudo, quando existe total atenção o medo desaparece. O medo surge da desatenção, da distração, do desejo de escapar do fato. Logo, o medo é a própria fuga do fato; fuga, portanto, definitivamente impossível, pois é fuga daquilo que é.

Nas relações humanas, o medo assume diferentes formas: arrependimento, ansiedade, esperança, desespero. Está intimamente ligado à busca de segurança, àquilo que chamamos de amor e devoção, à ambição e ao bom êxito, à vida e à morte. O medo existe em todos os níveis de nossa consciência, sendo a origem da resistência, da autodefesa e da renúncia. Medo do claro e do escuro, de ir e de vir, de viver e de morrer. O desejo de segurança está sempre no princípio e no fim do medo; o desejo de segurança, física ou psicológica, o desejo de escapar à incerteza, à indecisão, o medo da impermanência das coisas, medo de fazer papel ridículo, medo de tudo. Desejamos que haja continuidade na vida, na virtude, nas relações, na ação, na experiência, no conhecimento, em tudo que julgamos bom para nós, em tudo que nos dê prazer. Todos buscam segurança, e dessa busca incessante, nasce o medo de não consegui-la.

Mas, existirá segurança material? E segurança psicológica? Sabemos que, mesmo no plano material, vivemos em total incerteza, porque sob a constante ameaça de guerras, revoluções, da implacável marcha do progresso, de acidentes, terremotos, cataclismos (além de doenças, bactérias, de epidemias, greves, falência, atentados, assaltos, roubos, balas perdidas, morte). É inegável a necessidade de abrigo, alimento e vestuário. Apesar da incessante busca de segurança, já conseguimos, alguma vez, ter segurança física ou segurança psicológica completa, permanente? É claro que não. E, a não aceitação desse fato, a fuga desse fato, é o medo. A incapacidade humana de aceitar o fato de que não existe segurança em lugar e em tempo nenhum, cria o medo, do qual se originam a esperança de encontrar segurança e, em seguida, o desespero pelo medo de não encontrá-la.

O pensamento é a fonte do medo; e o tempo é a essência do medo pois, pensar no futuro no qual, porventura, consigamos viver em segurança, ou onde não tenhamos esperança de encontrar segurança, gera o prazer ou o sofrimento, ansiedade e conflito. Se queremos algo que nos dê prazer, o pensamento busca os meios de alcançá-lo, mas sempre com medo de não consegui-lo; sendo os prognósticos desagradáveis, procuramos evitá-los a todo custo e, no próprio desejo de evitá-los, está o medo. A imaginação de não conseguir aquilo que nos dê prazer, ou de encontrar aquilo que nos dê sofrimento, são a raiz do medo; o medo caminha sempre junto à imaginação. No entanto, se compreendermos o mecanismo da memória, do pensamento e suas associações, da imaginação e da experiência, cessa todo o medo. O processo da consciência é o movimento do pensamento; ele não é apenas a coisa pensada, mas também as associações que lhe dão origem. É a crença, o dogma, a superstição, a idéia, o raciocínio, e é também o centro (o ego) do qual essas coisas emanam. Esse centro é onde nasce o medo. Sentimos, realmente, medo, ou estamos apenas inconscientes das causas que produzem o mecanismo de defesa que o cérebro usa para fugir ao fato? A auto-proteção física demonstra saúde e equilíbrio mental, mas todas as demais formas de defesa conhecidas, as defesas psicológicas, implicam resistência e medo. Essa reação impede a segurança física, transformando-a em uma questão de classe, prestígio e poder, originando daí competição brutal, na qual sempre vence o mais forte.

Libertamo-nos do medo, seja superficial ou profundo, ao compreendermos totalmente a estrutura do pensamento e do tempo, seus efetivos criadores. O auto-conhecimento faz desabrochar e findar o medo. Cessado este, cessa o poder de criar ilusões, mitos, visões, carregados de esperança ou de desespero. Tem início, então, o movimento que vai além da consciência, do pensamento e da emoção, além daquilo que o cérebro pode compreender. É a libertação total dos desejos que preenchem a consciência. Então, nesse vazio, livre da influência de conceitos, barreiras ou palavras, do tempo e do espaço, surge o inefável.

A meditação deve ser livre de fórmula ou método, pois estes a impedem. E é indispensável a cessação do meditador (do ego); quando este cessa é que pode surgir a verdadeira meditação (ou “eu”, ou Deus; ‘Aquieta-te e sabe: Eu sou Deus’).

A experiência nasce da desatenção, nunca do estado de atenção. O acúmulo de experiência, construindo a memória e os muros da resistência, decorre da desatenção e faz crescer o egocentrismo. A desatenção equivale à concentração, que é escolha, exclusão ou isolamento, ocasionando distração e a eterna luta de tentar controlar a meditação. A desatenção produz aquilo que denominamos experiência, que é responsável pela estagnação do pensamento. Robustece, também, a memória (o ego), o hábito, a rotina e o condicionamento, que servem para dar mais vida à ilusão que é o “eu”. A experiência e a desatenção são obstáculos à liberdade e produzem o lento processo da deterioração do cérebro.

Na atenção total não existe o ato de experimentar, porque não existe o “eu”, o centro que experimenta; tampouco existe a periferia onde se desenrola a ação. Atenção superficial significa desatenção, enquanto que o estado de total atenção envolve as atividades superficiais e profundas da mente, o passado e suas influências no presente, que se projetam no futuro. A mente é transformada pela ação libertadora da atenção. Condicionado, por natureza, e incapaz de promover sua própria transformação, o pensamento é produto da experiência; portanto é resultado da desatenção. Na plena e total atenção o pensamento finda e a mente torna-se vazia (vazia do eu, podendo vir a se tornar cheia de Deus). Como se obtém completa atenção? Nenhum método ou sistema pode obtê-la. O estado de atenção escapa a qualquer ação da vontade. Na atenção total, tudo que vem da desatenção é rejeitado espontaneamente. A atividade do “eu” cessa e só resta o silêncio, o vazio.

Quando livre do medo, toda busca é sem motivo. Essa busca não nasce da simples insatisfação, mas da revolta, mesmo inconsciente, contra o limitado padrão do pensamento. A busca nascida da insatisfação resulta sempre numa nova ilusão, numa nova crença, nova religião, numa nova prisão cheia de atrativos. Buscamos sempre através de métodos e sistemas já conhecidos e, assim, só encontramos o que já é conhecido; nada mais. Essa, então, não é a verdadeira busca, pois não encontramos nada novo. É o simples desejo de satisfazer-nos, de escapar através de uma fantasia ou outra ilusão qualquer. Essa eterna busca, a troca constante de um interesse por outro, uma crença por outra, dissipam aquela energia necessária para a compreensão “daquilo que é”. O fortalecimento e a liberação correta daquela energia só é possível quando já não existir nenhuma busca.

“O êxtase, o percebimento, revela a futilidade e a infantilidade de tudo”.

Pouco mudamos no decorrer de nossa vida. Costumamos mudar sob pressão interna (psicológica, de crenças e opiniões) ou externa (da sociedade, ambiente, costumes, leis, opiniões de outrem) o que, na realidade, é simples ajustamento ao ambiente. Algum tipo de influência, uma palavra, um gesto, podem provocar mudança de nossos hábitos, mas mudança sempre superficial. A propaganda, o jornal, um incidente qualquer, podem alterar, até certo ponto, o rumo dos acontecimentos. O medo e o desejo de recompensa podem levar à substituição de um dado padrão de pensamento por outro. Mas, essa mudança, baseada em motivos, é destituída de qualquer significado. É simples ajustamento, simples enquadramento às regras da sociedade, ação mecânica, gerada pelo desejo de conforto, respeito, segurança, sobrevivência física e pelo medo de ser rejeitado ou considerado diferente dos demais.

Afinal, que é que produz a verdadeira mutação? Nunca o tempo e o espaço, pois eles não passam de limites da consciência, do pensamento, da experiência. O inconsciente aflora em sonhos, revelando suas obsessões, exigências e desejos íntimos. Daí surge a necessidade de se interpretarem os sonhos, mas o intérprete é, sempre, alguém condicionado, preso ao tempo. Mesmo sendo responsáveis por superficiais mudanças e ajustamentos da consciência, a auto-análise e a psicanálise são incapazes de total e radical transformação. Só a compreensão do movimento do pensamento e do sentimento (da emoção, da imaginação e do medo), vinda da observação sem escolha e sem dualismo (meditação), pode produzir mutação radical.

Os limites da consciência são destruídos pela meditação, que elimina o processo de pensar e de sentir. O uso de métodos, o desejo de recompensa, enfraquecem aquela força misteriosa, sendo obstáculos à meditação. Esta libera abundante energia, energia que é deformada e destruída se houver controle, disciplina ou repressão. Meditar é como viver em perigo, pois nada escapa a sua destruição, nem mesmo o mais leve desejo. Da amplidão insondável do vazio produzido pela meditação, surgem a liberdade, a criação e a compaixão.

Para a mutação da consciência não há método, nem análise, nem pode haver desejo de recompensa. É impossível a mutação através do esforço, pois este gera conflito e isso fortalece o núcleo da consciência, o “eu”. Por mais lógico e equilibrado que seja, o raciocínio não leva à libertação da consciência, pois é formado por idéias, influências, experiências e conhecimento, todos produtos da própria consciência condicionada. Perceber a falsidade dessas idéias e conceitos, e, em conseqüência, rejeitar aquilo que é falso, torna a mente (localizada) vazia. Libertar-se da tradição, imposta pela sociedade e cultura, é negar o falso conceito dos opostos, a falsa autoridade do ajustamento, do conformismo, da imitação, da repetição, da experiência e do conhecimento. Negar o passado e o condicionamento, que são o conteúdo da mente, é estar só, livre da influência da tradição, das necessidades psicológicas, do apego, da dependência. Observar sem discriminar, sem escolha, e rejeitar o condicionamento conduzem à solidão, que não é isolamento ou atividade egocêntrica, nem fuga da existência. Pelo contrário, é libertação plena do sofrimento e do conflito, do medo e da morte. Essa solidão é a própria mutação da consciência. É o vazio e a ausência do ser e do não-ser. Nem observador, nem coisa observada; nem sujeito, nem objeto. Nesse vazio, a mente se renova a cada instante e pode perceber a imensidade do todo.

O futuro realmente existe? Conhecemos o hábito de planejar o futuro; das obrigações, compromissos e tarefas a serem executadas amanhã. Esses planos podem vir a ser alterados, modificados, esquecidos, mas o futuro permanece como algo incontestável. Há o tempo necessário para se percorrer uma distância, ir daqui para ali, realizar um trabalho. É o tempo cronológico, tempo para se atingir um objetivo físico. Mas, existirá um tempo futuro completamente diferente desse tempo mecânico e cronológico? Terá significado o tempo no plano psicológico? Haverá, aí, um ponto de chegada, um resultado a ser alcançado? O pensamento cria um objetivo no plano psicológico: segurança, Deus, bênção, sucesso, bom êxito, virtude, ideal, prazer. Mas, o pensamento é apenas a reação condicionada da memória, que cria um tempo necessário para transpor a distância entre “o que é” e “o que deveria ser”. E “o que deveria ser” é o ideal imaginado, apenas algo teórico, existente só na área psicológica, sem nenhuma realidade, portanto. A verdade, ‘o que é’, não depende do tempo, não tem nenhum objetivo a atingir, nenhuma distância a percorrer; ela está ali, aqui, em toda parte. O fato existe; é “o que é”; o mais é invenção, imaginação, ficção. A verdade aparece quando se morre para o ideal, para as realizações (futuras) e para o objetivo, que são meras fugas do fato. O fato elimina o tempo e o espaço.

E a morte, existirá? O que existe é o lento findar, a deterioração física, o inexorável desgaste orgânico que conduz à morte física, tão inevitável quanto o desgaste da ponta do lápis. E será essa a causa do medo? Ou o que tememos é o findar desse padrão de vida do constante vir-a-ser, da realização incerta, ou aquilo que pode vir após a morte? Este mundo nada vale; é o mundo da fuga e da aparência. O fato, “aquilo que é”, é totalmente diferente “daquilo que deveria ser”. O ideal implica tempo e distância, contém o medo (de não ser alcançado), e (conseqüentemente), a dor. A percepção pura do fato, de “o que é”, resulta da morte “do que deveria ser”. O pensamento, criador do tempo, impotente perante o fato e incapaz de modificá-lo, luta para escapar dele. Mas o fato sofre tremenda mutação ao cessar esse movimento de fuga, o que determina a morte do pensamento, que é tempo. Na ausência do tempo e do pensamento, continuará existindo o desejo de fugir do fato, daquilo que é? Quando já não existir movimento do pensamento, nem tempo ou distância para se atingir o ideal sonhado, deparamos com a imobilidade do vazio. E, nisto está a total destruição do tempo, do passado, do ontem, do hoje e do amanhã, da memória, da continuidade e do vir-a-ser. Só então, pode brotar o incomensurável.

Livre do tempo, o que resta é o presente imediato, a vida no agora. Daí nasce o estado de atenção, que nos leva para além dos limites do pensamento e do sentimento. E a vida está sempre no presente, no agora. Isso, sim, é que é imortalidade, não a vida dentro dos limites da consciência. Quando o tempo deixa de existir, desaparecem os sofrimentos e os conflitos produzidos pelo processo de pensar e de sentir.

O cérebro só funciona no tempo e no espaço; toda filosofia é limitada por esse condicionamento e as teorias e especulações são produzidas por sua astúcia. Ainda que vá à Lua, explore o universo ou as profundezas da terra, projete máquinas maravilhosas, o cérebro não tem como libertar-se da mediocridade. É inútil qualquer tentativa de fuga dessa mediocridade, pois que é fuga de si mesmo. Só lhe resta permanecer completamente imóvel, o que não deve ser confundido com inércia ou indolência. Essa imobilidade é a única maneira de preservar sua sensibilidade. Na renúncia de si mesmo e na rejeição de suas atividades, cessam suas habituais reações defensivas, bem como o vício de julgar, condenar ou justificar. Pela compreensão de seus mecanismos, o cérebro revela o que é: só um instrumento mecânico, calculista, inventivo, funcional, repetitivo e imitador, embora de perfeição assombrosa. É incapaz de qualquer ação ou reação ao tentar penetrar no mistério do desconhecido. O conhecido é o seu elemento. O cérebro jamais conhecerá a beleza da criação, pois a imensidão do indescritível somente se revela quando o cérebro está totalmente imóvel, sem pensamentos e vazio, ‘morto’.

Sabemos sobre a atmosfera de Vênus, como montar computadores, mas nada sabemos sobre nós mesmos. E ninguém pode nos ajudar nisso. A energia necessária para a viagem ao nosso interior, só a teremos se abandonarmos a crença de que a conseguiremos por meio de drogas, relação humana, renúncia, sacrifícios, disciplinas, rituais, santos, deuses, preces, promessas, gurus. É exatamente se abandonarmos tudo isso, se compreendermos o mecanismo da fuga e do desejo, que aquela energia penetra e vai além do consciente (como diz Benoit, estaremos salvos quando abandonarmos todos os caminhos e todas as tentativas de nos salvarmos).

É impossível adquirir essa energia acumulando conhecimentos a nosso respeito, pois toda forma de acúmulo e apego a enfraquece e desvirtua. Com o tempo, os conhecimentos tornam-se um fardo, limitando-nos e nos aprisionando ao condicionamento; e, assim, deixamos de ser livres para investigar. O aprender está no presente imediato; o saber, sempre no passado. O desejo de acumular conhecimento impede o ato de aprender. O conhecimento é estático, podendo só ser reduzido ou ampliado, enquanto o aprender é dinâmico, não necessitando do processo de acumulação. O saber é transitório; o aprender é infinito.

Todos nós somos o resultado final de centenas de séculos de existência da humanidade, de suas esperanças, desejos, culpas e ansiedades, crenças e deuses, preenchimentos e frustrações. Somos o acúmulo de tudo isso até os dias de hoje. Aprender é vivenciar todos esses fatos, numa experiência direta e sentida, no contato vivo, intenso, não teórico ou verbal. No aprender não há aquele que aprende, pois esse só sabe acumular conhecimentos. Da divisão ou separação entre aquele que aprende e o objeto de seu aprendizado nasce o conflito, que dissipa a energia necessária ao aprender de verdade. Escolha é conflito e impede a percepção direta da verdade. O processo de aprender é interminável. Esse é o fator primordial da existência, e não os fracassos, os êxitos ou erros cometidos. Na percepção desse fato, livre de conclusões ou teorias, dá-se o aprender de momento a momento.

O fundamental é o ato de ver e não aquele que vê, ou a coisa que é vista. A consciência é limitada pelas muralhas feitas pela experiência, pela memória, conhecimento, condicionamento e cultura social. Só destruímos essas muralhas se aprendermos sobre esse condicionamento, fato que coloca o pensamento e o sentimento nas suas funções específicas e limitadas. Morto o ‘eu’, com seus desejos e exigências, alegrias e tristezas, tem então início o deslumbrante e eterno movimento da vida.

Somente na humildade floresce a virtude. Mas, não a virtude da moralidade que é mero ajustamento ao variável padrão de conduta social. A moral vigente, aceita pela sociedade e pela igreja, que apregoam o seu modelo, nega a virtude; é só observar com isenção para ver que isso é verdade. Ligada ao desejo de recompensa ou medo de punição, ou ao conformismo, essa moral é ensinada e praticada, modelando a sociedade, pela influência e propaganda, responsáveis por inúmeros padrões de conduta. Mas, a virtude não é produto do tempo ou de circunstâncias; não pode ser cultivada e não admite controle ou disciplina. E´espontânea e gratuita, e é impossível dar-lhe a marca da respeitabilidade, ou dividi-la em amor fraternal, caridade, bondade etc. A virtude não é produto do ambiente ou da cultura, nem da emoção, do sentimento ou do esforço; nem da revolta contra a moral social porque, assim, será reação do pensamento e mera continuidade modificada do que foi.

Se cultivada, a humildade torna-se orgulho disfarçado, na ânsia de vir a ser respeitável. Do mesmo modo que é impossível ao ódio se transformar em amor, é impossível à arrogância se transformar em humildade. Pelo ideal da não-violência não se elimina a violência; esta simplesmente tem de findar. A humildade não é um ideal a ser alcançado, pois todos os ideais são falsos, sendo o fato a única verdade. A humildade não é o oposto do orgulho; simplesmente, ela não tem oposto. Todos os opostos se relacionam, mas nada há em comum entre humildade e orgulho. Este cessa, não pela vontade, ou por disciplina ou desejo de lucro, mas na chama da atenção, livre da contradição e da desordem causadas pela concentração. Cessa o orgulho ao compreendermos sua atividade toda, observando passivamente seus mínimos movimentos. Essa compreensão é do presente e não pode ser exercitada, pois nesse caso seria esperteza do pensamento, que é incapaz de produzir humildade. A atenção surge do silêncio e produz sensibilidade e imobilidade do cérebro. O centro (o ego), que se torna mais vivo e forte com a concentração e sua atividade exclusivista, enfraquece e morre com a atenção. Do estado de atenção nascem a humildade e as virtudes que, por sua vez, produzem amor e bondade.

Como é estranho o desejo de ter poder, mundano ou espiritual, o poder do dinheiro, do prestígio, da competência, do conhecimento, do cargo. Entretanto, quando alcançado, o poder sempre traz conflito, confusão e sofrimento.Todos querem o poder e, para alcançá-lo, muitos não hesitam em matar ou destruir-se uns aos outros. Os que buscam ou detêm o poder da autoridade são por ele corrompidos. Assim, o poder exercido pelo sacerdote, pela dona de casa, pelo santo, pelo político, pelo administrador, pelo líder, é nocivo e prejudicial; apesar disso, ninguém tem coragem de abandoná-lo.

Junto com o poder vêm a ambição, com o desejo de fama e de mais poder, a crueldade, coisas que destroem o amor. O desejo de poder, exaltado pela sociedade e até pela igreja, desvirtua o amor, estimula a inveja e a competição, dando origem ao medo, ao conflito e ao sofrimento, mas ninguém se atreve a questionar esses valores. A recusa a qualquer forma de poder é o princípio da lucidez e da virtude, que eliminam todo conflito e dor. Eliminado o desejo de poder, cessam a confusão, o conflito e o sofrimento, e nos resta aquilo que somos: apenas um amontoado de memórias e uma crescente solidão. O desejo de poder e de fama não passa de fuga dessa solidão. Para superarmos isso, precisamos ver o fato, enfrentá-lo, sem jamais contorná-lo mediante fugas ou julgamento e condenações, ou pelo medo do que é (do que ele seja). Da passiva observação sem escolha do fato, nasce uma nova realidade.

Precisamos de enorme energia para conviver com essa solidão, mas a energia só vem quando já não existe o medo. Ao percebermos o porquê dessa solidão, percebemos que nós somos a solidão, somos uma entidade única; cessa de existir o observador separado da solidão. As diferentes formas de fuga não mais nos atraem; percebemos que somos aquela solidão, mas não sabemos como evitá-la ou preenchê-la. Nem o desespero, a astúcia, a esperança, o cinismo, podem dominá-la. O cérebro não tem como escapar, pois é ele mesmo que cria a solidão através da incessante atividade de auto-isolamento, de defesa e agressão, atividade na qual sempre está presente o medo. Quando tomamos consciência desse fato, adotamos uma atitude de completa negação e passividade, e o cérebro procura cessar suas atividades e permanecer em absoluta imobilidade.

Das cinzas da solidão surge o movimento peculiar de estar só, livre de influências, de pressões, de toda forma de busca ou de realização. É a morte do passado. Inicia-se, então, a deslumbrante viagem sem fim pelo desconhecido. E, daquilo que é imensurável, brota a força pura da sabedoria e da criação.

A compreensão só existe no presente; e pode mudar o curso de nossa vida, nossa maneira de pensar e de agir. Deixada para depois, sofre a interferência do ego e se desvirtua. Agradável ou não, a compreensão põe em risco todas as nossas relações (anteriores), porque nos leva a uma verdadeira mutação.

O cérebro é, basicamente, produto da especialização: engenheiro, padre, cientista, advogado, fazendeiro, dona de casa, militar. Por ser incapaz de ver o todo da vida (pois cada um só vê seu fragmento), é a origem de todo conflito. Incapaz de ir além de seus próprios limites, de suas ações nascem o status social, os privilégios, o poder e o prestígio, que o cérebro cria para se proteger. O orgulho, a arrogância e a inveja, decorrentes da eficiência em determinada função, tornam o homem insensível e indiferente à totalidade da vida (pois ele só vê sua parte), e o arrastam à competição, à desordem, à discórdia e, finalmente, à infelicidade. Assim, a mente especializada é a origem de todo conflito social.

A meditação é o desabrochar do entendimento. Ela nega o lento e gradual processo da acumulação de conhecimentos, e pode modificar totalmente nossa vida. Por isso, é motivo de medo, seja ele consciente ou inconsciente.

O especialista é incapaz de imaginar o todo; vive para sua especialidade, condicionado para ser religioso ou técnico, esportista ou político. O talento, a aptidão e a competência fortalecem o ego e sua ação é sempre fragmentada e conflitante. A vida do homem só tem significado quando a mente compreende a vida como um todo. Acreditar que a vida se resume na fragmentada e estreita luta pelo pão, no bem-estar próprio e dos familiares, nos prazeres do sexo, da riqueza, do poder, é gerar frustração e, com esta, desespero e sofrimento.

É a mente que contém o cérebro, e não o contrário, e só a mente pode compreender o todo. A capacidade de ver o todo decorre do ato de negar. Deve ser espontânea a imobilidade do cérebro, pois qualquer espécie de esforço concorre para destruí-lo através da imitação e do conformismo. Do estado de negação surge a passiva imobilidade do cérebro que, então, se torna capaz de perceber o todo; nesse estado, de pura percepção, não existe aquele que experimenta, o observador; só existe o ver (o perceber). Então, a mente está desperta, livre da contradição e do conflito gerados pela divisão entre pensador e pensamento (observador e coisa observada). Toda forma de busca e de exigência deve findar para que o desconhecido possa surgir.

“Atravessamos a praça e penetramos numa rua estreita e sem movimento, Subitamente, na penumbra da travessa mal iluminada, nosso corpo e cérebro foram imobilizados pela beleza e suavidade daquela coisa singular que apareceu. Sua forte presença manifestava-se intensamente, penetrante e solícita. Lucidez e alegria extraordinárias invadiram nosso ser, durante o tempo necessário para percorrer aquela viela, após o que nos vimos envolvidos pelo tráfego ruidoso e pela multidão irrequieta. Era o êxtase absoluto, livre do pensamento e da imaginação”.

Ver usando o pensamento e ver sem usar o pensamento são duas formas totalmente diferentes de ver. Ao vermos com o pensamento qualquer objeto ou coisa, o cérebro permanece preso ao tempo, à experiência e à memória, e faz, inevitavelmente, associações e interpretações. Essa atividade incessante do pensamento tira energia do cérebro. Ver com o pensar mantém o cérebro preso ao hábito e ao reconhecimento. O cérebro só atinge a liberdade quando o pensamento está ausente, o que não significa desequilíbrio ou loucura. Ausente o pensamento, resta apenas o estado de pura observação, livre do processo mecânico de reconhecer, interpretar, comparar, julgar e avaliar. Ver sem o pensamento é ver sem a interferência do tempo, da memória, do conhecimento e do conflito (sem a interferência do observador, do eu). É ver sem restrições, de modo imparcial, livre de qualquer barreira (de condicionamento), porém capaz de distinguir os diversos elementos que compõem o mundo em que vivemos. Ver sem o pensamento não significa um cérebro adormecido. Ao contrário, é então que ele está inteiramente desperto, atento, e livre do conflito e da dor. A meditação explode desse estado de atenção, além dos limites do espaço-tempo.

Na realidade, o intelecto pode danificar e até mesmo destruir o corpo e este, por sua vez, quando sem energia e insensível, corrompe e deteriora o intelecto. Se descuidamos do corpo, pela tolerância, pela satisfação exagerada dos desejos e apetites, concorremos para seu embrutecimento e insensibilidade, fato que traz o enfraquecimento e a preguiça do raciocínio. E o refinamento e a astúcia do pensamento levam ao desleixo com o corpo que, por sua vez, afeta e distorce o intelecto. O excesso de peso e gordura interferem no delicado mecanismo do cérebro e este, ao tentar escapar dos conflitos e problemas que ele mesmo cria, afeta o organismo todo. A capacidade de acompanhar o veloz e sutil movimento da mente exige grande equilíbrio e harmonia do corpo e do cérebro. A percepção da verdade é definitiva. A compreensão do fato, e não sua avaliação, é essencial. Percebendo esta verdade, o cérebro torna-se consciente dos hábitos, que são fatores de deterioração do corpo, e recusa toda espécie de controle e disciplina impostos pela cultura e sociedade.

Coisa estranha é o amor (apego), que se tornou tão respeitável: o amor a um deus, à família, ao semelhante. Tido como sagrado ou profano, como dever, disciplina e sacrifício, sacerdotes e generais, ao planejarem as guerras, invocam o amor. Os políticos e donas-de-casa sempre se queixam dele. O ciúme e a inveja alimentam o amor, que serve de prisão a toda forma de relacionamento. A continuidade do amor resulta no prazer, sempre seguido pela aflição vinda do medo de perder o objeto amado; apegados ao prazer, receosos de perder aquilo que amamos, lutamos para nos livrar do medo e da dor. Ao evitar-se qualquer mudança nas relações que dão continuidade ao amor, fica-se enredado na sensação opressiva da segurança ou na agonia do hábito. E, chamando de amor essa alternação de prazer e dor interminável, nos tornamos seus prisioneiros. Para escapar ao tédio buscamos refúgio na religião e no romantismo. Mas, nada disso é amor. No verdadeiro amor não existe continuidade; ao contrário do intelecto, o amor ignora o amanhã e o futuro. A memória nasce do passado, mas o amor é livre da tirania do tempo e desconhece a promessa, a esperança ou o desespero porque o amor é sempre amor. O cérebro nem mesmo chega a imaginar o que seja o amor pois este não tem nada a ver com nenhuma crença, religião ou sentimento e está fora de seus limites. Ao findar o conhecido nasce o verdadeiro amor.

A ação baseada no raciocínio é geradora de conflito e sofrimento.

‘Aquela’ força vem da meditação, não da vontade; a vontade implica resistência, confusão e sofrimento. Ao surgir o estado da pura observação, no qual a inveja, a ambição e a avidez espontaneamente deixam de existir, seremos aquele estado que é a própria humildade, no qual a morte (do ego, do passado) se transforma em vida e, dessa transformação surge o amor.

“Sua intensidade, de tão forte, tornava inúteis as tentativas do intelecto de ajustá-la a suas fantasias ou crenças”.

A imobilidade do cérebro, decorrente de sua sensibilidade, deve ser sem motivo, sem busca de recompensa, sem esforço, não proposital, espontânea portanto (somente pela sua própria sensibilidade aguçada). No estado de atenção consciente, desperto, cessa a origem do pensamento (o eu), de modo natural e espontâneo, sem nenhum esforço, controle ou disciplina.

O que destrói aquela energia é a ambição, a inveja e a avidez, que produzem conflito e sofrimento. Ao motivar uma ação, a inveja anula essa energia, pois traz consigo insatisfação, dor e medo, este seguido do sentimento de culpa, da ansiedade e das aflições nascidas da comparação e do desejo de imitar.

Ao tentar ir além de seus próprios limites, coisa que lhe é impossível, o pensamento se torna especulativo, fantasioso, cheio de ilusões e vazio de significado. E, ainda que decifre seu próprio enigma, ele é incapaz de penetrar nos mistérios da meditação, pois esta, para existir, depende do findar do pensamento.

O cérebro é instrumento de surpreendente sensibilidade. Incansável em sua atividade de captar, registrar, interpretar e acumular impressões e informações, ele jamais pára de funcionar. Herdando do animal o instinto de sobrevivência e a busca de segurança física, o cérebro criou todas suas atividades e projeções, tais como um deus, a virtude, a moral, a ambição, os desejos, as exigências e os ajustamentos. Com sua capacidade de pensar, dedica-se ao cultivo do tempo, do passado, do presente e do futuro. Com isso, ele tem a oportunidade de adiar a ação, de buscar a satisfação, de imaginar que tem continuidade através da busca do ideal e do preenchimento. Disso nasce a frustração, a dor, a fuga na crença, na religião, na promessa do céu, nas múltiplas formas que idealizou para sua segurança. A morte e o medo estão sempre presentes, levando o intelecto a ter esperança e refúgio em crenças sem base e conceitos racionais ou irracionais. Hábil ou experiente, profundo ou erudito, o pensamento é sempre superficial. Acostumado a pensar e a reagir em termos de opostos, o cérebro vive no conflito e na confusão, que são origem de mais sofrimento.

O cérebro não pode compreender a vida integral. Essa compreensão nasce de sua absoluta imobilidade, sem que ele esteja adormecido ou embotado pela disciplina ou pelo controle, ou hipnotizado. Quando cessarem de existir o julgamento, a comparação, a avaliação, nascerá aquele insondável mistério. O estado de atenção, consciente e total, destrói a origem de todo pensamento, de modo espontâneo e natural, sem violência nem esforço.

“De novo, sentia-se a paz verdadeira, inacessível ao pensamento. Para que a paz se torne real é preciso que o homem, tal como é, deixe de existir”. (Somente é possível experimentar aquela bênção, dentro e fora de nós, quando há o natural e completo esvaziamento do conteúdo cerebral. Quando o eu não existe, Deus existe. Ou, “Aquieta-te e sabe: eu sou Deus”.)

A tagarelice incessante, que o cérebro vive, deve cessar, para que do vazio assim criado venha a correta resposta às questões imediatas, resposta oriunda da ausência de reação (do ego). Toda manifestação do pensamento serve apenas para prolongar o desespero e a agonia dos problemas que, assim, se prolongam no tempo e se tornam insolúveis. A resposta correta, definitiva, está além do intelecto (além do ego). A quietude do cérebro nasce de seu vazio, que não é estado de vácuo ou de apatia, mas um estado de tremenda energia.

O tempo cronológico é real, mas o tempo psicológico, é ilusão; não passa de coisa falsa, inútil invenção da mente do homem. Por depender, ilusoriamente, do tempo para realizar a transformação interior, o pensamento enreda-se num círculo vicioso pois não consegue realizar transformação nenhuma; apenas consegue fazer a continuidade modificada do que já era. Desse modo, o pensamento se torna lerdo, preguiçoso, deixando a ação sempre para depois, porque acredita no processo gradual do tempo e nos ideais (‘no futuro, farei isso’). O tempo é necessário, por exemplo, para se aprender uma técnica, para irmos de um lugar para outro; mas todas suas outras necessidades são ilusórias.

O estado de atenção, sem o qual não há mutação, produz uma ação nova, que não se transforma em hábito, nem na repetição de uma sensação, de uma experiência, ou conhecimento; tudo isto embota o cérebro, tornando-o insensível e incapaz de sofrer a mutação.

A virtude não é conseqüência da escolha de determinado hábito, ou conduta mais correta. Sem qualquer restrição, ela não segue nenhum padrão social de respeitabilidade, nem alguma forma de ideal. A mutação só acontece quando negamos o hábito, a tradição, as reformas, os ideais e tudo o que é transitório. Só na quietude do cérebro se realiza a verdadeira e radical mutação.

Qualquer oração é totalmente sem sentido. Instintivamente, nos momentos de crise, lembramo-nos da prece para pedir a solução de problemas, dores, ou para ter uma vantagem qualquer. Dirigido aos deuses criados pela mente do homem, o apelo contido na prece pode ser, às vezes, satisfeito por coincidência, fato que é tido, em geral, como prova da existência daquele deus. Mas, apesar das orações e súplicas, o homem continua a sofrer, o que faz o cérebro e o corpo se esgotarem, tornando-se insensíveis e sem energia.

A ilusão surge quando a realidade perde seu significado, quando a mente, atordoada, por ter sucumbido às influências e aos hábitos e por estar sempre em busca de segurança, torna-se indiferente perante a real beleza do mundo que nos cerca. A busca de segurança através do poder, do prestígio, do conhecimento ou das relações, ou da influência do poder de outrem, destrói a sensibilidade e concorre para a deterioração do cérebro.

Meditar não é praticar um padrão rígido de comportamento, um método ou sistema; isso, é apenas movimento dentro do tempo e conduz à deterioração da mente e à frustração e ilusão. Quando cessa o pensamento, que não passa de destruidor de energia, e que é produzido pelo centro (ego) que sempre interfere com sua ignorância, vaidade e avidez, é que tem início a meditação, que sempre é inconsciente, espontânea e sem esforço.

De caráter essencialmente superficial, as ações do cérebro são destituídas de profundeza, quase mecânicas; suas ações e reações visam a resultados imediatos, mesmo que esse imediatismo esteja projetado para o futuro. Seus pensamentos e sentimentos não vão além da superfície mesmo que se estendam ao passado ou ao amanhã. O pensamento e toda forma de busca têm de cessar para que se revele o êxtase com a ação devastadora do verdadeiro amor.

Toda forma de pensamento, imaginação e emoção, é apenas dissipação de energia; portanto, para que haja energia, é preciso deixar de pensar, de imaginar e de se emocionar. Com o cessar do tempo, que é a essência do pensamento, cessa toda forma de movimento (do cérebro) e, espontaneamente, desse vazio surge abundante energia e êxtase inimaginável.

O hábito e a meditação nada têm em comum; a meditação é incapaz de se transformar em hábito, porque jamais segue um padrão imaginado pelo homem, um padrão mecânico, método ou sistema, que é o que dá origem ao hábito. Nem o pensamento, nem a imaginação, podem levar à meditação, e esta é a sua destruição. O pensamento morre na explosão da meditação, cujo movimento é livre e espontâneo. Nem os deuses do homem, as religiões, os ideais, as crenças, orações, súplicas, as promessas poderão acabar com o processo do pensar ou com o sofrimento. Somente a meditação é capaz de fazer isso.

Influenciada pelo tempo e pelo pensamento, a mente torna-se incapaz de perceber aquela imensidade cuja ausência, na vida do homem, faz dela um fardo doloroso e sem sentido. Contudo, o vazio do cérebro não pode ser cultivado, negociado, nem alcançado através do processo da evolução, porque este implica tempo. Não há método nem processo que destrua o tempo; ambos apenas o perpetuam. Somente o findar do pensamento pode realizar essa destruição.

Toda experiência fortalece os laços da prisão, que é o eu, e intensifica o sofrimento. Qualquer forma de experiência deve cessar, pois serve apenas de reforço àquilo que já é conhecido. O cultivo deliberado dos prazeres oriundos da beleza faz parte da atividade egocêntrica, que conduz à insensibilidade do cérebro.

Negar o hoje sem saber o que o amanhã nos traz é estar desperto. Negar o padrão sócio-econômico e religioso é estar só, o que significa ter sensibilidade. A incapacidade de negar de maneira total é a marca da mediocridade. Aceitar a ambição com tudo o que ela representa é aceitar o sistema de vida que gera conflito e dor. Livramo-nos do medo ao virarmos as costas ao político que existe em nós mesmos, ao abandonarmos o imediatismo e a estreita visão da vida; ao negarmos o pensar, o desejo de imitar e de nos conformarmos com o que a vida nos oferece; ao negarmos os convencionalismos. Percebemos, então, a beleza que está além do pensamento e do sentimento, além do espaço e do tempo.

A humildade é a essência da virtude e é totalmente impossível, a quem quer que seja, cultivá-la. O padrão moral de respeitabilidade de qualquer sociedade é simples ajustamento aos valores estabelecidos e convencionados pelo meio-ambiente social, econômico e religioso. Essa moralidade de constante adaptação não é virtude. O conformismo e a tradicional busca de segurança individual, que fazem parte dessa moral convencionada pela sociedade, negam a virtude.

A ordem não é um estado contínuo; ela deve ser diariamente mantida, como o quarto que precisa ser arrumado todos os dias. Essa ordem não é uma questão de ajustamento pessoal a um conjunto de reações condicionadas de agrado ou desagrado, prazer ou dor. Não se trata daquela ordem que serve de fuga ao pensamento. A compreensão e o término da dor dependem da virtude, e é esta que gera a ordem. A ordem não é um fim em si; sempre que é vista como um fim, desemboca no beco sem saída da respeitabilidade, que significa decadência e deterioração.

Pode-se aprender de tudo e de todos, e no ato de aprender está a própria essência da humildade. No aprendizado não existe hierarquia. Toda autoridade nega o aprender, e todo seguidor da autoridade jamais aprenderá.

Imaginação e emoção desperdiçam energia. Ambos produzem concentração e distração, tal como a criança absorta em seu brinquedo, cuja falta a deixará agitada e inquieta. O mesmo ocorre com os adultos, cujos brinquedos são suas inúmeras fugas de “o que é”, tentativas inúteis, pois fugir do fato é impossível.

O mundo exterior e o mundo interior estão unidos num movimento único, indivisível. Os diversos métodos ou sistemas de meditação condicionam a mente e a modelam mediante fugas e sensações emocionantes, mas totalmente sem significado; somente os imaturos se satisfazem com esse tipo de coisa. Sem o auto-conhecimento, toda tentativa de meditação leva à decepção e à ilusão. A meditação produz intensa alegria e elimina qualquer conflito. Quando cessa o pensamento, pode nascer a meditação e do cérebro emanará intenso vigor e sensibilidade.

Toda ação decorrente de motivo ou desejo corrompe e dissipa a energia. Tendo um motivo, até o amor deixa de ser amor, porque o verdadeiro amor é totalmente incondicional.

Jamais compreenderemos o fato, o que é, se o apreciarmos com associações, opiniões ou julgamentos. Estes contaminarão o fato e tomarão o seu lugar. Na investigação do fato, na sua observação, o fato é ensinamento, sem jamais se tornar mecânico. Um estado de total atenção, livre de qualquer motivo, é necessário a esse aprendizado. Todo motivo é fonte de dissipação de energia e toda ação baseada em motivo é inação, origem de conflito e de angústia. O sofrimento é fruto do pensamento e este, concentrado em si próprio, cria o “eu” e o “meu”. Já o fato destrói o mecanismo de criação do “eu” e do “meu”.

São totalmente desnecessários tanto a crença como o ideal. Ambos dissipam energia indispensável à investigação do fato, daquilo “que é”. A crença e o ideal servem de fuga ao fato, à realidade; e a fuga é um eterno sofrer. A dor, o sofrimento termina pela compreensão do fato a cada instante. Nenhum método ou sistema nos dará essa compreensão, mas a clara e espontânea investigação do fato. A compreensão de nós mesmos, de nossas constantes e íntimas mudanças, é muito mais importante do que meditar em busca de deuses, visões, sensações ou de outra qualquer distração.

Como é fácil deteriorar em todos os aspectos, quando deixamos que o corpo se desgaste por descuido ou preguiça; isso enfraquece os sentimentos e a mente fica embotada, estreita e medíocre. Qualquer pensamento, mesmo o elevado, condiciona de acordo com o conhecido e produz a decadência da mente. O pensamento é fator de desintegração, pois tem raízes no conhecido, que é passado. Ainda que seja agradável, a vida alicerçada no conhecido, nos seus motivos conscientes ou inconscientes, é cheia de ações mecânicas e repetitivas, dissipa energia, e traz desintegração e decadência por falta de renovação. Do pensamento nunca nascerá a inocência e a humildade e, no entanto, destas depende a eterna juventude, a pureza e a sensibilidade da mente. O pensamento finda quando nos libertamos do conhecido; e para que essa liberdade se concretize, é totalmente necessário morrer, de momento a momento, para todo pensamento. É nessa morte que está o fim da decadência, que está a vida real.

A meditação não é uma auto-hipnose nascida do emprego ou repetição de palavras ou pensamentos, nem da utilização de imagens. Tudo isso deve ser posto de lado, pois só traz ilusão. O importante é a compreensão dos fatos e não as teorias, não a busca de certezas, não a necessidade de ajustamentos ou a procura de ideais. Tudo isso deve ser abandonado e transcendido. O princípio da meditação é o auto-conhecimento, sem o qual a meditação é impossível.

Quando não há pensamento, nem emoção, nem imaginação, o cérebro pode observar tudo, sem daí extrair qualquer sensação. Com isso, surge o atemporal, o inefável que está além do pensamento, do tempo e do espaço.

Qualquer problema psicológico é uma questão que não foi devidamente compreendida. Nossos problemas se multiplicam e se perpetuam e, com isso, perdemos energia e a mente se corrompe e enfraquece. Todo conflito deve ser compreendido e, com isso, eliminado. Um dos fatores da decadência da mente é a persistência de um problema; cada problema gera outro, e a mente, atingida por eles, sejam pessoais ou coletivos, sociais ou econômicos, enfraquece e deteriora.

Ser sensível e sentir emoções são duas coisas bem diferentes. As emoções, as sensações e os sentimentos sempre deixam resíduos, cujo acúmulo deforma e embrutece a mente. Por serem contraditórias, as sensações sempre causam conflito e, este, por sua vez, embota a mente e distorce a percepção. Apreciar a beleza das coisas em termos de sensação, de gostar ou não gostar, é o mesmo que ser insensível ao belo. A sensação diferencia o belo do feio; e essa divisão torna-nos incapazes de perceber a beleza. Para eliminar o conflito gerado pelas emoções e sentimentos, o homem inventou a disciplina de controlar e de reprimir; mas tudo isso serve apenas para criar resistência, que intensifica os conflitos, traz dissipação de energia e aumenta a insensibilidade.

O controle e a repressão ensinados pelas religiões produzem, no homem, a insensibilidade e a indiferença que despertam admiração e respeito da sociedade. Criam-se fantasias, ideais, objetivos e conclusões, que só servem para tornar a mente estúpida e insensível. Qualquer tipo de sensação, por mais requintada que seja, cria resistência, o que é de efeito totalmente nocivo. Ser sensível é morrer a toda sensação; ser sensível, de maneira decisiva, a uma flor, a uma pessoa, a um sorriso, é estar livre das marcas da memória, responsáveis pela destruição da sensibilidade. Estar plenamente consciente dos processos que formam as sensações, sentimentos e pensamentos impede a formação de cicatrizes e de marcas. Tais manifestações são sempre parciais, fragmentadas e, portanto, têm efeito destruidor.

O conhecimento, quando utilizado como forma de prestígio, gera conflito, antagonismo e inveja. Cozinhar ou governar são meras funções mecânicas que, ao simbolizarem o “status” social, se transformam em motivo de disputa, de esnobismo e de idolatria de cargos, posições e poder. O poder é o mal que torna mesquinha a sociedade. A importância psicológica que se atribui a função, cargo ou posto, cria a hierarquia do prestígio social, sempre nociva e cruel. Por isso, negar essa hierarquia é negar o “status”.

A vida é dura em qualquer lugar, e a insegurança, a enfermidade e a morte são realidades sempre presentes. A miséria moral e o sorriso falso estão em toda parte. A emoção e o sentimento são nocivos; facilmente se transformam em ódio, e são distrações perturbadoras para a tentativa de meditação.

O ato de questionar é mera revolta, uma reação ao que ‘é’, e as reações são destituídas de significado. Os comunistas estão revoltados contra os capitalistas, os filhos contra os pais; outros contra as normas sociais ou contra a opressão econômica da sociedade.Talvez o questionar seja necessário, mas é coisa muito superficial. Mesmo trocando velhos padrões por outros mais novos, a mente continua presa a sistemas repetitivos que a destroem. Preocupados com a decoração do interior dessa prisão em que estamos, e que até nos traz satisfação porque desconhecemos condições melhores de viver, esquecemo-nos da tarefa mais importante que é derrubar seus muros. Questionar a própria estrutura do sofrimento, para transcendê-lo, não significa fugir. É este questionar que destrói a estrutura do sofrimento e não a construção de uma prisão mais moderna e sofisticada, com novos salvadores ou deuses. É essa investigação que elimina o mecanismo do pensamento, e não a mera substituição de um pensamento por outro, de uma conclusão por outra, uma teoria por outra, uma crença por outra.

Deve-se questionar, como um todo, o valor da autoridade, esse mal tão respeitado; da autoridade do poder, da experiência, da palavra, da crença. Tal contestação, não nascida de reação, de escolha ou de motivo, mostra-nos a verdade e resulta, como conseqüência, na eliminação da atividade egocêntrica dos moralistas e dos adeptos da respeitabilidade social. É justamente essa atividade egocêntrica que, em vez de ser eliminada, em geral continua passando por reformas sem fim, originando inesgotáveis conflitos e sofrimentos. Tudo que possui causa ou motivo conduz, inevitavelmente, à agonia e ao desespero.

Tememos a total destruição do conhecido, que é a base do ego, do “eu” e do “meu”; preferimos o conhecido com toda confusão, conflito e miséria que traz. E como são fúteis e sem sentido nossas vidas! Nossas atividades e pensamentos são incapazes de nos libertar do conflito e da dor, e nos movemos, sempre, dentro daquilo que conhecemos, na eterna busca de segurança psicológica, sem perceber que, no conhecido, não existe segurança. A segurança exige tempo, e tempo psicológico não existe; como toda ilusão e mito, a segurança gera medo. Nada é seguro na vida, em nenhum tempo ou lugar, pois nada é permanente.

Através da correta observação e do questionamento, destruímos o padrão do passado, o padrão estabelecido, feito pelo pensar e sentir. O conhecido cessa com o auto-conhecimento, com a profunda compreensão da totalidade do pensamento, das emoções e sentimentos. O conhecido só nos faz sofrer e, com sua extinção, surge o desconhecido trazendo liberdade e alegria.

Todo pensamento e emoção devem florescer para que se complete o ciclo da vida e da morte; é preciso que tudo em nós floresça: a ambição, o ódio, a paixão, para que, de seu findar (isto é, de sua total compreensão), surja a liberdade. Somente sem repressão, controle ou disciplina, que são a base da corrupção e perversão, pode alguma coisa florescer. Não é fácil, por exemplo, deixar florescer a inveja; em geral, nós a condenamos ou a exaltamos (neste caso, quando inveja significa ambição, desejo de vir a ser mais que outrem), mas nunca a deixamos crescer livremente. E a liberdade é fundamental para permitir que o fato da inveja se revele em toda plenitude, expondo as engenhosas variações de sua forma, mostrando claramente o que é. Em clima de repressão, a inveja dificilmente virá à luz; mas ao expor-se claramente dá-se sua natural extinção; e, ao extinguir-se a inveja, nós nos defrontamos com o fato do vazio, da solidão e do medo.

À medida que cada um desses fatos floresce (abre-se à nossa compreensão), em liberdade, cessa o conflito entre observador e coisa observada (percebemos que o fato é o que é, que nada podemos fazer, que não podemos modificá-lo); ao desaparecer o observador, resta unicamente o ato de observar, isto é, só resta a observação. A liberdade nasce da ação total; jamais da repetição, da repressão, ou da sujeição a um dado padrão de pensamento. E só existe a perfeição da total integridade no florescer e no morrer; se uma coisa não florescer, não poderá morrer. Aquilo que tem continuidade é o pensamento através do tempo. Ao florescer (ao mostrar o que é), o pensamento deixa de existir, e, então, de sua morte (produzida pela meditação) surge o novo. Para que o novo surja é preciso que cesse todo o conhecido. O novo não nasce do que é velho, do pensamento, do raciocínio. O que é velho - o pensamento, o “eu”, o “meu”, tudo que é fruto do passado - deve morrer para que o novo nasça. Tudo o que nasce deve florescer e, necessariamente, morrer.

Precisamos libertar-nos da importância que damos à palavra; esta não é a coisa e a coisa jamais será a palavra. Palavras são meros símbolos; nunca a coisa real. Cada palavra, cada pensamento, influencia e engana a mente e esta, quando não compreende o total processo do pensar, torna-se escrava da palavra, fato que dá início a sofrimento.

A meditação não é um meio para se atingir um fim, pois não possui objetivo nem finalidade. É uma viagem para fora do tempo e para dentro do todo. O estado de plena consciência (plena presença e total atenção) a cada manifestação do pensamento e da emoção, permitindo o seu florescimento, é o princípio da meditação. Quando pensamento e sensação florescem e morrem, surge a meditação, que é além do espaço e do tempo. Com ela vem o êxtase, que é amor, inteligência, destruição e criação.

A escolha está em todos os instantes da vida; mas, no silêncio, não existe escolha. A escolha traz conflito e sofrimento. O desejo de escapar do sofrimento transforma em obsessão toda atividade humana, seja ela a busca de um deus, uma crença, a defesa do nacionalismo, seja o que for. Ao servirem de fuga, tais atividades adquirem enorme importância; mas, em verdade, a fuga leva sempre à ilusão, origem de ansiedade e medo. A amargura e o desespero são o resultado da escolha. A escolha existirá enquanto houver a entidade que escolhe; o ato de experimentar o objeto de nossa escolha serve apenas para fortalecer o ego, a memória, que passa a reagir na forma de pensamento e sentimento. A memória tem função mecânica, da qual nasce a escolha. Escolhemos conforme os condicionamentos culturais, econômicos, religiosos e sociais. E a escolha torna ainda mais intensos esses condicionamentos, cuja implacável ação produz mais sofrimento.

O desejo de escolher está sempre presente em nós, exigente, insistente; quando escolhemos, mesmo que não o percebamos, ficamos presos nas malhas intransponíveis do desespero, das responsabilidades e deveres (carma). Observe- se e veja que é assim mesmo. É impossível modificar o fato; podemos encobri-lo ou evitá-lo; nunca modificá-lo. Ele simplesmente existe. E se o deixarmos em paz, se não interferirmos com nossas vãs esperanças e opiniões, associações, astúcia e avaliação, o fato florescerá para revelar tudo isso e mais ainda. Para tanto, precisamos estar plenamente conscientes de seu significado. Veremos, então que, ao florescer, a escolha morre dando lugar à liberdade. Nós, que fizemos da escolha o nosso modo de viver, então não escolheremos mais. Nada haverá a escolher. E é deste estado livre de escolha que brota a infinita solidão da morte e da vida. A escolha se baseia nas coisas conhecidas e é o conhecido que produz sofrimento.

O conformismo a um dado padrão de comportamento, a obediência à autoridade estabelecida, o medo de estar agindo em desacordo ao socialmente convencionado, o desejo de sucesso ou fama, tudo isso concorre para esconder ou para exaltar “aquilo que é”. O simples fato de ver “o que é”, qualquer que seja o fato, significa compreensão do fato, e isso serve de base para a mutação necessária.

O amor está em toda parte, tão abundante que se pode vê-lo sob a folha seca caída no chão. Mas, estão todos tão distraídos e envolvidos com suas ocupações, perdidos em seus problemas! Para percebê-lo seria preciso morrer para todas as coisas, sem derramar lágrimas e sem nutrir remorsos. Somente, então, com alguma sorte, e se já houvermos deixado de buscá-lo esperançosos ou queixosos, o êxtase virá a nós sem ser chamado. Livres do pensamento, seremos capazes de perceber o êxtase e, neste, o verdadeiro amor.

Como poderá acontecer a meditação, se vier do desejo e do sofrimento? Como surgirá, se a buscamos com controle, repressão ou sacrifício? Se houver medo, ambição ou desejo de fama? Se existir esperança ou desespero? Tudo isso tem de ser abandonado de maneira espontânea, natural e sem receios. Qualquer método padroniza o pensamento e lhe impõe restrições, impedindo o brotar da meditação. E, não havendo liberdade não há auto-conhecimento e, sem auto-conhecimento, não há meditação.

Como é difícil para todos sermos simples ou autênticos! Como é estranho o desejo de nos exibirmos, de mostrar a nós mesmos, ou aos outros, que somos alguém! Invejar é o mesmo que não amar; é odiar; e a vaidade, nascida de nos julgarmos mais que os outros, corrompe. Ser autêntico é, em si, uma coisa das mais difíceis, ao passo que o desejo de ser alguém oferece pouca dificuldade. É fácil fingir ou representar, mas é extremamente difícil ser aquilo que realmente somos; e, isto, porque estamos sempre mudando; nunca somos os mesmos e, a cada instante, revelamos uma nova face, uma nova dimensão e profundidade. Não podemos ser todas essas coisas ao mesmo tempo, pois cada instante traz sempre algo novo. Portanto, se formos inteligentes, abriremos mão da pretensão de ser alguém ou de ser alguma coisa diferente do que realmente somos.

Podemos acreditar que somos muito sensíveis e eis que um incidente ou um pensamento rápido nos mostra o contrário; ou nos consideramos talentosos, cultos, de agudo senso estético e dignos mas, de repente, ao dobrarmos uma esquina, percebemos o quanto somos ambiciosos, invejosos, carentes, brutais e ansiosos. Somos tudo isso, de momento a momento, e, no entanto, desejamos a continuidade e a permanência daquilo que nos traz lucro e prazer, mesmo que também nos traga conflito e sofrimento. E, enquanto buscamos lucro e prazer, o ego não cessa de exigir preenchimento e satisfação. Somos, assim, um campo de batalha onde a ambição, trazendo prazer e dor, inveja e medo, sempre sai vitoriosa.

Como é difícil ser o que realmente somos; se estivermos atentos, podemos perceber o quanto isso é doloroso e verdadeiro. Para que deixemos de querer ser mais do que somos, ser alguém, nos mostrar sem máscara aos outros, é preciso expor, sem medo, nossa verdadeira face; só assim a compreenderemos. A compreensão de nossas ânsias e desejos ocultos vem da plena consciência deles. Dessa forma, o puro ato de ver destrói aquela estrutura psicológica, libertando-nos do sofrimento e do desejo de ser alguém. Não desejar ser alguém não significa um estado interior negativo; o próprio fato de não negarmos aquilo que somos é uma ação totalmente positiva e não uma reação. Dessa ação positiva nasce uma incrível energia, enquanto idéias e pensamentos, ligados ao desejo de ser alguém, tão somente causam sua destruição.

A meditação não é uma atividade da imaginação. Toda forma de imagem, palavra, símbolo, deve cessar para que aconteça a meditação. O domínio da imaginação sobre o pensamento deve findar. Com isso, o pensamento não mais terá continuidade e passará a existir de momento a momento, pois perde a característica mecânica e repetitiva. Ao deixar de influir sobre a mente, o pensamento já não a aprisiona num padrão de idéias, nem a condiciona aos valores sociais e culturais da sociedade em que vivemos. Devemos libertar-nos, não da sociedade, mas das convenções que ela nos impõe; então, aquele tipo de relacionamento com a sociedade deixa de condicionar a mente.

A consciência representa, somente, o que é velho, a mudança, a reforma, o conformismo, mas a verdadeira transformação só vem quando o tempo e o pensamento cessam. É preciso compreender isso pelo auto-conhecimento. O aprender é de momento a momento mas, sendo o ego inconstante e variável, o saber não equivale ao aprender. O auto-conhecimento liberta-nos do conhecido; passar a vida no conhecido é viver em eterno conflito e sofrimento.

A meditação nunca é realizada pelo eu, nem é uma busca individual da verdade. Ela liberta nossa mente da existência estreita e limitada, inaugurando uma vida plena e em eterna expansão (e é ação do atemporal).

Não havendo sensibilidade, não pode haver afeto. O amor próprio não indica sensibilidade. Podemos ter “sensibilidade” (no sentido de tomar as dores) em relação às nossas famílias, nossas realizações, nível social e talento, mas isto não quer dizer que somos sensíveis. Trata-se de estreita e limitada reação que conduz à deterioração. Ser sensível não é ter bom gosto, pois este é uma qualidade pessoal, logo não passa de reação do ego, e a percepção da beleza está justamente no libertar-nos de toda reação. Se não soubermos sentir e apreciar a beleza, não saberemos amar. Sentir e apreciar a natureza, o rio, o céu, o nascer e o pôr do sol, as nuvens, as estrelas, as pessoas, a estrada poeirenta, faz parte da afeição cuja fundamento é a própria sensibilidade. Mas, a maioria das pessoas teme a sensibilidade porque não quer sofrer. Para evitar o sofrimento, preferem embrutecer-se mas, nem assim a sensibilidade desaparece. Inconformados, buscam o divertimento, a religião, as crenças, as intrigas, as reformas sociais, a luta por ideais, como formas de fuga. Mas, nada disso funciona. A sensibilidade não é uma qualidade pessoal; se fosse conduziria, inevitavelmente, ao sofrimento (como qualidade do “eu”). Amar é romper com essa cadeia interminável de reações individuais. Não há barreiras para o amor; ele não se limita a um ou a vários objetos amados. Para que haja sensibilidade é preciso que todos os sentidos estejam plenamente despertos, atentos e atuantes. O medo de nos escravizarmos aos sentidos é o desejo de fugir da realidade.

Ao tomarmos consciência do fato, libertamo-nos da servidão; é o medo do fato que nos aprisiona, porque tentamos modificá-lo e isso é impossível pois o fato é “o que é”. O pensamento vem da área dos sentidos e é responsável por inúmeras limitações e sofrimentos, mas nem por isso nós o tememos. Pelo contrário, tentamos torná-lo nobre através da respeitabilidade, e dignificá-lo pelo cultivo da vaidade. A lúcida observação do pensamento, do sentimento, da emoção, do mundo que nos rodeia, de nosso local de trabalho ou em que vivemos, da natureza, significa vibrar, a cada instante, na afeição. Sem afeição, sem afeto, toda ação é mecânica e resulta em opressão e decadência.

Para os pretensamente religiosos, a sensibilidade é sinônimo de pecado, mal próprio de pessoas mundanas. Para eles, ser religioso é resistir às tentações, à tentação do belo, esse mal que desencaminha os seguidores daquela religião ou crença. Contudo, a sensibilidade é a base do afeto. O monge e o “sanyasi” temem os sentidos, mas não temem o pensamento que serve ao deus de sua escolha, sem perceberem que esse pensamento pertence justamente aos sentidos e é dos sentidos que ele nasce; e há aqueles que temem os sentidos e os pensamentos deles advindos e, até mesmo se auto-flagelam ou sofrem por isso.

É estranho como poucos dizem: “não sei”. Para que possamos, realmente, dizer e sentir que não sabemos é preciso ter humildade; mas ninguém admite o fato de que nada sabe. É a vaidade que busca reconhecimento. Porém, ao admitirmos ignorância sobre alguma coisa, interrompemos o processo mecânico do saber. Devemos dizer “não sei” quando não sabemos e não estamos preocupados em ficar sabendo; adotando este caminho, aquele que o faz se acha em permanente estado de aprendizado.

Estar livre da experiência, do acúmulo de conhecimento, é a marca da pureza da mente. Morrer para qualquer tipo de experiência é necessário para que ela não crie raízes no solo fértil do cérebro. A experiência faz parte da vida, mas a vida, baseada só em experiências, não tem sentido.

Toda crença é mero verbalismo, conclusão do pensamento, conjunto de palavras sem qualquer valor, que corrompe e avilta a beleza espiritual. Destruir a fé na crença é o mesmo que destruir a estrutura interna, sempre infrutífera, da busca de segurança. O mais alto grau do sentimento de segurança brota de um estado de total insegurança, bem diferente da súbita e violenta privação de segurança, origem de inúmeros estados patológicos; enquanto que o viver na insegurança, mas sem medos (pois não existe segurança, em lugar nenhum, nem física nem psicológica, e isto é um fato irrefutável), é ter a força da humildade e da inocência, força que é impossível aos orgulhosos e arrogantes.

Todos estão tão ocupados que não vêem o céu, as estrelas, a cor das flores, o pôr do sol, as nuvens coloridas, o riso das crianças. No fundo, todo mundo é igual ao político, que só se preocupa com o imediato e que tenta reduzir a vida a esse nível estreito. Para escapar ao sofrimento, o homem criou a bebida, a droga, a igreja, o divertimento, a família; passou a crer, ardentemente, em alguma coisa (mesmo que não tenha qualquer base para isso), mergulhou no trabalho, adotou um padrão qualquer de pensamento ou conduta, para preencher o tempo ou para esquecer as preocupações. Mas, tudo isso foi tentado em vão, pois o nosso coração continuou tão vazio quanto nossa mente e, ao buscarmos outro caminho, nos perdemos no imediatismo (nas ações que têm resultado rápido, de benefício transitório, sem prever as conseqüências a longo prazo).

Ao cérebro é impossível experimentar o vazio intemporal; experimentar é reconhecer e só podemos reconhecer aquilo que já conhecemos. Portanto, só lhe resta permanecer imóvel, sem nada fazer, sem nada reivindicar ou buscar, pois lhe falta competência para isso (não faça nada, recomendam os sábios).

Cada coisa tem seu lugar e dimensão, mas não aquela estranha energia que não se acha em parte alguma; é inútil procurá-la. Ela não está à disposição nem mesmo dos mais fieis seguidores de qualquer religião ou crença. Quando tudo for destruído, quando for varrido todo vestígio do passado, dando lugar ao imenso vazio, só então aquela desconhecida e poderosa bênção poderá surgir do infinito.

É inútil qualquer intenção de mudança, pois ela visa um motivo, um objetivo ou direção, sendo, assim, mera continuidade do que foi. Essa atividade é inútil e sem sentido; é como ficarmos trocando a roupa de uma boneca até o dia em que, cansados dessa atividade mecânica e sem vida, o brinquedo se quebra e o jogamos fora. A morte é o fim inevitável de toda mudança, pois esta é simples continuidade modificada do passado. A mutação, a revolução total, só ocorre quando percebemos a falsidade do processo de tentar mudar; então, no total abandono do velho molde de pensamento, se realiza a mutação, o novo.

“Aquela força, o amor, inundava-nos o cérebro, a mente e o coração a ponto de nada mais existir”.

Qualquer repressão ou esforço no sentido de ajustar ou condicionar o pensamento, torna-se obstáculo à meditação. Se estivermos em busca de sonho, experiência ou sensação, a meditação só nos trará ilusão e frustração. O único sentido da meditação é provocar o florescimento e o findar do pensamento; este só pode florescer em liberdade, jamais nos diferentes padrões de conhecimento. Toda mente que busca experiência ou sensação é imatura. Ser amadurecido é estar livre de qualquer desejo de experiência; é quando a mente se acha livre de toda e qualquer influência, no sentido de ser ou não ser isto ou aquilo. Atinge-se a maturidade na meditação ao libertar-se a mente da influência do saber, que molda, condiciona e torna impura toda e qualquer experiência ou pensamento. Ser imaturo é ansiar por experiências cada vez mais amplas e abrangentes, enquanto meditar é ir além do mundo do conhecimento e, em liberdade, penetrar no inefável desconhecido.

É estranha a importância que se dá ao dinheiro; todos lhe dão valor, tanto quem o dá como quem o recebe, seja rico ou pobre, poderoso ou miserável. Sem cessar falamos no dinheiro e se, por educação, evitamos mencioná-lo, nem assim o perdemos de vista. Mas, mesmo que você tenha muito dinheiro, o sofrimento e a aflição continuam existindo. O valor que se dá a uma pessoa é proporcional ao cargo que exerce, aos diplomas que acumula, à capacidade profissional, à sua eficiência e ao salário que recebe. E há a inveja do rico e a inveja do pobre, e o espírito de competição motivado pelo desejo de aparecer, de exibir roupas e posses, carros, jóias, mansões, sabedoria e brilho intelectual.

Todo mundo deseja impressionar alguém e, quanto maior a platéia, tanto melhor. Mais importante que o dinheiro, só o poder. Os dois juntos formam uma dupla perfeita; ainda que não tenha dinheiro, o santo, com seu presumido poder, influi tanto sobre os ricos quanto sobre os pobres. Os políticos se aproveitam do povo, do santo, dos deuses, do que for necessário, para vencer e transmitir aos demais o absurdo da ambição e a brutalidade do poder (que é o que eles mais usam). Não há limite para o dinheiro nem para o poder; quanto mais possuímos, mais queremos possuir, e isso não tem fim.

Contudo, nem mesmo todo o dinheiro e todo o poder do mundo eliminam o sofrimento; por mais que você tente escapar dele, racionalizá-lo, esquecê-lo, ele está sempre ali, como uma ferida dolorida e incurável. A fuga torna-se, então, de extrema importância; mas, ela é a essência da superficialidade, mesmo que tenha aspecto de seriedade. Para eliminar o sofrimento temos de atingir-lhe as raízes, penetrar até o fundo de nós mesmos, desvendando os mais íntimos recessos de nossa consciência. É necessário perceber, sem criticar nem julgar, todo e qualquer sentimento ou reação, até o mais leve vestígio ou inclinação do astuto pensamento. É o mesmo que seguir a trilha de um rio até sua origem; o próprio rio (no caso, o pensamento) se encarrega de guiar-nos. Cumpre-nos acompanhar todas as pistas que conduzem ao âmago do sofrimento. Para isso, basta observar, ver e ouvir, pois tudo está às claras. Precisamos empreender essa longa viagem, não em busca de um deus, mas para dentro de nós mesmos. Ou damos um salto nessa direção e de pronto acabamos com o sofrimento, ou a viagem se tornará mais longa, morosa, fútil, sem significado e sem paixão. Enquanto existir fuga, seremos incapazes de sentir paixão e, sem paixão, é impossível acabar com o sofrimento. A paixão só surge quando deixamos de fugir.

Não podemos perceber o mundo exterior sem sermos impelidos a vagar pelo mundo interior. O externo é o interno, o que está dentro é o que está fora e é quase impossível estabelecer uma diferença entre esses dois mundos.

O hábito, ainda que conveniente, destrói a sensibilidade; com o hábito vem a sensação de segurança, que impede a sensibilidade e a lucidez. É incrível a rapidez com que o hábito se forma, dando origem ao prazer e à dor, ao tédio e àquela estranha coisa chamada lazer. Habituamo-nos a trabalhar quarenta anos, após o que buscamos o lazer; ou, ao fim de um dia de trabalho, temos o lazer. Primeiro, é o hábito do trabalho, depois, o hábito do lazer. O hábito origina-se do pensamento que está sempre em busca de segurança ou de um estado de imperturbabilidade. E é essa busca de um estado imperturbável permanente que nega a sensibilidade. A sensibilidade jamais causa sofrimento; este vem das diferentes formas de fuga. Ser sensível é estar plenamente vivo e atento; daí pode surgir o verdadeiro amor e a verdadeira compaixão.

A meditação nunca é a mesma; nela existe sempre um sopro novo; ela não visa destruir um determinado padrão, pois não se cogita de um outro padrão ou de um novo hábito para substituir o antigo. Todo hábito, por mais recente que seja, tem o ranço do velho, pois nasce do que já é conhecido. A meditação não destrói o velho porque está em busca de uma padrão mais novo; ela é o próprio e avassalador efeito do que é novo, original; sem ser o oposto do velho, área que lhe é totalmente desconhecida, a meditação é a própria destruição do velho. De sua demolidora ação vem o novo. O que existe na meditação é a destruição de todo brinquedo, das visões, das idéias e das experiências em geral. Meditar é negar, sem reagir; e negar e contestar é agir sem motivo, e isto leva ao amor.

A meditação não vem através do esforço, pois este faz parte da reação, da contradição e da resistência; o esforço e a escolha são a raiz do conflito e do sofrimento, e a meditação seria, então, mera fuga do fato, fuga daquilo “que é”.

Embora capaz de pintar um quadro, esculpir em pedra, escrever coisas inspiradoras, construir um complexo mecanismo, o pensamento é limitado pelo espaço e pelo tempo, incapaz de transcender seus próprios limites, incapaz de criar (coisa nova). A criação só surge quando o pensamento não mais existe.

Pensamos ser impossível agir, existir, viver sem um motivo e, assim, nossa vida é uma atividade enfadonha e sem sentido. Para nós não há ação sem motivo e o motivo é sempre a vantagem, nossa satisfação de um modo ou de outro; daí sermos destituídos de amor e serem horríveis nossas relações com os demais. Nosso apego a coisas e pessoas serve apenas para encobrir nosso próprio vazio, nossa solidão e insuficiência interior. Mas, o amor é sem motivo e, quando o amor está ausente, toda sorte de motivos se instala. E é tão simples viver sem motivos; basta ser integro, sem jamais se conformar com idéias ou crenças, ou depender de outrem. Ser integro é ter autocrítica, é estar consciente de si próprio de instante a instante (é buscar o auto-conhecimento, estar sempre presente, atento na observação de si, nas reações internas, aqui e agora).

Nós nos acostumamos com qualquer coisa, mesmo com o sofrimento e a infelicidade; se não nos acostumássemos tão facilmente, seriamos mais infelizes e perturbados. Julgamos ser melhor tornarmo-nos insensíveis e embotados do que termos de enfrentar novos e maiores problemas. Podemos até invocar razões econômicas, psicológicas ou religiosas, mas permanece o fato: todos preferem “ir levando”, trabalhar no escritório ou na fábrica mais de trinta anos e aceitar o tédio e a futilidade de uma vida inútil e vazia; e dizemos: “temos de viver, temos responsabilidades e, portanto, é mais seguro aceitar as coisas assim como são”. Nós nos acostumamos com aquilo que chamamos amor, com o medo, com os abusos do governo, com leis que nos oprimem, com a aproximação da morte, com tudo. O hábito se transforma em (falsa) bondade, em (falsa) virtude; até mesmo as fugas e as religiões se transformam em hábito. Mas, a mente que vive no hábito é fútil, estúpida e imatura. O hábito é o velho, o conhecido.

A meditação traz a morte do conhecido e o desabrochar do atemporal.

Qualquer experiência, a sensação ou a reação a qualquer estímulo, destroem a percepção lúcida das coisas e, em conseqüência, a capacidade de compreender. Mesmo que indispensável para a sobrevivência do homem, o processo de acumular conhecimentos jamais vai além dos limites do tempo e do espaço.

“Um estranho e singular sentimento de paz, de suavidade e purificação se espalhou pela terra...”

A beleza não é produto da inteligência humana; as realizações do homem podem provocar sentimentos e emoções, o que nada tem a ver com a beleza. O belo não está nas coisas feitas pelo homem. É preciso transcender tudo isso, abandonar todos os gostos pessoais, toda forma de escolha e todas emoções para que a verdadeira beleza exista e, com ela, o verdadeiro amor.

A meditação começa como um pequeno filete e, indo além dos limites do tempo e do espaço, lá onde o pensamento não tem competência para penetrar, pode se transformar em rio caudaloso. Meditar é esvaziar a mente, sem nenhum motivo, fim ou esforço, na mais completa entrega do ser; é deixar a mente totalmente vazia de tudo que é conhecido, consciente ou inconscientemente, de todo pensamento, imaginação, memória, ideal ou emoção. Negar é a essência da liberdade; concordar e apegar-se ao conhecido é aprisionar-se.

Por ser atividade mecânica e do passado, o pensar não traz solução a nenhum dos problemas humanos, que são sempre novos e reais. E isso traz sofrimento, que é obstáculo ao amor. Entretanto, podemos até acabar com o sofrimento, mas não podemos trazer o amor para nossa vida. O sofrimento é auto-compaixão, isto é, pena de nós mesmos, seguida de ansiedade, medo e sentimento de culpa ou de impotência; o pensamento é incapaz de libertar-nos de tudo isso, pois ele cria o pensador, o eu, gerando o sofrer. Mas, libertando-se do pensamento, que é o próprio “eu”, o homem destrói todo o sofrimento e pode perceber o amor e a sabedoria.

A mente jamais adormece, mas torna-se enfraquecida pelos hábitos e pelo prazer passageiro, que sempre trazem desejo de repetição e impedem seu total desenvolvimento. Mas, o hábito e o prazer se tornam tão importantes para nós, mesmo gerando apenas insignificância, que as coisas mais sem importância do imediatismo preenchem todo o espaço mental. O pensamento age na esfera do tempo imediato e só é capaz de resolver questões mecânicas. Mas, a meditação não é como a máquina que pode ser preparada para funcionar de determinada maneira. Livre e espontânea como o amor, que é sem motivo, a meditação nos leva à parte nenhuma. Ela é movimento infinito que atua na esfera do tempo, sem dele fazer parte. A meditação nos torna conscientes de todo conflito, de toda dor, e faz surgir toda claridade do ato de ver. Toda busca de liderança, de caminhos, gurus, mestres e livros, devem cessar com a natural espontaneidade da folha que cai ao chão, para que aconteça a meditação.

A automatização e computadores podem alterar o rumo dos acontecimentos e proporcionar ao homem mais horas de lazer; mas, isso só irá aumentar o número de problemas que já o atormentam. O amor não acarreta problemas e, por isso, é tão perigoso amar, pois o homem vive de problemas, de questões intermináveis e sem solução; sem eles, o homem não saberia o que fazer; sentir-se-ía perdido e lesado. Por isso, os problemas se multiplicam sem cessar; ao resolver um deles, surge logo outro e assim sucessivamente até sobrevir-lhe a morte. Antes da morte, vem a velhice, a doença e uma série de problemas que nenhum computador pode resolver. A destruição e a morte que daí advêm são totalmente diferentes daquela destruição e morte que surgem com o amor. São como as cinzas de uma chama artificial, o ruído de máquinas automáticas que funcionam sem parar. Não podemos cultivar o amor mas, se não o procuramos e se somos totalmente livres de problemas, pode acontecer que ele desponte para nós.

Como se tornou respeitável o sofrimento! A cada dia aumenta o número de teorias e explicações que apontam o sofrimento como uma maneira de se atingir virtude e sabedoria; exaltado pelas religiões e cultivado com cuidado em todas as casas, o sofrimento é aceito por todos, e provoca lágrimas e preces. Desse modo, o sofrimento persiste; todo coração o conhece, quer esteja conformado, quer esteja fugindo dele; e isso intensifica o sofrimento que, como erva daninha, acaba por sufocar o coração. Mas, com o sofrer, vem a auto-compaixão, a pena de si mesmo, seguida de intermináveis memórias (histórias pessoais). A raiz do sofrimento está na memória, nas coisas mortas do passado. Este tem, para nós, enorme significado, por ser o mecanismo que dá sentido às nossas vidas e por representar nossos bens e posses materiais. A origem do pensamento está no ontem, nos dias passados; sofrer é viver no dia de ontem e, enquanto a mente não se libertar do passado, ela continuará no sofrimento. Por pertencerem ao passado, nenhum pensamento, idéia ou ideal poderão libertar a mente. A perda que sofremos no passado é a origem da auto-compaixão e da insensibilidade que temos hoje. Esse processo aguça o pensamento e, novamente, ele desencadeia o incessante mecanismo da dor. A lúcida percepção de todo esse processo liberta a mente do sofrimento, cujo findar está no ato de ver e compreender, mas sem julgar nem emitir opinião. Para que nasça o incognoscível (o desconhecido) tem que findar o conhecido.

A mente está sempre ocupada com alguma coisa, por mais insignificante ou ridícula que essa coisa possa ser. É como o macaquinho que não cessa de se agitar, de tagarelar, ao mesmo tempo em que tenta desesperadamente aquietar-se. Nada há para se temer no vazio da mente; só vazia ela poderá penetrar no desconhecido. Enquanto não existir o vazio da mente, tanto o que faz de melhor aquela senhora, quanto o que faz de melhor o chamado santo, será superficial e sem sentido. A mente que está ocupada não tem possibilidade de desvendar seus mistérios íntimos. O atemporal, o incognoscível, surge de estar vazia.

É impossível ao passado, que nós somos, encontrar-se com o incognoscível; nada nos poderá unir; nenhuma ponte nos permitirá chegar àquela desconhecida bênção. O passado tem, simplesmente, de findar para que o incognoscível se revele.

(Pela leitura do Diário, percebe-se que, quando Krishnamurti observava as coisas do mundo ao seu redor, com completa atenção (a observação sem escolha ou indiferente com relação aos objetos observados), árvores, animais, pássaros, pessoas, rios, nuvens, vento, frio, céu, calor, chuva, flores, galhos etc, a “coisa” se tornava perceptível para ele).





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