sexta-feira, 25 de novembro de 2011

(5) NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA (jan 2008)

(5) NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA (jan 2008)


(Baseado em ‘O Espectro da Consciência’, de Ken Wilber).



Um estudo de Wilber, um dos mais respeitados psicólogos do Ocidente, sobre a psicologia do Ocidente e das tradições místicas do Oriente, mostrando que não são antagônicas, mas complementares, e que as práticas místicas podem nos levar à ‘iluminação’.

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1. INTRODUÇÃO

J. Fadiman afirma que ‘Wilber escreveu o livro mais sensível e abrangente sobre a consciência desde William James’, enquanto Deepak Chopra diz que as obras de Wilber estão sempre ao alcance de suas mãos.

Spencer Brown: ‘O universo que conhecemos é construído a fim de ver-se a si mesmo. Para fazê-lo ele precisa primeiro dividir-se, pelo menos, em um estado que vê e, pelo menos, em outro estado que é visto’. (Krishnamurti: ‘a mente é vazia e, por isso, o cérebro existe no espaço e no tempo’).

D.T.Suzuki: ‘Em sua natureza original, a consciência, tranqüila e pura, está acima do dualismo sujeito e objeto’ (tudo é um).

W.James: ‘Nossa consciência normal é apenas uma forma de consciência. Em toda sua volta, separadas dela pelo mais fino véu, estão outras formas de consciência inteiramente diversas. Podemos passar a vida inteira sem suspeitar-lhes a existência; porém, aplique-se a elas o estímulo adequado e ei-las ali em toda sua inteireza. Não pode ser completa nenhuma explicação do universo que não considere essas outras formas de consciência. De qualquer modo, elas nos levam a um antecipado acerto de contas com a realidade’ (Krishnamurti: levam-nos àquilo que está após a morte biológica: um novo estado de existir).

Os cientistas ocidentais, com importantes exceções, acham que a mente ‘oriental’ é regressiva ou atrasada, enquanto que o místico oriental afirma que o materialismo científico ‘ocidental’ é a mais grosseira forma de ignorância espiritual e de ilusão.

Assim, afirma F. Alexander, psicanalista ocidental: ‘As semelhanças evidentes entre os sintomas da esquizofrenia e as práticas do Yoga e do Zen mostram que a tendência geral das culturas orientais é o recolhimento ao interior do eu, para fugir de uma realidade física e social terrivelmente difícil’.

E D.T. Suzuki, grande autoridade no Zen Budismo: ‘O conhecimento científico do Eu não é um conhecimento verdadeiro. Este só é possível quando os cientistas abandonam seus instrumentos e confessam não poder continuar as pesquisas.’

Devemos aplicar os métodos, em geral ‘ocidentais’, de reafirmar a auto-confiança, criar egos saudáveis, lidar com as neuroses, viver plenamente como indivíduos. Mas, se desejarmos ir além do eu individual e penetrar num nível de consciência muito mais rico e pleno, temos de aprender com os investigadores da Mente, da percepção mística, da Consciência Cósmica, na maioria ‘orientais’.

(Qualquer método que ajude a produzir um estado de relaxamento e de tensão reduzida pode levar à experiência mística).

Enquanto a psicologia ocidental procura corrigir a auto-imagem, integrar o ego, reafirmar a autoconfiança, criar metas realistas e práticas para a vida, objetivos que não garantem uma completa libertação dos sofrimentos nem a total cura dos sintomas perturbadores, mas apenas, e até certo ponto, a uma redução das ‘neuroses normais’, que são conseqüência natural de sermos um ego, a meta das abordagens orientais é o esquecimento e a transcendência do ‘eu’ para levar à ‘iluminação’. Esta abordagem afirma conhecer e explorar um nível de consciência que oferece total liberdade e completa extinção da principal causa de todo sofrimento do homem e põe fim às nossas incessantes buscas de felicidade e paz.

As únicas autoridades dignas de confiança com as quais podemos contar cientificamente, são aqueles que perceberam os vários níveis da consciência, como o de ser um ego e o de ir além do ego. Suas opiniões sobre a natureza da Mente, da percepção mística, são impressionantemente idênticas e universais (uma ‘experiência de concordância universal’, segundo Einstein). Transcender o ego é um estado ou nível de consciência infinitamente mais rico, mais natural e mais gratificante do que podemos imaginar em nossos mais ousados vôos de fantasia.

Há, assim, duas opções de julgar a verdade sobre a Mente: crer naqueles que a experimentaram, ou tentar experimentá-la nós mesmos; se não fizermos nem uma coisa nem outra, devemos evitar o julgamento de que isso é ilusão, alucinação ou doença mental. As disciplinas orientais, como o Vedanta e o Zen, não são teorias, filosofias, psicologias, nem religiões; são um conjunto de experiências no sentido rigorosamente científico do termo. Consistem de prescrições que, se seguidas à risca, resultarão seguramente no descobrimento do Nível da Mente pura (isto é, daquilo a que chamamos Deus). Recusar-se alguém a aceitar resultados de experimentos científicos dessa natureza, porque não gosta dos métodos usados, é um gesto profundamente anticientífico. Rejeitar um fato, ‘cuja prova experimental é possível’, é absurdo, pois existe um caminho prescrito para os que desejarem testá-lo. Quando falamos da percepção do Absoluto, não estamos falando de um ponto de vista apenas teórico. Falamos de dados obtidos pela prática, pela experiência, e o cientista que zomba de tais resultados, sem antes ter o cuidado de realizar o experimento, não passa de um cientista no sentido mais pobre do termo.

W. James: ‘Todo o fluxo da minha educação convence-me de que o mundo de nossa consciência ordinária é apenas um dos muitos mundos de consciência existentes, e de que os outros mundos hão de conter experiências que também têm significado para a nossa vida; e de que, embora na maior parte das vezes suas experiências se mantenham discretas, elas e as deste mundo se mostram interligadas em certos pontos.’...‘O Nível da Mente pura é, de certo modo, mais real, mais básico e mais significativo do que os outros. Essa experiência é tão total e terrivelmente convincente que, quem a experimenta, sente que os outros níveis de consciência (aqui incluído nosso nível comum de consciência) são irreais, ilusórios e semelhantes a sonhos’.

Tennyson: ‘Um transe em estado de vigília me sucede ao repetir meu próprio nome em silêncio, até que, de repente, minha própria consciência individual parece dissolver-se no Ser sem limites; e não se trata de um estado confuso, mas do mais claro dos claros, do mais seguro dos seguros, do mais estranho dos estranhos, totalmente além das palavras, no qual a morte é uma possibilidade ridícula, e a perda da personalidade (do ego) não é uma extinção, mas a única vida verdadeira’.

Para os incrédulos, a afirmação de que só o Nível da Mente é real, ou que é a única vida verdadeira, o que significa que o nosso ego é uma ilusão, produz estranheza total. Mas, todos os que investigaram esse nível (os místicos e, hoje, cientistas quânticos) afirmam: o ‘eu’ é uma ilusão. E a essência de suas revelações é: a realidade única e absoluta é a Mente pura. A Mente é o que é e é tudo o que é, infinita, eterna.



2. OS DOIS MODOS DE CONHECER

Quando o universo como um todo procura conhecer-se por meio da mente dos seres sencientes, como afirmam cientistas, místicos e filósofos, alguns aspectos seus permanecerão desconhecidos. Com o surgimento do conhecimento dualístico (eu e não-eu), simbólico, teria surgido uma divisão no universo, entre observador e coisa observada, entre conhecedor e conhecido, sujeito e objeto e, por isso, nossa consciência mais íntima, investigadora do mundo, continua desconhecida para nós, do mesmo modo que os olhos podem ver o mundo, mas não podem ver a si mesmos. (Krishnamurti afirma que ‘a mente (total, universal) é vazia e, por isso, o cérebro existe no espaço e no tempo’, concordando com as afirmações acima de que o universo procura conhecer-se por meio da mente dos seres sencientes).

Eddington, físico: ‘Não podemos fugir ao fato de o mundo que conhecemos ter sido construído com a finalidade de ver-se a si próprio. É evidente que, para isso, ele precisa primeiro cortar-se em um estado que vê e em outro estado que é visto. Nessa condição mutilada, o que quer que ele veja nunca é totalmente ele’.

Esse tipo de conhecimento dualístico, parcial e ilusório (pois deixa sempre alguma coisa de fora, sem ser vista) e que divide o mundo em sujeito e objeto, por mais surpreendente que pareça, é a base de toda filosofia, teologia e de todas as ciências ocidentais da atualidade. Assim, os dualismos do bem e do mal, cujo estudo é a ética, o da verdade e da falsidade, cujo estudo é a lógica etc. No correr da historia, o pensamento ocidental gerou outros numerosos dualismos: instinto e intelecto, matéria e energia, onda e partícula, espírito e matéria, tese e antítese, mente e corpo, destino e livre-arbítrio etc.

Até 1.600, os únicos sistemas de pensamento desenvolvidos estavam nas organizações religiosas ou filosóficas. As observações sobre a natureza estavam desorganizadas. Por dois mil anos o homem tentou classificar os fenômenos que observava no chamado mundo objetivo, até que, ali por 1.600, Kepler e Galileu estabeleceram a regra de que as leis da natureza deveriam ser descobertas pela mensuração (medição). A nova tecnologia prometia o que até então não se havia conseguido: a descoberta da Realidade Final e Absoluta. Agora, todas as descobertas tinham que se limitar ao que fosse mensurável. Caso contrário, a coisa ou não existia, ou não merecia ser conhecida.

Aí por 1.900, a ciência estava convencida de que nada mais havia a ser medido; que chegara ao fim da busca da Realidade, certa de que já havia descoberto, pela mensuração e verificação objetivas, todas as leis universais e absolutas do ‘Grande Relojoeiro’ que construíra o universo. Só faltava medir o próprio Relojoeiro.

Porém, a ciência não conseguia explicar dois importantes fenômenos: o fotoelétrico e a radiação de energia de certos corpos. Num estudo genial, que solucionou o problema, o físico Planck provou que a energia não é contínua como se supunha, mas que ela vem em pacotinhos, ou ‘quanta’ (nome dado por Einstein) e, com isso, compreendeu-se que a estrutura sólida da matéria é pura ilusão. Broglie, outro cientista, provou que também a matéria, como a energia, produz ondas. Essa descoberta levou Schroedinger, outro físico, a formular a monumental mecânica quântica. Essas descobertas resultaram numa conclusão devastadora: o Princípio da Incerteza, do físico Heisenberg, de implicações tremendas (o fluir dos eventos é imprevisível e, portanto, totalmente incerto).

Mas, a ciência insistia na suposição de que a Realidade era aquilo que podia ser verificado objetivamente (visto, pesado, apalpado, etc). Contudo, quando a investigação chegou à física subatômica, os cientistas desejaram localizar e medir (observar) as partículas, como os elétrons, que eram julgados a realidade das realidades, as coisas finais e indivisíveis que compõem toda a natureza. Não havia, porém, como fazê-lo, pois o próprio ato de medir fazia o elétron mudar de posição. Não era um problema técnico, mas um problema da própria construção do universo. Os físicos concluíram então que a suposição de que o observador está separado do universo que ele observa, de que podemos observar o universo, nós aqui, o universo lá, sem afetá-lo, é impossível. Sujeito (observador) e objeto (coisa observada) se acham intimamente unidos, e todas as teorias que supunham o contrário ruíram. Para a física atual, é inadmissível a idéia de que o observador está separado do fenômeno que está observando. Essa incapacidade de localizar de forma definitiva as últimas realidades do universo foi matematicamente proclamada como o Princípio da Incerteza e marcou o fim da visão da ciência clássica e dualística sobre a realidade, de tal modo que a ciência passou a exigir total re-interpretação, conforme afirmou Einstein.

Whitehead: ‘Os velhos alicerces da ciência se partiram e as bases estão ficando totalmente incompreensíveis. Tempo, espaço, matéria, eletricidade, mecanismo, organismo, estrutura, modelo, função, tudo requer re-interpretação’.

Broglie: ‘No dia em que os ‘quanta’ foram apresentados, o vasto e grandioso edifício da física clássica viu-se abalado nos próprios alicerces. Na historia da ciência poucas mudanças comparáveis a esta se registraram’.

A mecânica quântica foi um desastre para a física clássica porque destruiu a própria base sobre a qual ela havia sido construída: o dualismo (separação, divisão) sujeito-objeto. Até então, supunha-se que era real tudo que podia ser objetivamente observado e medido. Mas, como a nova física exaustivamente provou, as realidades finais em nenhuma circunstância podem ser precisamente observadas ou medidas. O simples ato de observar modifica a realidade.

Sullivan: ‘Não podemos observar a natureza sem perturbá-la’.

Andrade: ‘Observar significa interferir naquilo que estamos observando; a observação perturba a realidade’.

Tornou-se claro para os físicos que a mensuração e a verificação objetivas já não podiam ser, como se supunha, a marca da realidade absoluta, porque o ‘objeto medido’ nunca está separado do ‘sujeito medidor’; o medidor e o medido, o verificador e o verificado, o sujeito e o objeto são, em última análise, uma só e a mesma coisa. (Krishnamurti: ‘o observador é a coisa observada’).

Quase na mesma ocasião em que a física clássica desabava, Kurt Gödel, matemático, elaborou aquilo que é considerado o mais espantoso tratado do seu gênero e que, durante mais de cinqüenta anos, tem suportado todas as tentativas para derrubá-lo: o Teorema da Incompletude, um tipo equivalente ao Princípio da Incerteza de Heisenberg. Comprova, com todo rigor, que, quando se divide o universo em sujeito e objeto, num estado que vê e num estado que é visto, alguma coisa sempre fica de fora, isto é, a observação sempre é incompleta, o universo ‘sempre se oculta parcialmente de si mesmo’. Nenhum sistema observador pode observar-se enquanto observa. Assim, na base de todas as ciências encontramos: no mundo físico, um Princípio de Incerteza; no mundo mental, um Teorema de Incompletude; sempre haverá uma dúvida, o universo se oculta de si mesmo, alguma coisa sempre fica de fora.

Anteriormente, com o dualismo mente e matéria, se tentara descobrir de que substância básica se compunha o universo. Para uns, a mente não passava de ilusão, ou era redutível a partículas físicas, isto é, mente é matéria. Para outros, como as sensações relativas à matéria só existem na mente de alguém, isso mostrava que matéria não passa de uma idéia, isto é, matéria é mente. Mas, nenhum cientista tinha ainda conseguido provar a mente, diziam os adeptos de que tudo é matéria. Os novos físicos quânticos não discutiam isso; eles também não podiam encontrar qualquer substância mental, mas, e aqui vai o importante, também não podiam encontrar qualquer substância material. Um físico chegou a dizer: ‘Nossa concepção de matéria só é clara enquanto não a analisamos. Quando a analisamos, começa a se desfazer. A substância sólida da matéria é total ilusão. Perseguimos a substância sólida do líquido ao átomo, do átomo ao elétron, e aí a perdemos’ (a partir daí não existe mais nada material).

Bertrand Russell: ‘O mundo pode ser chamado físico ou mental, ou ambos, ou nenhum, como quisermos; na verdade, as palavras não servem para propósito nenhum’. (Krishnamurti: ‘A palavra não é a coisa’). A física quântica destruía o dualismo mente e matéria.

O dualismo primário, sujeito e objeto, mostrou-se insustentável pela opinião da própria autoridade da física. Bronowski: ‘A relatividade deriva da análise filosófica que insiste em que não há um fato e um observador, mas uma junção dos dois numa observação; que o evento e o observador são inseparáveis’. E Schroedinger, pai da mecânica quântica: ‘O sujeito e o objeto são apenas um. Não se pode dizer que a barreira entre eles caiu, como resultado das recentes descobertas da ciência; essa barreira nunca existiu’.

Assim, os novos físicos tiveram de abandonar o dualismo ilusório de sujeito e objeto, onda e partícula, mente e corpo, espírito e matéria e, com ajuda de Einstein, o de espaço e tempo, energia e matéria, espaço e objetos. A nova física provou que tudo isso é ilusão. Como as costas e a frente são apenas modos diferentes de ver um mesmo homem, nenhum modo sendo mais real do que o outro, assim sujeito e objeto, psique e corpo físico, energia e matéria, são apenas modos diferentes de ver a mesma realidade.

E os cientistas re-descobriram e comprovaram a existência de um outro modo de se obter conhecimento, um modo que não separa o observador da coisa observada, o sujeito do objeto, um modo não-dual, portanto.

Eddington: ‘As formas mais costumeiras de raciocínio foram desenvolvidas apenas para o conhecimento simbólico (dualístico). O conhecimento íntimo não se sujeita à codificação, conceituação e à análise; quando tentamos analisá-lo, perde-se a intimidade, que é substituída pelo simbolismo’.

‘Íntimo’ porque o sujeito e o objeto estão intimamente unidos na mesma operação. Assim que surge o dualismo, a intimidade se perde e é substituída pelo simbolismo, e caímos no mundo do conhecimento simbólico. Sendo apenas ilusão a separação entre sujeito e objeto, o conhecimento dualístico e simbólico que essa ilusão proporciona, é também ilusão.

Schroedinger: ‘O avanço atual não está no fato de haver o mundo da física adquirido caráter incerto; ele existe desde... e até antes, mas nós não tínhamos consciência dele; pensávamos estar lidando com o próprio mundo.’ Isto é, a física e a maior parte das disciplinas intelectuais ocidentais não estavam lidando com o mundo real, pois trabalhavam com o modo dual de conhecer, isto é, com representações simbólicas do mundo. Nossas palavras, idéias, pensamentos, conceitos, teorias e nossa linguagem do dia-a-dia, são apenas mapas, símbolos do mundo real, do ‘território’, e assim como um mapa da América não é o verdadeiro território, nossas idéias cientificas e filosóficas acerca da Realidade não são a verdadeira Realidade. Os problemas surgem quando nos esquecemos que o mapa não é o território e confundimos nossos símbolos da Realidade com a própria Realidade. A Realidade está além dos símbolos; estes são apenas uma cópia mal feita da Realidade.

Conforme Heisenberg, Einstein e Schroedinger, no íntimo da Realidade, observador e observado, conhecedor e conhecido, não são separáveis. Há, então, um segundo modo de conhecer, cuja natureza é não estar o conhecedor separado daquilo que ele conhece. Em face das recentes descobertas da física, o clássico e habitual modo de conhecer, dualístico e simbólico, revelou-se totalmente inadequado para o conhecimento daquilo que é Real, conhecimento que a física clássica prometera mas não trouxera. Essa inadequação levou muitos físicos a aceitarem o segundo modo de conhecer, o modo não-dualístico, que não divide nem mutila o mundo.

Esses dois modos de conhecer são universais, pois foram conhecidos, numa ou noutra forma, em várias épocas em todo o decorrer da história, do Taoísmo ao Vedanta, ao Cristianismo, ao Sufismo, ao Hinduísmo, ao Zen-Budismo.

Taoísmo: ‘O segundo modo de conhecer é o não convencional que visa à direta compreensão da vida, em vez de compreendê-la nos termos abstratos do pensamento representativo e simbólico’, que é fruto do convencionalismo dos homens.

Hinduísmo: ‘Há dois modos de conhecer: um superior e um inferior. O inferior corresponde ao que chamamos de mapa simbólico, um conhecimento comparativo, baseado na diferença entre sujeito e objeto. O modo superior não se alcança por meio de um movimento progressivo através das ordens inferiores do conhecimento, como se fosse a evolução até o termo final de uma série, mas repentina, intuitivamente, imediatamente’.

Berdyaev, teólogo cristão: “Não podemos deixar de lado o simbolismo na linguagem e no pensamento, porém ele não existe na consciência pura. Ao descreverem sua experiência, os homens utilizarão sempre símbolos espaciais (e opostos), como altura e profundidade, luz e sombra, belo e feio, bem e mal etc. Mas, na verdadeira experiência mística, esses símbolos desaparecem... essa experiência é realista e não simbólica; e está livre da elaboração conceitual’.

Eckhart, teólogo cristão: ‘No modo não-dual as criaturas são percebidas sem distinções; rejeitam-se todas as idéias, todas as comparações naquele Um que é o próprio Deus’... ‘essa é a maneira divina de conhecer’.

Budismo Mahayana: ‘Utilizamos o modo de conhecer, em nosso mundo dos sentidos e do raciocínio, caracterizado pelo dualismo no sentido de que um vê e o outro é visto, os dois se mantendo em oposição. No modo divino de conhecer essa divisão não existe; o que é visto e o que vê são idênticos; o vedor é o visto e o visto é o vedor’.

Enquanto o modo dualístico divide o universo em dois, mutilando, tornando falso e incompleto o que se procura conhecer, o modo não-dual mantém o universo uno, íntegro, não-dividido.

William James: ‘Há dois modos de conhecer: conceptual ou simbolicamente e imediatamente ou intuitivamente’. No conhecer imediatamente não existe interferência de pensamentos, memórias, associações, do ‘eu’, enfim (é o que a meditação produz). O modo simbólico ou representativo é o modo ao qual estamos condicionados: considera-se o objeto como se estivesse separado do sujeito; é o estabelecimento de uma cadeia de intermediários físicos ou mentais (associações, lembranças) que ligam nosso pensamento à coisa. O segundo modo de conhecer, porém, não contém duplicidade semelhante, pois ‘no conhecer imediatamente ou intuitivamente, o conteúdo mental do observador e o objeto observado são idênticos’.



3. A REALIDADE ÚLTIMA É A CONSCIÊNCIA

A conclusão inequívoca e unânime de vasto número de cientistas, filósofos, psicólogos, teólogos e físicos quânticos, que compreenderam profundamente esses dois modos de conhecer, é que só o modo não-dual nos dá o conhecimento da Realidade. O modo dual mutila, divide o universo e por ele só conheceremos aquilo que é pura ilusão. Entretanto, para a maioria dos ocidentais é muito difícil compreender isso, pois nossa civilização, identidades pessoais, filosofias, idéias e objetivos de vida se baseiam de forma tão profunda no modo dual de conhecer, que qualquer sugestão de que esse modo produz ilusão e não realidade, desperta, em todos, total descrença. O modo dual é ainda mais danoso quando o universo, por ele dividido e simbolizado, é considerado como se fosse o universo real.

Com esta nova visão, verificamos que os conhecimentos que temos do mundo desmoronam completamente, pois vemos, na base do mundo físico, não garantia de certeza, mas um Princípio de Incerteza; na base do mundo mental, um Teorema de Incompletude. Descobrimos, até, que ‘toda observação perturba a realidade’. E, apesar disso, não estamos inclinados a conhecer as descobertas (da física quântica) que exigem que reinterpretemos a própria ciência, o mundo e a nós mesmos. Em outras palavras, não queremos conhecer e, desse modo, nos defender, daquilo que é a origem de todas nossas ilusões, conflitos e sofrimentos. Preferimos enfiar a cabeça na areia.

Para muitos essa afirmação parecerá exagero, pois a maioria de nós nem concorda em questões políticas, quanto mais na questão da Última Realidade. Os antigos budistas Zen tinham uma ‘concepção’ da Realidade muito diferente da de um cientista moderno, e a concepção deste deve ser diferente da de um teólogo da Idade Média. Contudo, há dois modos diferentes de conhecer a Realidade. É verdade que as imagens do mundo dadas pelo conhecimento do mapa simbólico sempre diferiram muitíssimo de cultura para cultura, em todo o correr da história. Além disso, a imagem que temos do mundo mudará à medida que atualizarmos nossas idéias científicas, históricas, culturais. O modo não-dual de conhecer, porém, não tem como conteúdo quaisquer idéias ou imagens. Seu conteúdo é a própria Realidade, uma Realidade que é, em toda parte e em todos os tempos, a mesma, de maneira que o modo não-dual de conhecer resulta numa concordância filosófica única de extensão universal, uma compreensão da Realidade que ‘tem sido sustentada por homens que relatam as mesmas introvisões e ensinam a mesma doutrina essencial, quer vivam hoje, quer tenham vivido há milhares de anos’. Assim, a Realidade experimentada pelo budista Zen, pelo teólogo e pelo cientista moderno, utilizando o modo não-dual de conhecer, é idêntica em todos os casos.

Portanto, o conhecimento dualístico e simbólico, do primeiro modo de conhecer, produz diferentes imagens do mundo, enquanto o conhecimento não-dual e não-simbólico produz só uma imagem, ou melhor, uma só compreensão, já que é não-verbal, isto é, é sem palavras e sem imagens. Existe apenas uma Realidade, mesmo que possa ser descrita de diferentes maneiras conforme os mapas simbólicos das diferentes culturas. Em todas as épocas, houve homens que tiveram percepção dessa Realidade, pelo abandono temporário do conhecimento simbólico. Deixaram de falar ou de ler sobre ela e, em vez disso, experimentaram-na, e é o conteúdo dessa experiência que universalmente se proclama ser a Realidade Absoluta.

A prova não consiste na demonstração lógica, mas em experimentar o fato e, somente empenhados em despertar o modo de conhecer não-dual, saberemos por nós mesmos se ele é verdadeiro ou não. Ele nos revela a Realidade porque evita diretamente as mutilações associadas ao modo dualístico de conhecer, já que não divide o universo, não o deixa mutilado nem falso para si mesmo.

Teilhard de Chardin, monge e cientista: ‘Temos considerado a matéria de acordo com suas qualidades e em qualquer volume dado, como se fosse possível cortar um fragmento e estudar a amostra separada do resto. Já é tempo de saber que isso não passa de um truque intelectual. Considerado em sua realidade física, o universo não pode dividir-se, mas, como uma espécie de átomo gigantesco, forma um todo indivisível. Quanto mais profundamente penetramos na matéria, com métodos cada vez mais poderosos, mais se revela a interdependência de suas partes. Cada elemento do cosmo é positivamente tecido de todos os outros... É impossível cortar essa rede, isolar-lhe uma porção sem que ela fique puída e desfiada nas bordas. Em toda a nossa volta, o universo permanece uno, e só é realmente possível um modo de considerá-lo, a saber, encarando-o como um todo, uma só peça’ (o modo não dual de conhecer).

E como nossa identidade pessoal está intimamente relacionada com o nível de consciência no qual operamos, a mudança de nosso modo de conhecer traz mudança de nosso sentido de identidade. Por isso, quando utilizamos o modo dualístico, que separa o sujeito que conhece do objeto que é conhecido e, em seguida, atribui ao objeto um símbolo ou nome apropriado, isso faz com que nos sintamos totalmente separados do universo, dando-nos uma identidade expressa pelo nosso papel e por nossa auto-imagem (falsa, portanto), a imagem símbolo que formamos de nós mesmos ao nos tornarmos, por esse modo de conhecer, um objeto para nós mesmos, um objeto ‘separado’ do mundo.

O conhecimento não-dual, entretanto, não opera assim pois, como já vimos, é de sua natureza estar unido (ou ser) ao que se conhece, o que, evidentemente, requer mudança em nosso sentido de identidade. Afirmamos que o conteúdo do modo não-dual de conhecer é a própria Realidade Absoluta, porque revela o universo como ele é realmente e não como convencionalmente julgamos que seja. Contudo, não existe uma coisa chamada Realidade e uma outra coisa chamada conhecimento da Realidade. O conhecer a Realidade ‘é’ a própria Realidade. O conhecer não-dual e a Realidade são uma coisa só, pois se fundem na Experiência mística (isto é, só conheceremos a Realidade sendo, nós mesmos, essa Realidade; afirma Krishnamurti: ‘o observador é a coisa observada’, e Meister Eckhart: ‘ao conhecermos Deus, nós nos confundiremos nele, pois vamos perceber que somos um só’ e, como Jesus que disse: ‘eu e o Pai somos um’).

E chegamos a uma conclusão surpreendente: já que os modos de conhecer correspondem a níveis de consciência, e já que a Realidade é um modo de conhecer, daí se segue que a Realidade é um nível de consciência. A Realidade não é material nem espiritual; a Realidade é um nível de consciência, e só esse nível é Real. A Realidade é aquilo que se percebe e se sente pelo conhecer não-dual e não-simbólico. Embora um tipo de filosofia costume estar baseado nessa experiência fundamental, a experiência não é, por si mesma, uma filosofia; é, ao contrário, a suspensão de todas as filosofias; não é uma visão entre muitas, mas a ausência de todas as visões, sejam elas quais forem. É o que o hindu chama ‘percepção sem imagens’ ou o budista tibetano de ‘mente liberta de todos os conceitos’ (ou conteúdos), e o Zen de ‘estado de não-pensamento’ (mente não poluída por qualquer pensamento, seja bom ou mal, certo ou errado). O pensamento dualístico, isto é, formulado pelo ego, sempre adotado por nós todos, impede que conheçamos a Realidade Final e, portanto, o ego (que condiciona e interpreta erradamente) precisa ser afastado para que a Realidade se revele para nós.

Assim, ao afirmar que a Realidade é um nível de consciência, ou que a Realidade é só-Mente, estamos nos referindo a um estado de percepção em que o observador é a coisa observada, em que o universo não está dividido num estado que vê e noutro que é visto. Não está dividido em seres vivos, homens, animais, vegetais, pedras, ar, objetos, mares, terra, sóis, planetas etc; o universo é Um Todo indiviso. Utilizando-se o modo não-dual de conhecer, o conhecedor entra em comunhão com tudo o que ele conhece, de modo que sua identidade se transfere do indivíduo, que ele supõe que é, para o Todo, pois conhecer a Realidade é ‘ser’ a Realidade (Isso pode ser comprovado pela meditação).

‘Por mais inconcebível que pareça à razão comum (ao nosso modo de conhecer dualístico), nós e todos os seres conscientes somos tudo em tudo. Daí que a vida que estamos vivendo, não seja apenas um fragmento da existência inteira, mas, em certo sentido, é o Todo (a vida total)... Assim, podemos atirar-nos ao chão, estender-nos sobre a Mãe Terra, com a convicção absoluta de estarmos em comunhão com ela e ela conosco. Estamos firmemente estabelecidos e somos tão invulneráveis como ela; na verdade, mil vezes mais firmes e mais invulneráveis. Tão certo quanto ela nos engolirá amanhã, trar-nos-á outras vezes novas lutas e novos sofrimentos. E não somente ‘algum dia’. Agora, hoje, todos os dias, ela nos traz à vida, não uma só vez, mas milhares e milhares de vezes, exatamente como nos engole, todos os dias, milhares e milhares de vezes’.

Essa afirmação não vem de um ‘místico’ confuso, mas da clareza da mente de Schroedinger, o cientista que formulou a mecânica quântica, a ciência mais avançada e mais bem arquitetada do planeta.

Para mostrar que a experiência da Realidade Absoluta obtida pelo modo não-dual de conhecer é universal, vamos ao que segue, embora a Realidade somente possa ser comunicada por modos simbólicos, compreensíveis ou imaginativos, os quais contêm significados que nos farão, mais facilmente, compreender aquilo para o que não há palavras para descrever, e que dão a entender a Realidade em termos do que ela parece ser, do que ela não é e do que pode ser feito para alcançá-la. Nenhum meio existe para se dizer o que ela é.

O modo que ensina o que fazer para alcançá-la constitui a própria essência do Hinduísmo, Budismo, Taoísmo, Sufismo (as grandes tradições orientais) e é sempre um conjunto de instruções sobre como fazer despertar o modo não-dual de conhecer e, assim, conhecer, diretamente, a Realidade (Jesus: ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’). Essas instruções variam muito de cultura para cultura, cada uma tendo seu próprio grupo particular de regras, porque seus símbolos são sempre diferentes. Mas, sempre e onde quer que as instruções levem ao modo não-dual de conhecer, a Realidade experimentada é idêntica, é a mesma, tanto que Einstein e outros famosos a chamaram de ‘concordância universal’.

James Jeans: ‘No espaço e no tempo, nossas consciências são indivíduos separados. Mas, além do espaço e do tempo, elas talvez formem uma única e contínua corrente de vida. O que acontece com a eletricidade e o magnetismo pode acontecer com a vida: os fenômenos podem ser indivíduos carregando existências separadas no espaço e no tempo, enquanto que, na realidade mais profunda, além do espaço e do tempo, podemos ser todos nós membros de um só corpo’ (‘Eu e o Pai somos um’; ‘somos todos membros de Cristo’. O espectro-teclado das vibrações cósmicas, embora uma ‘única e continua corrente de vida’, nos apresenta existências aparentemente separadas: ondas de rádio, calor, som, luz, eletricidade, magnetismo, corpos químicos, sensações de tato, visão etc. Isso pode estar ocorrendo com as diferentes formas de vida: eu, você, os animais, vegetais, minerais, embora indivíduos de existências separadas quando no espaço-tempo, numa realidade mais profunda, além do espaço-tempo, podemos ser um só corpo, uma única vida, uma única Mente).

Schroedinger afirmou, referindo-se a esse ‘um só corpo’, que ele é ‘essencialmente eterno e imutável e numericamente um em todos os seres sensitivos... Por mais inconcebível que isso possa parecer à razão comum, nós e todos os outros seres conscientes somos de suprema importância. Daí que a vida que estamos vivendo não seja só uma peça da existência inteira mas, em certo sentido, é o todo.’, ‘Todas as consciências são fundamentalmente uma. O mundo externo e a consciência (mundo interno) são a mesma coisa’, ‘A multiplicidade das mentes individuais é apenas aparente, pois na verdade só existe uma Mente’. E: ‘A ciência, em sua fase atual, indica a indestrutibilidade da Mente pelo tempo’, ‘A única alternativa possível é... o fato de ser a Mente, ou consciência, um singular cujo plural não se conhece; que existe apenas uma coisa e o que parece ser uma diversidade não passa de uma série de aspectos diferentes da mesma coisa, produzidos por uma ilusão. Idêntica ilusão se produz numa galeria de espelhos, e identicamente Gaurisankar e o Monte Everest se revelaram o mesmo pico visto de vales diferentes’. (igual à história dos cegos que apalpavam diferentes partes de um elefante e, assim, imaginavam como seria o animal). Os fenômenos, seres e objetos são apenas diferentes aspectos de uma mesma coisa. É o que acontece quando se coloca um objeto na frente de um espelho - obtemos dois objetos onde, na verdade, só existe um).

Arthur Eddington: ‘Temos tão somente um enfoque verdadeiro, a saber, através do conhecimento direto, não-dual. O modo dual conduz tão-só ao mundo da física, onde corremos em roda como um gatinho perseguindo a própria cauda’ (o enfoque dualístico não leva à nada; é apenas ilusão).

Budismo Mahayana: ‘O que se pode compreender pelo intelecto não é a verdade. A verdade é a compreensão de si mesmo (auto-conhecimento) experimentada interiormente através da introvisão não-dual, e não pertence ao domínio das palavras, da dualidade ou do raciocínio (é indizível, como disse Paulo). O mundo é apenas Mente. Tudo é Mente’. ‘A Mente é o Reino da Realidade, a essência de todas as fases da existência em sua totalidade. A Mente é não-nascida e imperecível, além do tempo e do espaço. É somente através da ilusão que todas as coisas vêm a ser diferenciadas. Todas as coisas, desde o começo, transcendem todas as formas de verbalização, descrição e conceituação e são, em última análise, não-diferenciadas. Todas as explicações dadas com palavras são provisórias e, finalmente, sem validade. A Realidade (ou a divindade, como queiram) não tem atributos. Todas as coisas são apenas Mente Una’.

Budismo Zen: ‘Os Buddhas e todos os seres sencientes nada mais são do que Mente Una, ao lado da qual nada (mais) existe’.

Chang-Ching: ‘Quão enganado estava eu, que tentei alcançar a Mente através do intelecto. Ergue a tela (afasta o intelecto) e vê o mundo! Se alguém me perguntar qual é minha filosofia, bater-lhe-ei diretamente na boca com o meu bastão’. (Não há filosofia, não há raciocínio... e só algo superior ao intelecto, além do ego, pode nos levar à percepção da Mente).

Conforme as diferentes culturas, essa Realidade recebeu outros nomes: o Absoluto, o Caminho, Tao, Vazio, Espírito Santo, Divindade, Deus, Alá; consciência crística, Cristo, Buda, samadi, satori, nirvana, reino dos céus; ‘é que chamam muitos a quem é realmente um’ (O sufismo diz que a divindade tem mais de ‘mil’ nomes, pois nomes são apenas símbolos e nenhum a representa adequadamente).

Cristianismo: I Coríntios, 16:15-17: ‘Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? Aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele’. (Jesus: ‘eu e o Pai somos um’). João, 17:21: ‘A fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim, e eu em ti, também sejam eles um em nós’.

Plotino, místico, aconselha a ‘redução de todas as almas a Um’.

Eckhart, teólogo cristão: ‘Tudo na Divindade é Um, e a respeito disso não há o que dizer’, e nos estimula a ‘sermos, portanto, esse Um, para podermos conhecer Deus’.

Para sermos esse Um precisamos abandonar o dualismo, como sugere o Evangelho de Tomé: ‘Eles lhe perguntaram: Nós, sendo filhos, entraremos no Reino? E Jesus lhes respondeu: Quando fizerdes de dois um, e quando fizerdes o interior como o exterior, e o superior como o inferior, e quando fizerdes o macho e a fêmea um só, então entrareis no Reino’; e ‘Jesus disse: Eu sou a luz que está acima de todos eles, Eu sou o Todo,... Racha um pedaço de pau, Eu estou ali; ergue a pedra e ali Me encontrarás’.

Pedro, nos seus Atos: ‘És meu pai, mãe, irmão, amigo, escravo, administrador; tu és o Todo e tudo está em ti; e tu És, e nada mais é senão tu’.

Hinduísmo: ‘Assim como o ar, embora uno, assume novas formas no quer que penetre, o Espírito, embora Uno, assume novas formas no que quer que viva. Ele está dentro de tudo e fora de tudo... Há um Soberano, o Espírito que está em todas as coisas, que transmuda Sua forma em muitas. Somente os sábios que O vêem em suas almas conhecem a alegria eterna’; e ‘D’Ele vem toda vida e a mente e os sentidos de toda a vida. D’Ele vem o espaço, a luz, o ar, o fogo e a água, e esta terra que a todos sustenta... uma infinidade de seres vem do Espírito supremo’... ‘Todo este universo é, na verdade, Brahman’...‘Acima do tempo, tudo é Brahaman, Uno e Infinito. Ele está além do norte e do sul, do leste e do oeste, de cima ou de baixo. Para a unidade de Brahaman vai aquele que sabe disso’, isto é, aquele que teve a percepção. (O Velho Testamento diz que em Deus vivemos e respiramos e que Ele está acima e abaixo, à frente e atrás, à direita e à esquerda, dentro e fora de nós).

Taoísmo: ‘Não há nada que não seja este; não há nada que não seja aquele... Por isso digo que este emana d’aquele; e aquele emana d’este. Eis aí a teoria da interdependência deste e daquele... a vida vem da morte, e vice-versa; a possibilidade vem da impossibilidade, e vice-versa; a afirmação baseia-se na negação, e vice-versa, o certo baseia-se no errado e vice-versa. E, assim, o sábio rejeita todas as distinções (dualismos) e refugia-se no Céu. Isto é aquilo e aquilo é isto. Isto tem seu ‘certo’ e ‘errado’ e, aquilo também tem seu ‘certo’ e ‘errado’ (no entender comum). Existe pois diferença entre isto e aquilo? Quando isto (subjetivo) e aquilo (objetivo) estão ambos sem os seus correlativos (atributos, qualidades), esse é o verdadeiro ‘Eixo do Tao’... as afirmações e negações igualmente se fundem no Um Infinito’... ‘O Sábio, desse modo, apreende a Unidade Original’.

D.T.Suzuki: ‘As formas de dualismo são ignorantemente forçadas pela própria mente; parecem visões de flores no ar. Porque nos daríamos ao trabalho de pegá-las, se são apenas visões? Quando o dualismo já não prevalece, nem a própria identidade permanece como tal (Percebe-se que somos a divindade). A Verdadeira Mente não é dividida e quando nos pedem uma identificação direta, só podemos dizer: ‘Não dois’ (não-dual)’.

São Dionísio: ‘Não existe qualquer afirmação ou negação total que se possa fazer em relação àquilo que chamamos Deus’.

Sutra Lankavatara: ‘A Realidade é o eternamente impensável’.

A dualidade e os opostos, em suma, são termos de relação e de pensamento, mas não da Realidade. Quase todos nós, entretanto, obscurecemos a Realidade com os termos com que a representamos (ou conceituamos) e, assim, o objetivo dessas tradições mais profundas é nos mostrar a completa impossibilidade de aplicar o raciocínio dualista à Realidade.

T.R.Murti, budismo: ‘O real está obscurecido pelo véu de nossas emoções, associações e concepções’... ‘O método Madhyamika consiste em livrar nossa mente de todos os conceitos, pensamentos e idéias’ (a meditação produz essa liberdade). ‘Nossa percepção da Realidade é sempre deformada por nossa interpretação (mesmo que esse processo permaneça inconsciente para nós)’.

Quando olhamos para alguma coisa, uma palavra nesta página, o que realmente vemos não é apenas a palavra, pois o campo visual abrange a palavra, toda a página e, ainda, parte da área circundante. Mas, em geral, lemos a palavra e ignoramos a área circundante, o fundo à sua volta; isto é, inconscientemente ficamos alheios a todo o continuum visual, e desse modo criamos coisas. Inconscientemente, damos atenção para o aspecto do campo visual que nos interessa e ignoramos tudo o mais ao redor.

William James: ‘Daquilo que é em si mesmo um ‘continuum’ (ininterrupto) indistinguível, formigante, destituído de diferenças, nossos sentidos fazem para nós, atentando para este detalhe e não para aquele, sem o perceber, um mundo cheio de contrastes, de mudanças abruptas, de luz e sombras. Só notamos as sensações que são para nós sinais de coisas (importantes). Mas, o que são coisas? Nada, como veremos abundantemente, senão grupos especiais de qualidades sensíveis que, por acaso, nos interessam e às quais, por nos interessarem, designamos como substantivos e elevamos ao status privilegiado de independência e dignidade’ (como se fossem coisas).

Bérgson conhecia essa falsa realidade das coisas pois dizia, ‘o pensamento cria coisas cortando a realidade em pequenas fatias que ele capta com facilidade’. O pensamento não descreve coisas; deforma a realidade para criar coisas e, ao fazê-lo, permite que escape aquilo que é a própria essência do real. Assim, na medida em que imaginamos um mundo de coisas distintas e separadas, estamos interpretando erradamente aquilo que percebemos, e povoamos nosso universo de interpretações equivocadas (interpretamos o que vemos e acreditamos que foi aquilo que percebemos). A Realidade, além de ser vazia da elaboração de conceitos, é também vazia de coisas separadas. Por isso o Absoluto é chamado de o Vazio, o Nada. Mas, não é o nada; é simplesmente a Realidade antes de ser fatiada pelos nossos conceitos. E estamos olhando para esse Vazio, agora, e enchendo-o de coisas pelo nosso raciocínio que interpreta, associa, compara, conceitua e apresenta percepções falsas. (Krishnamurti: ‘Veja tudo como vazio, sem distinções de objetos’).

Budismo Mahayana: ‘No Vazio, cada coisa simultaneamente inclui todas as outras coisas em perfeita completação, sem qualquer deficiência ou omissão, em todos os momentos. Ver um objeto é ver todos os objetos. Isso quer dizer que uma minúscula partícula, dentro do diminuto mundo de um átomo, contém os objetos e princípios dos universos do passado e do futuro completos e sem omissão’ (Buda, ao deixar a arvore onde obtivera a iluminação, é retratado com um colar de gemas, no qual cada gema reflete a cor e o brilho de todas as outras).

Ou, como disse Blake (‘Consciência Cósmica’, de Bucke): ‘Ver o mundo num grão de areia, e o Céu numa flor silvestre, prender o Infinito na palma da mão, e a Eternidade numa hora’.

O Vazio, no Mahayana, não é uma filosofia, mas uma experiência baseada no ver não-dual; a Realidade é revelada como ‘só-Mente’. No Bramanismo, ‘um sem segundo’. No Cristianismo, ‘não há ninguém que se compare comigo’. Na só-Mente tudo é apenas Mente; é a interpenetração e interdependência de todas as coisas num todo único. E a ciência ocidental, com a mecânica quântica, está caminhando rapidamente para uma visão do universo idêntica a essa.

Bertalanffy, físico: ‘Afirmamos, como característica da ciência moderna, que o modelo de unidades isoladas revelou-se insuficiente. Daí o aparecimento, em todos os campos da ciência, de noções como totalidade, organísmico, holismo, gestalt etc., o que significa, em última análise, que precisamos pensar em termos de sistemas de elementos em mútua interação’ (que agem entre si, todos interdependentes).

E Scott afirma que o único enfoque significativo da ciência moderna é o estudo da ‘organização como sistema de variáveis interdependentes’. A ‘interação mútua’ e a ‘dependência mútua’ nada mais são do que a doutrina do Budismo Mahayana da interpenetração mútua. Recorde-se o exemplo de ler-se uma palavra (figura) nesta página (pano de fundo). A figura é diferente do fundo mas, sem o fundo, nunca veríamos a figura. Figura e fundo são diferentes mas não-separáveis, expressando unidade na diversidade; há, entre elas, ‘dependência mútua’.

Whitehead, filósofo da ciência moderna: ‘A unidade de todas as coisas envolve alguma doutrina de interdependência mútua... significa que cada fenômeno concorre para a existência de todos os outros fenômenos... nós estamos no mundo e o mundo está em nós’. (Jesus: ‘Eu estou no Pai e o Pai está em mim.’).

Joseph Needham: ‘A visão do Budismo Mahayana depende de uma linha de pensamento completamente diferente (da visão ocidental de um universo governado externamente por um Criador). A cooperação harmoniosa de todos os seres não surgiu das ordens de um ser superior (Deus) externo a eles mesmos, mas do fato de serem todos eles partes de uma hierarquia de totalidades interdependentes que formam um modelo cósmico e obedecem a imposições internas de sua própria natureza. A ciência moderna e a filosofia do organismo, com seus níveis que se interligam e se completam uns aos outros, voltaram a essa sabedoria, fortalecida pela compreensão da evolução cósmica, biológica e social’.

O Budismo Yogacara destaca o papel do dualismo sujeito/objeto para criar a ilusão, assim tornando o universo falso para si mesmo. Todas as tradições sustentam que esse dualismo é a principal fonte de ‘criar dois mundos de um’. A introvisão central do Yogacara é: ‘toda objetivação é ilusão, ou simplesmente, todos os objetos são ilusórios; e todos os objetos são mentais’. O Yogacara afirma que a separação entre mim como sujeito ‘aqui’ (em minha cabeça), e esta página como objeto ‘lá’, é uma tremenda ilusão. Podemos compreender melhor isso com a introvisão de Whitehead de que ‘minha experiência deste momento presente é o que eu sou agora’, isto é, minha ‘experiência do momento’ e o meu ‘eu’ (o conteúdo de minha mente) são duas expressões que indicam a mesma coisa. Para os ocidentais, isso parece estranho porque o conhecimento dual não nos leva a perceber que somos a experiência que estamos tendo neste momento, e sim que estamos tendo uma experiência neste momento. Porém, se não houver nenhuma experiência não há o ‘eu’ (esse o propósito da meditação). Não havendo em meu cérebro memórias, pensamentos, imaginações, percepções, sensações, emoções, não há o sentimento de ‘eu’. ‘Eu’ só existo porque a experiência (os objetos da visão, audição, memória etc.) existe; logo, eu sou minha experiência (conforme Krishnamurti, não tenho medo; sou o medo; não tenho dor; sou a dor; não tenho ódio, sou o ódio). Não há, de início, nenhuma sensação chamada ‘eu’. As sensações visuais, auditivas etc, ou criadas pela imaginação, memória, emoções, é que criam a ilusão de que existe um ‘eu’ dentro de mim, percebendo tais sensações.

Enquanto leio esta página há somente uma sensação, isto é, a sensação de todo o campo visual tal como existe em meu cérebro. Porém, quando, desse campo visual separo a ‘página’, formando um conceito mental dela, esse conceito parece separado de mim como um objeto lá fora, porque todas as imagens mentais parecem estar desfilando diante de mim como objetos. Embora, num sentido, pareça que essas idéias ou imagens são minhas, eu me sinto separado delas, estou-as observando como objetos lá fora. Mas, não existe uma sensação chamada ‘eu’ que perceba outra sensação chamada ‘página’! Existe só uma sensação que, focalizada subjetivamente, denominamos ‘eu’ e, focalizada objetivamente, denominamos ‘página’. Portanto, ao nos sentirmos separados, estamos sendo vítimas de tremenda ilusão.

A afirmação de que a sensação ‘eu’ é a mesma sensação chamada ‘página’ nos parece estranha, como se produzida por uma mente desequilibrada. Mas, William James afirma: ‘Se nossa visão particular desta página for considerada separada de qualquer outro fenômeno (de qualquer outra visão, de qualquer outra sensação), como se por si mesma constituísse todo universo (isto é, como se nada mais existisse, além dela), então a página vista e o vê-la serão apenas dois nomes dados a um fato indivisível, a uma mesma experiência ou fenômeno. A página e a área circundante estão na mente e a mente está na página e em torno dela, porque mente (sujeito) e página (objeto) são apenas dois nomes dados à mesma experiência’. Se não houvesse qualquer um deles, não haveria experiência. (Krishnamurti, assim como Benoit, diz que num primeiro momento são a mesma experiência, uma mesma e única sensação, que, num segundo momento, deixam de sê-lo porque o ‘eu’ interfere objetivando e conceituando, comparando e associando).

Conforme o Yogacara, quando se compreende profundamente que sujeito e objeto são uma coisa só e não duas, desperta-se em nós o ver não-dual e, dessa forma, e só dessa forma, nos é revelada a realidade da só-Mente. Como a Realidade foi perdida pela divisão do universo em sujeito e objeto, somente será reencontrada pela reunião de sujeito e objeto em um.

Usualmente, quando o mestre de uma tradição instrui o estudante, começa com a abordagem analógica (analogia, semelhança) ensinando que existe uma realidade onipresente, onipotente e onisciente, cujo percebimento trará uma paz insuperável. Isso ajuda o estudante a iniciar sua busca. Porém, ele não chegará a parte alguma, porque está se agarrando apenas a conceitos acerca da Realidade. Nesse ponto, talvez o mestre enfatize outra abordagem, a negativa, explicando que, embora os conceitos acerca da Realidade sejam úteis, a Realidade não é um conceito nem uma idéia, e assim o estudante prosseguirá negando todas as idéias a respeito da Realidade, pois essas idéias, em última análise, não passam de estorvos.

Coomaraswamy: ‘Resta sempre um último passo, no qual se abandona o ritual e são negados os conceitos relativos da teologia... o que implica na dissolução de todos os valores anteriores’.

Ramana: ‘Tempo virá em que teremos de esquecer tudo o que já tivermos aprendido’. Isso, talvez, seja semelhante ao que Jesus disse: ‘Em verdade vos digo, a menos que um grão de trigo caia ao chão e morra, ele permanecerá só; mas, se morrer, produzirá muitos frutos’, e a Nuvem do desconhecimento diz ‘esquecendo, esquecendo’.

Lao Tzu: ‘O aprender consiste em acrescentar (conhecimento, como diz Krishnamurti) dia após dia; a prática do Tao consiste em subtrair (conhecimento) dia após dia’. E, aqui, a essência do Zen Budismo numa única palavra: ‘Esvazia-te!’.

Para esvaziar-se, ao estudante é dada uma série de instruções que, se ele as realizar corretamente, o farão experimentar a Realidade como ela é, e não como se diz que ela é. Todas as tradições desenvolveram experimentos com os quais é possível essa experiência. São exercícios mentais nos quais todas as idéias, afirmativas ou negativas, elevadas ou baixas, maldosas ou boas são deixadas de lado por algum tempo (é o que a meditação faz) a fim de se experimentar diretamente a Realidade. Em resumo, nossa idéia comum do mundo como um complexo de coisas estendidas no espaço e sucedendo-se umas às outras no tempo, não é mais do que um mapa simbólico, apenas uma representação da Realidade - não é a Realidade. Nossas idéias e imagens convencionais, simbólicas, dualísticas, deturpam a Realidade que elas procuram explicar.

Perdido nesse mapa dualístico, o homem não sabe o que é o mundo em sua realidade. Mas, se foi pela divisão em sujeito e objeto, em observador e coisa observada, que o universo se fez diferente e falso para si mesmo, será pela compreensão de que, como disse Schroedinger, ‘sujeito e objeto são apenas um’ que nascerá a compreensão do mundo real; e só essa compreensão pode ser chamada de verdade absoluta. A realidade não pode ser definida, porque todos os símbolos só têm sentido em função dos seus opostos (pela comparação), ao passo que o mundo real não tem qualquer oposto. Por isso é chamado o Vazio, o Nada, o que quer dizer que quaisquer pensamentos ou afirmações a seu respeito são vazios e sem valor; vazio de coisas separadas, visto que coisas são produto do nosso pensamento e não da realidade.

Mesmo que nada se possa dizer a respeito da Realidade, ela pode ser experimentada. Mas, como nossas idéias e suposições a seu respeito obscurecem essa experiência, porque se baseiam na divisão entre o sujeito que conhece e os objetos ou conceitos que são conhecidos, todas as tradições declaram energicamente que só se pode experimentar a Realidade pela visão não-dual, visão que afasta todos os pensamentos e associações (o que se consegue pela meditação), e assim destrói a ilusão que nos oculta o universo. Isso significa que a “Realidade e a percepção (pura, sem associações) que dela temos são uma só coisa” (o que R.Blyth chamou de ‘a experiência do universo pelo universo’). Essa percepção só é obtida pelo modo não-dual de conhecer, que nos leva a perceber que o universo experimenta a si mesmo (Nós somos os olhos do universo olhando o universo). E, como já vimos acima, esse modo de conhecer corresponde a um estado ou nível de consciência, que denominamos ‘só-Mente’, e já que conhecer a Realidade é ser a Realidade, podemos resumir a essência dessas tradições numa frase: ‘a Realidade é a só-Mente’, ou ‘a Realidade é o mais completo nível de consciência’, isto é, a Realidade é a Consciência pura (é aquilo que chamamos de Deus).

E esse nível não está longe de nós, nem é difícil de descobrir. Está bem próximo e sempre presente, pois a Mente, nem mais nem menos, é aquilo que, neste momento, está lendo estas linhas. O ‘eu’ é uma ilusão causada pelas sensações produzidas pela visão, audição, tato etc. com as quais nossos sentidos objetivos percebem o mundo. Inexistindo sensações, não há o ‘eu’ e ‘o universo percebe o universo’ (Krishnamurti: ‘quando o eu cessa, Deus é’; e o Velho Testamento: ‘Aquieta-te e sabe: Eu sou Deus’. Tudo isto significa: meditação).



4. ETERNIDADE E INFINITO

A Realidade é um nível de consciência. Por ser livre de conceitos, pode ser descrita, parcialmente, em qualquer um dos modos, analógico ou negativo, mas não pode ser descrita inteiramente por nenhum deles. Assim, os conceitos de Tao, de Divindade, de Vazio são tentativas de descrever a Realidade como ela é, a Realidade sem-nome, sem conceitos (as crenças lhe dão o nome de Deus), como é experimentada em sua pureza depois que as portas da percepção estiverem limpas de todas as ‘invenções’ intelectuais acrescentadas pelo homem, devido aos dualismos.

Nós sempre achamos que os objetos, esta página, por exemplo, não têm consciência; que a consciência é própria do eu-sujeito que tem consciência desta página-objeto Esta compreensão é totalmente dualística. Como a consciência é a Realidade não-dual, é mais exato encará-la, não como sujeito em relação ao objeto, mas como a Subjetividade Absoluta, acima do dualismo sujeito-objeto. Assim, a consciência não é própria nem do sujeito nem do objeto, mas abrange os dois. Deste modo, a Realidade é a Subjetividade Absoluta, o Sujeito Absoluto, o Eu, ou aquilo a que denominamos Deus.

Berdyaev, teólogo cristão: ‘O espírito nunca é um objeto, nem a realidade espiritual é uma realidade objetiva. Daí a facilidade com que se nega a realidade do espírito. Deus é espírito porque não é objeto, porque é sujeito. Na objetivação não há realidades, apenas símbolos. O Sujeito Absoluto é real, ao passo que tudo mais, o mundo e toda diversidade são simbólicos. Não existe no objeto realidade alguma; apenas o símbolo da realidade. Só o sujeito é Real’.

A Subjetividade Absoluta está além do eu-sujeito. Chamamos o ‘eu’ de sujeito porque supomos que quem vê, ouve e sente é o sujeito que está naquilo que parece ser na direção para dentro de nós. Mas, assim que alcançamos esse centro, percebemos que ele não contém qualquer dualismo, nem de sujeito e objeto, nem de interior e exterior, nenhum, e que ele é o centro do próprio Deus (é ali que Deus é percebido).

Berdyaev: ‘Nos (nossos) mais profundos abismos, vem-nos a revelação de que a nossa experiência está contida nas profundezas da própria vida Divina. Mas aí reina silêncio, pois nenhuma linguagem ou conceito humano pode expressar essa experiência. Esse é o reino da espiritualidade livre e pura. Deste lado existem o dualismo, o conflito, a tragédia, o diálogo entre o homem e Deus, o mundo da diversidade, mas somente se pode alcançar o Divino do outro lado, penetrando nas profundezas da nossa personalidade’ (na direção do eu).

Por isso atribuímos a Deus o sentido de profundeza, que é exatamente a Subjetividade Absoluta dentro de cada um de nós, não identificada nem como sujeito nem como objeto, mas que inclui a ambos.

Ramana: ‘O Eu, a pura Consciência, tem conhecimento de tudo, é o Vedor Final. Tudo o mais: ego, mente, corpo etc. são simplesmente seus objetos; cada um deles é um objeto exteriorizado e não pode ser o verdadeiro Vedor. O Eu não pode ser objetivado, nem ser conhecido por qualquer outra coisa, e já que o Eu é o Vedor que vê tudo o mais, a relação sujeito-objeto, a aparente subjetividade do eu, só existe no plano da relatividade, no espaço-tempo, e se desvanece no Absoluto. Não há outro senão o Eu’ (nada mais além de Deus).

Este ponto é muito importante, pois mostra a razão de nossa eterna geração de dualismos. Todo indivíduo sente habitualmente que seu ‘eu’ é o sujeito de suas experiências, sentimentos, pensamentos; que é seu eu quem percebe e reage ao mundo externo; que seu eu está agora lendo estas linhas. E diz: ‘Estou consciente do meu eu lendo’. Mas o fato de que alguma coisa em mim pode perceber meu eu subjetivo lendo, isto é, de que existe em mim, neste exato momento, uma consciência de que meu eu está lendo estas linhas, mostra-me, com clareza, que meu eu é apenas outro objeto da percepção! (pois está sendo percebido). Não é, absolutamente, um sujeito real, porque é percebido como objeto. Mas, o que é que existe em mim que percebe meu eu lendo estas linhas? Não podemos dizer que é apenas outro eu, pois, nesse caso, quem é que percebe esse outro eu, pois que ele também está sendo percebido?

Quem é em mim que olha, vê, ouve, pensa? Não pode ser o meu eu que está olhando, pois este pode ser percebido e Huang Pó, o maior dos mestres Zen, afirmou: ‘O percebido não pode perceber’. Isto é, se pode ser percebido, o meu eu não pode ser quem está percebendo. Então, o que é que em mim está percebendo?

Bassui, Zen: ‘Meu corpo é como um fantasma, como bolhas na água. Minha mente, olhando para dentro de si mesma, é tão sem forma quanto o vasto espaço vazio; no entanto, em algum lugar, lá dentro, são ouvidos sons. Quem está ouvindo? Para perceber esse sujeito precisamos sondar profundamente nosso interior, indagando: ‘Quem é que pensa em termos de bom e de mau, que vê, que ouve?’. Se nos interrogarmos séria e profundamente dessa maneira, sem dúvida nos iluminaremos e, instantaneamente, seremos um Buddha. A Mente que os Buddhas percebem em sua iluminação é a mente de todos os seres sencientes. Essa mente, como o espaço, é oniabrangente. Não começa a existir com a criação de nosso corpo, nem termina com sua morte. Conquanto invisível, espalha-se pelo corpo, e cada ato ‘nosso’ de ver, ouvir, cheirar, falar, respirar, pensar ou mover as mãos e as pernas é simplesmente atividade dessa Mente’ (Como disse Paulo, ‘É o Senhor que opera em nos o pensar e o fazer’).

Shankara: ‘Vou falar da natureza da Testemunha Absoluta. Se vocês a conhecerem, estarão livres da ignorância e atingirão a iluminação. Há uma Realidade que existe por si mesma; é a base e a testemunha dos estados de consciência do ego e do corpo. É a testemunha na vigília, no sonho e no sono sem sonhos. Percebe a presença e a ausência da mente e de suas funções. Em razão de sua presença, o corpo, os sentidos, a mente, o intelecto executam suas respectivas funções, obedecendo-lhe o comando. Sua natureza é Mente Eterna. Esse é o verdadeiro Eu, o Ser Supremo. Aquele que o percebe nunca deixa de sentir alegria infinita’. (Pascal: ‘Alegria, alegria, lágrimas de alegria!’)

A Subjetividade Absoluta está unida a seus objetos de percepção. Mas nós, erradamente, confundimos nosso eu com o Sujeito real por nos acreditarmos separados dos objetos externos devido ao modo dualístico de conhecer. Esse é o resultado psicológico de todos os dualismos e essa é a raiz de todas as ilusões, males e sofrimentos do mundo.

A Subjetividade Absoluta não pode ser pensada porque ela é quem está pensando; não pode ser olhada porque ela é quem está olhando; não pode ser conhecida porque ela é quem está conhecendo.

Shankara: ‘É possível um conhecimento distinto e definido em relação a tudo o que pode tornar-se objeto de conhecimento; mas não é possível no caso daquele que não pode ser objeto de conhecimento. Tal é Brahman, porque ele é o Conhecedor, e o Conhecedor pode conhecer todas as coisas, mas não pode fazer-se objeto de seu próprio conhecimento, do mesmo modo que o fogo pode queimar todas as coisas mas não pode queimar-se a si mesmo. Também não se pode dizer que Brahman é capaz de tornar-se objeto de conhecimento de qualquer coisa que não seja Ele mesmo pois, fora de Si mesmo, nada existe’ (o eu-sujeito, individual, é ilusão; o nosso verdadeiro eu é a Divindade).

Se quisermos conhecer a Realidade como objeto ela, aparentemente, mas não realmente, divide-se em duas, num conhecedor e num conhecido. Quando fazemos conceitos acerca do universo, estamos, aparentemente, tornando-o objeto; quando já não confundimos os conceitos com o próprio universo, este já não aparece como objeto, e é despertada a percepção da Realidade (o satori).

Berdayev: ‘No objeto nunca há realidade, apenas o símbolo da realidade’.

Huang Po: ‘Nossa natureza original de Buddha é destituída de qualquer traço de objetividade’, e isso ficará evidente ‘se nos livrarmos da conceituação’. E, diz o Despertar da Fé: ‘a ignorância e a ilusão ocorrem quando, de repente, surge a conceituação’. E é verdade que, depois de termos compreendido que sujeito e objeto não são dois, mas um só, poderemos voltar à conceituação, pois já não seremos enganados pelos dualismos.

(Aquilo em nós que vê, ouve, tem e exercita a vontade e o fazer e o querer, é Deus em nós. E a Bíblia afirma: ‘O Senhor é quem opera em nós o pensar, o querer e o fazer’, ou melhor, aquilo em nós que está realizando o ato de ler esta página é a própria Divindade; somos os olhos com que Deus vê o universo).

Ao pensar no infinito geralmente imaginamos que está além do finito, o que prontamente tira do infinito sua natureza absoluta e infinita, pois, sendo oniabrangente, o infinito não tem oposto e não está separado de nada, pois é sem limites. Para pensarmos no infinito, temos de usar metáforas, e os conceitos de sem-tamanho, sem-dimensão ou sem-espaço são os mais próximos a que nossa imaginação pode chegar. Assim, o Infinito ‘sem espaço’, em sua totalidade, está presente em cada ponto particular do espaço e, portanto, para o Infinito, cada ponto do espaço é AQUI (pois o infinito está exatamente ali naquele ponto do espaço; para ele nada é lá nem ali; TUDO é AQUI. Se eu fosse infinito, como chamo de ‘aqui’ o lugar onde estou, se estou em todos os lugares no mesmo instante, todos os lugares são ‘aqui’ para mim. O infinito é todos os lugares).

Nagarjuna: ‘O absoluto (infinito, atemporal) não é uma totalidade colocada frente a outra (o finito, o temporal). O absoluto, encoberto pelas formas de pensamento (verbo, logos), é fenômeno. O fenômeno, livre das formas de pensamento superpostas, é o absoluto. Portanto, não há nenhuma diferença entre o mundo e a Realidade” (a diferença está na colocação de formas de pensamento, na nossa interpretação, portanto. Pela meditação é possível fazer cessar o pensamento e a Realidade se mostra em toda sua pureza).

Hsin Ming: ‘Quando não antagonizas os sentidos (isto é, não interferes no que os sentidos percebem), isso é igual à iluminação completa’. Portanto, as tradições orientais não evitam o conhecimento dado pelos sentidos; evitam, sim, o conhecimento dado pelos sentidos quando contaminado pela conceituação (a interferência no que os sentidos percebem é a interpretação feita pelo ‘eu’, com suas lembranças, emoções, expectativas, associações, crenças, suposições etc.).

Não confundir o que estamos dizendo com o panteísmo, sistema filosófico segundo o qual todas as coisas são Deus. Primeiro, coisas não existem. Segundo, isto não é uma filosofia, mas um nível de consciência. Terceiro, o infinito e o finito não podem ser opostos porque isso levaria o infinito para o mesmo nível do finito, pois o que pode ser separado de seres finitos é finito também.

Rollo May: ‘Deus não é um ser ao lado de outros seres. Dizer que ele é um ser acima ou abaixo dos outros faz dele um ser separado dos outros seres, um ser maior que colocamos no universo. Se ele é uma coisa, outras coisas no universo hão de estar fora de seu controle, e ele estará sujeito à estrutura (do cosmo) como um todo. Abre-se, assim, um vespeiro de problemas absurdos.’

Ao falar do infinito sem-espaço, é bom lembrar que o espaço que lhe falta é, essencialmente, o espaço entre sujeito e objeto, entre nós e esta página, entre nós e os objetos da nossa percepção (não esquecer que espaço é ilusão). É esse espaço que parece nos colocar como sujeito ‘aqui dentro de mim’ separado do resto do universo como objeto ‘lá fora’; mas esse espaço é pura ilusão. Parece real porque estamos convencidos de que nosso eu subjetivo é real e que está separado dos objetos que percebe à sua volta. Mas não existe espaço para o infinito pois, para ele, todo lugar é aqui; assim, não existe espaço entre o observador e a coisa observada; o infinito está, também, entre um e outro; logo o infinito é um, é o outro e é o espaço entre eles. O Vedor está aqui, está ali, está entre aqui e ali. Como pode haver espaço entre aqui e ali, entre observador e coisa observada, se todo lugar é aqui?

Nosso eu subjetivo não é, absolutamente, um eu real, um sujeito real, nem um observador real. O ‘eu’ é simplesmente um complexo de objetos percebíveis (e guardados na memória) com os quais, por alguma estranha razão, nós nos identificamos (a física quântica explica). E, se formos para dentro de nós mesmos a fim de encontrar quem realmente está percebendo, o que encontraremos?

David Hume: ‘Quando entro intimamente naquilo que chamo eu mesmo, sempre encontro uma ou outra percepção particular de calor ou frio, luz ou sombra, amor ou ódio, dor ou prazer. Nunca me deparo sem uma percepção, e nunca posso observar coisa alguma além da percepção’ (só encontra ali objetos, objetividade, percepções; a coisa procurada, o ‘eu’, não é encontrada porque não está ali, não existe; e aquilo que existe está além da capacidade de percepção do cérebro, é o próprio Percebedor, é o Eu Real (Deus) que é inobservável, que observa tudo e está em tudo, o infinito).

‘Toda vez que procuro o meu verdadeiro eu, tudo o que percebo são objetos de minha percepção’. Isto é a mais segura demonstração de que o espaço entre sujeito e objeto está ausente na Subjetividade Absoluta pois, para esta, todo lugar é Aqui e não pode haver espaço entre Aqui e Aqui, isto é, ali só há objetos de percepção; mas a Subjetividade Absoluta, que está percebendo, é quem está ali onde eu supunha estar meu eu, mas ‘o percebedor não pode ser percebido’.

Ramana: ‘A idéia de que o observador é diferente do observado está na mente. Para aqueles que estão na Subjetividade Absoluta, o observador é o observado’. Em suma, a Subjetividade Absoluta se acha em comunhão (pois é o próprio) com seu universo de conhecimento, de modo que nós somos aquilo que observamos (Krishnamurti: ‘o observador é a coisa observada’).

Assim, a divisão, ou o espaço, entre o sujeito, aqui dentro, e o objeto lá fora é apenas ilusão. O verdadeiro Eu não conhece (não vê) o universo à distância; conhece o universo por ser ele o próprio universo, sem qualquer vestígio de espaço entre o Eu-Vedor e o Eu-Visto. E o que é sem espaço é infinito.

O tempo é para a Eternidade o que o espaço é para o Infinito, isto é, assim como o Infinito está, em sua totalidade, presente em cada ponto do espaço, a Eternidade está, em sua totalidade, presente em cada momento do tempo. Então, do ponto de vista do Infinito, todo lugar é AQUI e, do ponto de vista da Eternidade, todo o tempo é AGORA. E, como todo o tempo é agora, disso se conclui que passado e futuro são ilusões e que a única realidade é o Momento presente.

Hume: ‘O momento-agora em que Deus criou o primeiro homem e o momento-agora em que o último homem haverá de desaparecer, e o momento-agora em que leio isto, são todos um em Deus, no qual só existe Agora. A pessoa que vive na luz de Deus não tem consciência do tempo passado, nem do tempo futuro, mas só da eternidade’.

Não importa se a um milhão de anos atrás ou a um segundo atrás; para a Eternidade qualquer instante é AGORA; portanto não há ontem nem amanhã, nem antes nem depois, nem passado nem futuro e, em conseqüência, nem causa nem efeito; há somente o Momento presente (o resto é ilusão).

Meister Eckhart: ‘Um dia, seja ele seis dias atrás ou seis mil anos atrás, está tão próximo do presente quanto ontem. Todo o tempo está contido no Momento atual’. Como denomino o momento presente, o tempo em que estou, de ‘agora’, se estou em todos os momentos, todos são ‘agora’, e a Eternidade é todos os momentos. Por isso Jesus disse: ‘Antes que Abraão fosse, eu sou’.

Plotino: ‘Existe apenas um dia. A série não tem lugar; nem ontem, nem amanhã’.

Ramana: ‘Fora de nós, onde está o tempo e onde está o espaço? Se somos corpos, estamos envolvidos no tempo e no espaço, mas será que o somos? Somos uma só e idêntica Mente neste Agora, para sempre, aqui, ali e em toda parte. Por conseguinte, nós, seres sem tempo e sem espaço, estamos sós. O que digo é que o Eu está aqui e agora, e só’.

No Budismo, a meta de todas as práticas é o ‘despertar’. Buddha significa ‘o Desperto para o Presente Eterno’. Assim, Huang Po diz: ‘O tempo sem princípio e o momento presente são o mesmo’. E o budismo declara que a Realidade é ‘a morada dos que são capazes de perceber os bilhões de anos que estão no momento, percebendo nesse momento todo o passado, o presente e o futuro’. E, em O Despertar da Fé: ‘A percepção de que a Mente é Eterna se chama Iluminação’. O trabalho dos mestres Zen é despertar os alunos para essa compreensão.

Zen: ‘A realidade final reside bem no centro da existência diária’. Para agarrar esse momento, o Zen se vale da ação direta e imediata, pois só essa ação espontânea não conhece passado nem futuro. No Sufismo, um verdadeiro sufi se chama ‘filho do Momento; ele não é do tempo; o passado, o futuro, o tempo sem começo e sem fim não existem’. Isso muito se parece com a recomendação de Jesus: ‘Não te preocupes com o dia de amanhã; a cada dia basta seu cuidado.’ E Krishnamurti afirma que a compreensão é agora, nunca depois.

Mesmo os modernos físicos quânticos abandonaram para sempre a noção clássica de tempo e a substituíram pelo Aqui-Agora absolutos.

Schroedinger: ‘Aventuro-me a chamar a Mente de indestrutível, pois ela tem uma escala peculiar, isto é, a Mente é sempre Agora. O presente é a única coisa que não tem fim. Afirmo que a moderna física sugere, de maneira vigorosa, a indestrutibilidade da Mente pelo tempo’.

A Mente não pode ser destruída pelo tempo porque, conforme Parmênides: ‘Nunca foi, nem será, pois Agora é, tudo ao mesmo tempo’, e esse Agora, no dizer de Dante, é ‘o Momento em que todos os tempos estão presentes’ (os iluminados compreenderão).

A teoria da relatividade de Einstein e a física quântica trouxeram uma nova revelação: espaço, tempo e objetos, em certo sentido, são um continuum. O espaço não é um nada vazio e sem características, mas é aquilo que encerra os objetos. Logo, o espaço não existe sem objetos, visto que, por definição, é o que os contém. Por outro lado, os objetos precisam estar encerrados no espaço, ter um limite, senão o que os conteria? Nesse sentido, portanto, espaço e objetos são um. E mais: os objetos para existirem precisam ter duração no tempo; logo o tempo é necessário à sua existência. Daí que espaço, tempo e objetos são mutuamente dependentes e inseparáveis, um continuum. Se um deles não é real, os demais também não são. Sem espaço não há objetos, sem tempo não há objetos e, como tempo e espaço são ilusórios, os objetos também são ilusórios.

Aristóteles: ‘Se o antes e o depois estão no mesmo Agora, então aquilo que ocorreu há dez mil anos é simultâneo com o que ocorre agora, e nada seria antes ou depois de qualquer outra coisa (talvez, isso explique o que a física quântica tem afirmado: ‘há efeitos que antecedem suas causas’). Assim, tudo estaria em qualquer coisa, e o universo num grão de painço’. Comentando esse trecho, Coomaraswamy diz: ‘Se o grão de painço e o universo não são considerados em sua extensão (no espaço-tempo), mas no que se refere à sua essência comum e imutável no Agora absoluto, pode-se dizer que o universo está contido num grão de painço, assim como um grão de painço contém o universo’.

A afirmativa de que o mundo real ‘tem a totalidade da sua existência simultaneamente’ faz-nos ver que nossa razão é incompetente para compreender a Realidade. O pensamento é unidimensional, seqüencial e sucessivo, enquanto o mundo real é multidimensional, simultâneo, e não-sucessivo, de riqueza e variedade infinitas. Fazer com que a razão compreenda isso é quase impossível (só é possível pela meditação).

Não esquecer que as coisas que compõem o universo não são reais, mas produtos do pensamento. Isto é, uma coisa é apenas um fragmento limitado produzido pela atenção seletiva (com seleção, escolha). Para William James, uma coisa é o produto de reparar nisto e ignorar aquilo. Tais fragmentos de atenção seletiva são então representados por conceitos, palavras substantivas ou outros símbolos e, após, elevados à condição de coisas reais como se fossem independentes e existentes por si mesmas.

E, pelo fato de reduzirmos habitualmente nossa atenção para fragmentos limitados do extenso campo visual da nossa percepção, é que o pensamento nos apresenta a ilusão convincente de que o mundo é um múltiplo de coisas lá fora separadas e independentes. Como nos é impossível pensar em mais de uma coisa ao mesmo tempo, o pensamento arruma, com ajuda da memória, esses pedaços de atenção seletiva ao longo de uma linha que ele cria com esse propósito, sobre a qual ele estende seus conceitos-objetos, linha que nada mais é que o tempo. Assim, tempo é a maneira sucessiva usada pelo pensamento para encarar o mundo. E, como nos acostumamos a crer nesse modo sucessivo, temporal e linear, acreditamos que a própria natureza segue numa linha, do passado para o futuro, da causa para o efeito, do antes para o depois, ignorando totalmente que a suposta linearidade da natureza é, toda ela, produto da maneira como a interpretamos; ilusão, portanto.

A natureza, contudo, não segue numa linha, pois tudo acontece simultaneamente. Os fenômenos não precedem nem se sucedem uns aos outros no tempo - estão todos acontecendo em toda parte ao mesmo tempo. Dizer que a natureza não segue uma linha é o mesmo que dizer que a natureza não segue no tempo, que ela tem toda sua existência simultaneamente neste momento, e essa é a natureza da Realidade. Na verdade, toda a noção de uma coisa que sucede outra coisa no tempo, depende diretamente dos nossos processos de memória, pois, sem memória, não teríamos nenhuma idéia do tempo, nem passado, nem futuro. Imaginamos que a memória nos informa acerca de um passado real. Pensamos que podemos conhecer não só os fragmentos de atenção seletiva atuais, mas também os fragmentos passados, guardados na memória. Daí concluímos que deve ter havido um passado e, assim, geramos um sentido muito forte de tempo e imaginamos estar-nos movendo, do passado para o futuro. Entretanto, entrou nesse raciocínio uma ilusão sutil, anunciada por S. Agostinho e confirmada, hoje, pelos físicos quânticos: nunca podemos perceber o passado real. Apenas temos uma imagem-memória do passado, e essa imagem-memória existe apenas no presente e como presente!

Allan Watts: ‘Por me lembrar, posso conhecer o que é o passado? Lembro-me de ter visto um amigo na rua. Não estou observando o verdadeiro fato. Não posso apertar-lhe a mão, nem obter resposta a uma pergunta que me esqueci de lhe fazer nesse passado de que estou me lembrando. Em outras palavras, não estou olhando, de forma alguma, para o passado real. Estou olhando para uma lembrança presente e dela concluo que houve acontecimentos passados. Mas não percebo nenhum acontecimento passado. Só conheço o passado no presente e como parte do presente’ (como memória).

Assim, ao me lembrar de qualquer acontecimento passado, não estou, de fato, me lembrando de alguma coisa real. Estou me lembrando apenas de imagens do passado, e essas imagens só existem como experiência no presente. Também, qualquer pensamento sobre o futuro é um pensamento no presente. Por conseguinte, o único tempo de que, realmente, temos consciência é o Agora. Por isso Schroedinger afirmou: ‘Mente é sempre agora. Não existe para a Mente nenhum antes e nenhum depois. Existe apenas o agora, que inclui lembranças (do passado) e expectativas (acerca do futuro)’.

S. Agostinho: ‘O passado e o futuro só podem ser pensados como presente: o passado identifica-se com a memória e o futuro com a expectativa, sendo tanto memória quanto expectativa fatos presentes’. O momento presente contém todo o tempo e é, portanto, sem fim, e este presente sem fim é a própria Eternidade.

Coomaraswamy: ‘A natureza da Divindade é a do agora eterno, do qual nós, que só podemos pensar em termos de passado e futuro, não podemos (não conseguimos) ter qualquer experiência’.

Este momento presente, o agora, que não conhece passado nem futuro, é sem fim, eterno. Assim, a vida eterna pertence àqueles que vivem no presente. À pergunta: ‘Como é que Deus pode conhecer o futuro?’ a resposta é: ‘Porque todos os tempos, aos quais chamamos passado e futuro, existem neste presente eterno’.

Meister Eckhart: ‘Falar sobre o mundo como tendo sido criado por Deus ontem ou amanhã seria disparatar. Deus cria o mundo e todas as coisas neste presente agora’.

Suzuki: ‘A criação prossegue continuamente, sem cessar, sem começo nem fim. Não é um acontecimento de ontem, nem de hoje, nem de amanhã; procede do intemporal, do nada, do Vazio Absoluto. A obra de Deus sempre se realiza num presente absoluto’... ‘Em outras palavras, Deus está sempre criando o mundo, agora, neste instante, e é apenas a criaturas do tempo que a criação se apresenta como uma série de eventos, ou evolução’. A criação, agora e sempre, vem do Vazio deste Momento infinito, e não é criação de coisas, de matéria, de substância, mas a criação de dualismos. Assim, se acabarmos com todos os dualismos em nossa mente, o tempo deixa de ser e veremos o mundo como ele é (como assegura, também, Freud).

Ver o mundo como ele é, experimentar a Subjetividade Absoluta, conhecê-la como Infinita e Eterna, não é só uma questão de abolir o dualismo temporal de passado e futuro, nem o espacial de sujeito e objeto. Tentar aboli-los não tem sentido simplesmente porque eles não existem; são apenas ilusões. Assim se, neste instante, atentarmos com todo o cuidado para ver se encontramos o menor vestígio de tempo, não encontraremos. Pois, como disse S. Agostinho, o passado é apenas uma lembrança, e o futuro apenas uma expectativa, sendo ambos fatos presentes. Pensar no passado é um fato presente; antecipar o futuro, também é um fato presente Qualquer evidência do passado só existe no presente, e qualquer razão para acreditar no futuro só existe no presente. Quando aquilo que chamamos passado aconteceu, não era passado e sim presente; e quando o que chamamos futuro acontecer, não será futuro e sim presente. Assim, o único momento do qual temos consciência é o momento presente, que inclui lembranças e expectativas.

Este momento, porque contém e abrange todo o tempo, é intemporal. Isso significa que o tempo é apenas uma vasta ilusão e que este momento é a própria Eternidade. Assim, a Eternidade não é um tempo que dura para sempre; é o Presente real, intemporal. Como disse Schroedinger, ‘O presente é a única coisa que não tem fim’ (é a Eternidade e estamos nela).

E o dualismo de sujeito e objeto é tão ilusório quanto o de passado e futuro. Podemos, uma vez que seja, encontrar um eu-sujeito separado de seu objeto? A sensação denominada eu ‘aqui’ e a sensação denominada objetos ‘lá’ são uma só e a mesma sensação. Não havendo objetos, ou sensações, não há o eu. Como vimos antes, neste momento somos esta página que se lê a si mesma! É o Todo que lê esta página, que se lê, pois o Todo é também esta página e é, também, nós que a estamos lendo, e é o espaço entre nós e a página. (‘O observador é a coisa observada’). O sujeito, na realidade, nunca se desprende do objeto, nem este daquele; os dois são um só.

Lembremo-nos do fato indiscutível de que, quando vamos para dentro de nós mesmos para procurar o eu-sujeito, só encontramos objetos de percepção, o que é a mais segura indicação de que o Conhecedor está em comunhão com o universo que conhece. O sujeito ‘aqui’ e o resto do universo como objeto ‘lá’ fora não passam de ilusão, pois o universo nunca se divide em observador e coisa observada; estes estão sempre unidos no processo de ver ou observar.

Como os dualismos de passado-e-futuro e de sujeito-e-objeto são ilusórios, conclui-se que já estamos vivendo no mundo real, infinito, intemporal e eterno, e que somos esse mundo pois a Consciência e a Realidade são a mesma coisa. Assim sendo, as descrições dualísticas sobre a Realidade são apenas descrições metafóricas de um estado de coisas já existente. Quer o compreendamos, quer não, nosso problema não é promover essa Realidade algum dia, mas tão somente percebê-la como um fato já presente (Krishnamurti e Huxley: o percebimento ou a atenção sem escolha).

Em suma, existe dentro de nós Aquele que conhece, a própria Divindade, a Subjetividade Absoluta. Mas essa Subjetividade não é o sujeito separado que nos sentimos ser, pois este é apenas ilusão, porque onde quer que o busquemos só vamos encontrar objetos de percepção. Desse modo, o verdadeiro Sujeito está em nós, está em tudo, está em comunhão com seu universo de conhecimento: tudo quanto observamos não é outra coisa senão nós mesmos, que o (nos) estamos observando.

Quando penetramos no íntimo de nossa consciência (pela meditação), encontramos, não o falso universo de objetos lá fora, mas o verdadeiro universo não mais dividido em sujeito e objeto. Penetrando em nosso mais profundo interior, caímos fora de nós mesmos e nos transformamos na Realidade.

Monoimus: ‘E se investigares com cuidado, encontrarás Deus em ti mesmo, um em muitos, descobrindo, dessa maneira, em ti, um modo de saíres de ti’.

S. Agostinho: ‘Como uma ovelha desgarrada procurei-te em todos os lugares, Senhor e, afinal, fui encontrar-te dentro de mim mesmo’.

No mundo real, onde o observador é a coisa observada, torna-se evidente que nós e o universo nunca fomos, não somos e nunca seremos separados. ‘Assim’, repetindo Schroedinger, ‘podemos jogar-nos ao solo, estender-nos sobre a Mãe Terra, com a convicção certa de que estamos em comunhão com ela e ela conosco...’. Em outras palavras, o espaço entre nós, como sujeitos observadores aqui, e os objetos observados ali, não existe na Subjetividade Absoluta, no mundo real, e o que não tem espaço é Infinito. Do mesmo modo, o tempo passado e o futuro simplesmente não existem na Subjetividade Absoluta, pois, nesta, só existe o agora, o intemporal, e o que é intemporal é Eterno.

Resumindo, a Subjetividade Absoluta conhece o universo, não numa seqüência chamada tempo, nem numa distância chamada espaço, mas porque é o próprio universo. Por isso, afirmam os budistas que a Mente é o ‘inatingível’, pois não podemos atingir o que já somos. A vasta maioria, contudo, não percebe isso. Assim, precisamos iniciar uma profunda viagem para nosso interior, para recordar o que somos de fato; uma viagem na qual procuremos acabar com todos os dualismos que ocultam a Identidade Suprema que somos, só para descobrir, afinal, que dualismos nunca existiram (a não ser em nossa ilusão).



5. EVOLUÇÃO DOS NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA

A evolução do espectro da consciência a partir do Nível da Mente, a infinita e eterna Subjetividade Absoluta, o primeiro nível de consciência, isto é, a partir da geração dos principais dualismos criadores das ilusões que escondem a Realidade é, também, ilusão. Na verdade, só existe a Mente Una, não-dual, oniabrangente, base intemporal dos fenômenos temporais. Na só-Mente, nós nos identificamos com o Todo, somos o Todo. Porém, com o pensamento dualístico, produzimos divisões ilusórias criando dois mundos de um. Embora essas divisões sejam irreais, o homem se comporta, sempre, como se fossem reais. Agarra-se ao primeiro dualismo, de sujeito e objeto, eu e não-eu, organismo e meio ambiente e transfere-se, da identidade com o Todo, para uma identidade pessoal com o organismo, e desse modo é gerado o segundo nível de consciência, o Nível Existencial, onde o homem existe identificado apenas com seu organismo total (mente e corpo).

E continua a divisão do homem através de dualismos, de tal modo que a maioria não se identifica nem com o organismo total. Não dizemos ‘eu sou um corpo’, mas ‘eu tenho um corpo’; e a esse eu que tem um corpo chamamos ‘meu eu’. A identidade se transfere do organismo para o ego e gera-se o terceiro nível de consciência, o Nível do Ego, no qual há um eu e há um corpo, mente e soma (um eu separado do corpo).

Aí, o homem chega a repudiar certas facetas do ego, recusando-se a admitir, em sua consciência, aspectos de si mesmo que não lhe agradam. E a identidade se reduz ainda mais, transferindo-se para as facetas restantes do ego, e gerando o nível seguinte do espectro, o Nível da Sombra (a Persona é o que resta do ego quando este projeta sua Sombra, isto é, as facetas repudiadas do ego).

Cada nível representa a aparente identificação da Subjetividade Absoluta (nós) com um grupo de objetos como se estes estivessem contra todos os outros, e, em cada novo nível, a identificação se torna mais estreita e exclusiva. Este é um estudo daquilo a que hindus e budistas chamam maya, estudo das distinções sobrepostas à Realidade. Maya é o poder da Divindade de assumir aparência objetiva e, dessa forma, criar todas as coisas. O mundo de maya (ilusão) é tão somente o mundo da mensuração, dos mapas simbólicos, que, convencionalmente, dividem e medem o universo. É o mundo da matéria, pois as coisas materiais são apenas produto da mensuração e divisão mental. E, como toda divisão é omissão de parte da verdade, o mundo material é um mundo de ilusão. É preciso não confundir o mundo real com o mundo representado pelo espaço, pelo tempo, objetos, limites particulares, universais, individuais ou categorias de qualquer tipo, pela simples razão de que toda mensuração é produto do pensamento; não é a realidade. Na Realidade, o mundo não se compõe de coisas separadas, estendidas no espaço e se sucedendo no tempo. Isto só acontece quando vemos através da ilusão de maya.

Ora, não podemos dar uma razão do surgimento de maya, pois a própria razão, por estar dentro de maya, não pode explicá-la. Pela concepção do misticismo, as ações da Divindade são sem propósito ou objetivo, esforço ou vontade, motivo ou desejo, causa ou efeito - pois tudo isso supõe um alvo futuro e a Divindade não conhece passado nem futuro, mas apenas o Eterno Presente. O que devemos fazer é conhecer o mundo de maya para que, compreendendo o engano em que caímos, dele fiquemos livres e despertemos da ilusão.

Spencer Brown: ‘O universo começa a existir quando se corta ou se tira um espaço’. É esse ato original de divisão que cria o universo de fenômenos: cortamos um espaço, criamos dois mundos a partir de um, e caímos diretamente num mundo de aparências (de ilusões). É o dualismo primário, a separação do observador da coisa observada; separação entre finito e infinito; teologicamente, é o que as religiões chamam de pecado original (a passagem bíblica de comer da fruta da árvore do conhecimento), a ilusória divisão entre sujeito e objeto. O verdadeiro território permanece escondido; dele só ficamos com representações simbólicas, dualísticas’. ‘Por nenhuma razão aparente, pois a própria razão não existe aqui, ocorre um dualismo; daí se seguem outras cortadas do vazio’. Cada faixa cortada é uma faixa diferente do Espectro (partindo do Nível da Mente, que é o todo, para o Nível Existencial, o Nível do Ego, o Nível da Sombra etc).

Do Despertar da Fé: ‘A Mente, conquanto pura e imutável, é seguida pela ignorância. Quando o mundo Real ainda não é compreendido, a Mente parece mutável e sem perfeita unidade. De repente, surge um pensamento: a isso se chama ignorância’. Lembrar que, em Gênese 1:4, o Logos ‘fez separação entre a luz e as trevas’, ‘águas e terras, dia e noite’. Também em Provérbios 8:27, vemos que ‘quando ele preparava os céus, aí estava eu, quando ele colocou um compasso sobre a face do abismo’. Separação e compasso mostram a divisão e a mensuração, o desmembramento pelo qual o Todo, em toda criação, ‘se divide indivisivelmente’. Isso é maya, da mesma raiz das palavras medida, metro, matriz, matéria e mãe, e explica a criação do mundo, a partir da Matéria Virgem, pela mensuração e divisão produzidas por Logos, o Divisor Supremo. E Logos, simplesmente, significa pensamento, palavra, coisas que deram origem ao dualismo primário e, portanto, ao mundo não-real, ilusório, que conhecemos. (João, 1.1ss: O Logos criou todas as coisas e sem ele nada foi criado’).

A ignorância não tem nada a ver com o fato de alguém ser analfabeto ou estúpido; é apenas ignorância do modo não-dual de conhecer. Este modo revela instantaneamente que o universo é só-Mente. É a ignorância da realidade da só-Mente que cria o universo convencional e simbólico de coisas separadas e, visto que o principal instrumento da ignorância é o pensamento (Logos), este é, afinal, o responsável pela existência do universo tal como o conhecemos, um universo apenas conceptual (conceitos e pensamentos cessam na meditação).

Sutra Lankavatara: ‘É como a imagem refletida num espelho; é vista mas não é real; a Mente é vista pelos ignorantes como dualidade quando está refletida no espelho construído pela memória deles. A existência do universo inteiro deve-se à memória acumulada desde o passado sem princípio, mas mal interpretada’.

O nascimento do tempo envolve a confusão da memória atual com o conhecimento do passado. Através dessa memória mal interpretada criamos a convincente ilusão de conhecer o tempo passado e, então, projetando à frente esse conhecimento, como expectativas, criamos o futuro, ao passo que toda a memória, toda a expectativa e, portanto, todo o tempo, não existem em tempo algum, a não ser neste momento presente. Assim, o tempo nada mais é que uma tremenda ilusão. E se tempo é ilusão, não existe antes nem depois e, logo, nem causa nem efeito (a nova física está se aproximando dessa concepção).

E, visto que tempo é apenas outro nome para espaço e objetos uma vez que espaço-tempo-objetos são um continuum, o universo inteiro de objetos separados, estendidos no espaço e sucedendo-se no tempo, é produto da memória mal-interpretada, do pensamento (Logos) que reflete a Mente Una e, assim, parece dividir essa Mente; é como um espelho que cria, aparentemente, dois mundos a partir de um. Portanto, maya, é ‘toda experiência produzida pela divisão entre sujeito e objeto e tudo aquilo que dessa experiência se segue’.

Mesmo a própria teologia cristã possui imagens mitológicas destinadas a apresentar, ao nosso intelecto finito, sugestões do infinito indizível: o milagre da Concepção da Virgem, a Ressurreição, a Expulsão do Paraíso. É que, como nada se pode afirmar a respeito da Realidade, a mitologia é uma poderosa analogia. Segundo Campbell, ‘o mito inclui o enfoque mais próximo da verdade absoluta que pode ser expresso em palavras’. Isso porque, na medida em que formamos qualquer concepção mental de Deus, essa concepção tem de ser um mito, pois como disse S. Agostinho: ‘Se qualquer um concebe alguma coisa em sua mente, como sendo Deus, isso não é Deus; é apenas um dos efeitos de Deus’. Não podemos pensar a respeito de Deus porque é ele quem está pensando. Se o tentarmos, pensaremos apenas sobre conceitos e objetos (efeitos de Deus); nunca sobre o próprio Deus.

No mundo bíblico, repete-se a história da criação de dualismos pois, quando adormece, Adão é dividido em macho e fêmea.

Allan Watts: ‘Na mitologia, macho e fêmea significam mais dualidade do que sexualidade, e a Queda (a expulsão do paraíso) é a subordinação da mente humana à aflição dualística de pensar,analisar, sentir e escolher, ao conflito insolúvel entre o bem e o mal, o prazer e a dor, a vida e a morte’. A divisão de Adão em dois resultou na Queda, a qual ocorreu quando a Humanidade, representada pelo primeiro casal, comeu da árvore do conhecimento (do bem e do mal); e não há como confundir esse conhecimento: é dualístico. A Queda do homem se faz no dualismo, e assim o ‘De repente surge um pensamento; a isso se chama ignorância’ é igual à ‘De repente, surge um conhecimento dualístico; a isso se chama Queda’ (o ‘de repente’ significando ‘espontaneamente’).

Os estudiosos atuais da Queda do homem são os psicólogos e os psiquiatras e, embora a sua linguagem seja mais sofisticada, a historia que contam é apenas outra variação da geração de dualismos.

O. Brown: ‘No peito da mãe, segundo ensinou Freud, a criança experimenta a condição primeira, depois idealizada para sempre, em que não se podem diferenciar a libido do objeto da libido do ego;... O dualismo de sujeito e objeto (ainda não existe e, portanto) não corrompe a experiência jubilosa da criança no peito da mãe... A primeira experiência da infância, é idealizada porque está livre de todos os dualismos... A psicanálise sugere a afirmação de que a humanidade não se libertará de suas enfermidades e de suas infelicidades enquanto não for capaz de abolir todo e qualquer dualismo’. (isso se consegue na meditação);

Freud: ‘... o sentimento do ego, de que nos damos conta agora, é apenas um vestígio encolhido de um sentimento muito mais extenso, um sentimento que abraçava o universo e expressava uma conexão inseparável do ego com o mundo externo’ (não-dual, portanto).

Com o ato original de divisão, cria-se um universo de objetos no tempo e no espaço, o Dualismo Primário. Há, aqui, um ‘princípio que dura para sempre’, um evento que ocorre agora e sempre, sem causa ou propósito. Disse Lao Tze ‘A criação é totalmente sem causa, volição, movimento ou esforço; é espontânea... O princípio do Tão é a espontaneidade. Trabalho implica resistência, mas nada há fora da Divindade que ofereça resistência, pois nada há além da Divindade, razão pela qual sua atividade é movimento sem locomoção’. (imobilidade dinâmica) (Krishnamurti: o movimento imóvel, o movimento que não é movimento, o movimento indiviso).

O nascimento do tempo envolve a confusão da memória atual com o conhecimento do passado. Através dessa memória mal interpretada criamos a convincente ilusão de conhecer o tempo passado e, então, projetando à frente esse conhecimento, como expectativas, criamos o futuro, ao passo que toda a memória, toda a expectativa e, portanto, todo o tempo, não existem em tempo algum, a não ser neste momento presente. Assim, o tempo nada mais é que uma tremenda ilusão. E se tempo é ilusão, não existe antes nem depois e, logo, nem causa nem efeito (a nova física está se aproximando dessa concepção).

E, visto que tempo é apenas outro nome para espaço e objetos uma vez que espaço-tempo-objetos são um continuum, o universo inteiro de objetos separados, estendidos no espaço e sucedendo-se no tempo, é produto da memória mal-interpretada, do pensamento (Logos) que reflete a Mente Una e, assim, parece dividir essa Mente; é como um espelho que cria, aparentemente, dois mundos a partir de um. Portanto, maya, é ‘toda experiência produzida pela divisão entre sujeito e objeto e tudo aquilo que dessa experiência se segue’.

O dualismo, por fazer esquecer sua ‘base subjacente não-dual’, reprime a não-dualidade e, a seguir, projeta-a como multiplicidade. Portanto, o processo é: Dualismo-Repressão-Projeção. Cada dualismo é seguido de uma repressão e de uma projeção. A separação entre sujeito e objeto cria o espaço. O sujeito-eu separa-se, ilusoriamente, do objeto e esse intervalo ilusório entre o eu e o objeto é o espaço. Dualidade é divisão em dois. É isso o que faço quando leio uma palavra nesta página; divido a página em duas partes: a palavra e a página em torno dela. Mas essa divisão é pura ilusão mental, pois jamais estou realmente consciente de uma palavra separada de uma página. O que os meus olhos vêem, de fato, é o campo visual inteiro da palavra-mais-página-mais-área circundante. A palavra e a página são diferentes, mas não são separadas; são mutuamente correlativas e interdependentes; não são duas, são não-duais. Os limites da palavra são os limites da página, que não separam uma coisa da outra, mas que, na verdade, as unem.

William James: ‘A partir do que é um continuum indistinguível, destituído de distinção ou ênfase, nossos sentidos fazem para nós, atentando para esse movimento e ignorando aquele, um mundo cheio de contrastes...’

Assim, pelo poder da atenção limitada e seletiva, que é o processo ‘comum’ do pensamento, o primeiro modo de conhecer, focalizamos a palavra e a separamos mentalmente do restante do campo visual, ignorando totalmente a unidade, e depois presumimos que esse estado de coisas sempre existiu. Ao fazê-lo, introduzimos um dualismo que reprime a não-dualidade do campo e a projeta como palavra versus página. No entanto, esse isolamento da palavra é pura ilusão mental; basta perceber que é impossível ver a palavra sozinha, sem o segundo plano do campo visual. Também é impossível visualizar apenas um segundo plano sem nenhuma figura com que ele possa contrastar. É indiscutível que um não vive sem o outro; unidos na natureza, só estão separados em nossa interpretação.

Portanto, o dualismo primário é o Dualismo Primário-Repressão-Projeção. A percepção não-dual é reprimida e, em conseqüência, projeta-se como dois opostos, aparentemente antagônicos, sujeito e objeto ou organismo e meio ambiente, eu e não-eu. Esse processo de produzir dualismos repete-se inúmeras vezes em todos os níveis subseqüentes de consciência, gerando, cada vez, uma nova faixa do espectro e aumentando a ignorância do homem em relação à sua Identidade Suprema. Com o primeiro dualismo, vamos do Nível da Mente para o Nível Existencial, no qual acreditamos e sentimos que nosso organismo total, o eu, (psique e corpo) está completamente separado do meio ambiente (ameaçador).

(Entre os dois níveis citados, o da Mente e o Existencial, estão as chamadas Faixas Transpessoais nas quais se encontram o inconsciente coletivo de Jung, a percepção extra-sensorial, as experiências ‘fora’ do corpo, clarividência e outras paranormalidades. Esses fenômenos acontecem na faixa do espectro em que os limites entre o organismo e o universo não se cristalizaram completamente).

O Nível Existencial é gerado pelo dualismo primário; divide-se a Mente em eu e não-eu; a não-dualidade é reprimida e, em seguida, é projetada como organismo versus meio ambiente, e o homem passa a centralizar a identidade no seu organismo, como se existisse no espaço e no tempo. O homem desce da não-dualidade para a dualidade, da Eternidade para o tempo, do Infinito para o espaço, da Subjetividade Absoluta para um mundo de sujeitos e objetos, de uma identidade universal para uma identidade restrita, reduzida, pessoal. No entanto, no palco violento do espaço e do tempo, os múltiplos papéis, inclusive o seu e o meu, são representados por um Único Ator.

O dualismo primário cria o espaço. A Subjetividade Absoluta é infinita, sem tamanho ou sem espaço. Com o surgir desse dualismo, o sujeito, ilusoriamente, se separa do objeto e essa separação entre sujeito e objeto, observador e coisa observada, cria a ilusão do espaço, o intervalo entre o homem e o mundo. Leva o sujeito a se identificar exclusivamente com seu organismo, como se este fosse separado do meio ambiente.

Além disso, necessariamente ligada à criação do espaço está a criação do tempo, já que espaço, tempo e objetos formam um continuum inter-relacionado. Quanto ao por que da criação do tempo, ele se origina do medo da morte por parte do homem. Com a identidade limitada ao organismo, surge o debate de ‘ser ou não ser’, porque, assim que separa seu organismo do meio ambiente, o eu do não-eu, ensina Benoit, ‘(o homem) conscientiza que existem coisas independentes dele, e isso no contato penoso com o mundo ameaçador. Nesse momento surge o medo consciente da morte, do perigo que o não-eu representa para o eu’.

Por haver separado o organismo do meio ambiente e haver, em seguida, se identificado exclusivamente com o organismo, o problema da existência torna-se de supremo interesse. Tudo morre ao seu redor e gera-se a chamada angústia existencial, a ansiedade do ser versus a nulidade, da existência versus a não-existência, da vida versus a morte. O homem não aceita a extinção total que a morte representa. Não compreendendo que, na realidade, vida e morte são uma coisa só, ele as divide em sua frenética fuga da morte imaginada; separa a unidade vida-morte, em opostos e volta-os um contra o outro.

Para muitos é extremamente difícil compreender que vida e morte não são duas coisas. Acredita-se que a vida é uma coisa que começa com o nascimento e termina com a morte. No entanto, vida e morte ou, mais apropriadamente, nascimento e morte são simplesmente duas maneiras diferentes de encarar a realidade do momento Presente. No Presente Absoluto não há passado, e o que não tem passado acabou de nascer. O nascimento é a condição de não ter passado. No Presente Absoluto também não há futuro, e o que não tem futuro acabou de morrer. A morte é a condição de não ter futuro. Assim, o momento presente, não tendo passado é recém-nascido, e não tendo futuro é recém-morto. Nascimento e morte, portanto, são duas maneiras de falar a respeito do mesmo Momento intemporal, e só ilusoriamente estão separados na concepção daqueles ‘que, não podendo escapar da ilusão do tempo, não vêem todas as coisas em sua simultaneidade’. Em suma, nascimento e morte são uma só coisa neste momento intemporal.

Mas, ao identificar-se exclusivamente com seu organismo, o homem inicia o ilusório debate entre o ser e a nulidade (debate que não existe quando o organismo está unido ao meio ambiente), pois não suporta a possibilidade do que lhe parece ser a morte. Assim, surge o Segundo-Dualismo-Repressão-Projeção: o homem divide a unidade vida-morte, reprime-a e projeta-a como a guerra da vida versus a morte. Mas, ao fazer isso, desmembra e nega a unidade do Momento presente, pois o momento da vida, o momento da morte e o momento presente, são todos o mesmo momento. Assim, o tempo é criado; ao recusar a morte, o homem recusa a realidade do Momento eterno, intemporal. Não satisfeito em viver só o Momento sem fim, eterno, deseja viver também amanhã e depois e depois ainda.

Emerson: ‘Mas o homem espera ou recorda; não vive no presente mas, com olhos voltados para o tempo, lamenta o passado ou, sem dar atenção às riquezas que o cercam, tenta prever um futuro (melhor). Não pode ser feliz enquanto não viver, com a natureza, no presente, acima do tempo’. ‘E aí precisamente está o problema, pois viver no Presente, acima do tempo, é não ter futuro, e não ter futuro é ter a morte, coisa que o homem não quer. Não aceitando a morte, não vive no Agora; e não vivendo no Agora, não vive de maneira nenhuma’ (pois a vida é somente no Agora, no Eterno Agora).

Brown: ‘Tal incapacidade de morrer, irônica, mas inevitavelmente, joga o homem para fora do viver, o que é o mesmo que morrer; o resultado é a negação da vida (repressão). A incapacidade de aceitar uma morte ilusória dá ao instinto da morte sua característica humana e mórbida... O medo da morte assume a forma de uma preocupação com o passado e com o futuro, e o tempo presente, que é o tempo da vida, se perde; o presente que, no dizer de Whitehead ‘encerra em si a soma completa da existência, para trás e para frente, a total amplitude do tempo que é a eternidade’, se perde para o homem.

Fugindo da morte, o homem se coloca fora do presente e dentro do tempo, em direção ao futuro, no qual tenta escapar à morte do Momento intemporal. O dualismo, que dividiu a unidade vida-morte, divide, ao mesmo tempo, a unidade do Momento eterno, pois vida, morte e eternidade são uma só no Atemporal. Isto é, a separação da vida e da morte é o mesmo que a separação do passado e do futuro, e isso é a criação do tempo. Isso significa que a vida no tempo é criada pelo Dualismo Secundário (vida e morte).

Brown: ‘A conseqüência do desmembramento da unidade vida e morte é a transformação do homem em animal histórico...O homem, o animal descontente, infeliz, é o homem na história: a repressão e a compulsão da repetição geram o tempo histórico... Só a vida reprimida está no tempo; a vida não reprimida está na eternidade; é intemporal’.

A fuga do homem à morte gera a cega vontade de viver, isto é, o pavor pela morte, e influencia cada ação posterior que o homem pratique; a principal delas é a criação de uma imagem ideal de si mesmo a qual chama ego. Na ânsia de fugir da morte, a vida do próprio organismo é dividida, sua unidade é reprimida e se projeta como ego ou psique versus soma, alma versus corpo. O homem, fugindo da morte, deixa seu organismo, que julga mortal, e se refugia naquilo que considera muito mais durável do que a carne, uma idéia falsa de si mesmo, com a qual se identifica: o ego (alma, espírito) que julga seja imortal.

Benoit: ‘Sendo psique e corpo incapazes de se reunirem naturalmente (na concepção do homem)... ele se põe a adorar uma imagem que não tem realidade, o Ego. Na falta de um amor apropriado de sua psique à parte animal, o homem só tem uma opção: o amor da parte abstrata (o ego) a uma imagem ideal (e falsa) de si mesmo (o próprio ego)’.

Essa imagem ideal parece prometer alguma coisa que o corpo não lhe promete: a imortalidade, a continuidade de inúmeros amanhãs com algo que é apenas uma idéia, o ego que, ele crê, nunca morre nem é passível de desgaste e decadência. A fuga do homem à morte é a repressão do corpo e, assim, cria-se o Terceiro Dualismo-Repressão-Projeção: o organismo é dividido, sua unidade é reprimida e, a seguir, projetada como psique versus soma. Assim, no Nível do Ego, o homem pensa que tem um corpo, que possui um corpo tanto como possui um automóvel ou uma casa. Aplica direitos de propriedade a aspectos de seu organismo, diminuindo, assim, o seu valor intrínseco aos próprios olhos. Aí, o homem só está vagamente consciente daquilo que agora denomina ‘percepção do corpo’, e essa percepção empobrecida é tudo quanto lhe resta do Nível Existencial, o qual, por sua vez, era tudo quanto lhe restava do Nível da Mente.

A identificação exclusiva com o ego e a simultânea alienação do corpo forçam, literalmente, o homem a usar somente o modo dualístico e simbólico de conhecer, modo que é a negação total do modo de conhecer não-dual, e este, agora, fica completamente esquecido.

Aquilo a que nos referimos como ver, ouvir, tocar, provar e cheirar é o que chamamos de percepção organísmica (do organismo total, psique e soma). Na sua forma mais pura essa ‘percepção sensual’ é não-simbólica, não-dual, consciência momentânea. É a percepção do Presente apenas, pois não podemos ver, ouvir etc, no passado ou no futuro. Assim, essa percepção é intemporal e, por conseqüência, inespacial. E como essa percepção não conhece passado nem futuro, também não conhece o eu nem o não-eu e, assim, participa plenamente da percepção não-dualística denominada Consciência Cósmica. A consciência organísmica é a Consciência Cósmica.

O dualismo de interior versus exterior é apenas uma idéia à qual fomos condicionados, e que distorce a nossa percepção. Essa divisão é ilusão! A percepção organísmica é percepção não-dual. É a própria Mente. A repressão dessa percepção começa de imediato com os dualismos primário e secundário, com a separação ilusória entre interior e exterior e entre passado e futuro. A Identidade Suprema do homem passa de uma identidade universal não-dual, para a identidade pessoal reduzida e encerrada aqui dentro; de um estado sem limites, para um estado dentro dos limites convencionais do organismo, identidade de modo nenhum real, já que essa percepção não é organísmica.

Embora no Nível Existencial o homem se identifique com seu organismo total (psique mais soma), isso não significa que ele está em contato direto com a percepção organísmica, porque esta é inespacial e intemporal, idêntica ao Nível da Mente. Com o surgimento dos dualismos primário e secundário, o homem supõe que sua percepção está limitada pela pele; é esse o estado de consciência chamado Nível Existencial, uma percepção do homem separado do resto do universo e identificado somente com seu organismo tal como este existe no espaço e no tempo. A percepção de sua Identidade Universal e ilimitada é reduzida pelos dualismos primário e secundário a uma percepção existencial. A consciência cósmica se transforma na reduzida consciência individual.

Nesse nível, o homem receia a morte. Para não viver sem um futuro, no Agora intemporal, deseja momentos futuros que lhe adiem a morte. Não quer só um presente intemporal, mas quer mais outro e mais outro à sua frente, na ânsia de que todos os seus momentos fujam sempre para o futuro. Exatamente por isso, nenhum dos seus momentos presentes parece intemporal, eterno e completo em si mesmo (como na realidade é). Ao contrário, cada um deles parece passar para, fugir para, outros momentos. O momento que é sempre eterno parece, assim, uma série de momentos fugidios, que duram apenas alguns instantes. Na fuga à morte exigimos sempre um futuro, e assim passam-se todos os nossos momentos e não percebemos que já estamos na Eternidade.

No Nível Existencial, a geração do tempo, sobretudo na forma de presente passageiro, está intimamente ligada à geração da Vontade. O homem quer ter um futuro, quer evitar a morte. Essa vontade afeta todas as tendências seguintes, aspirações, inclinações, intenções, ideais, desejos, na medida em que todos implicam tempo. Neste nível está a origem da vontade do homem, particularmente da vontade de viver e de não morrer. Essa vontade não é a força de vontade que existe no Nível do Ego, aplicada aos esforços do Ego para dominar aspectos do seu organismo ou do meio ambiente. A vontade existencial é muito mais forte e fundamental; é ato do organismo para continuar no tempo, rumo ao futuro. A percepção existencial é a organísmica reduzida pelas divisões de interior versus exterior e do passado versus futuro. O que salva (um pouco) o homem é que ele ainda está, pelo menos, em contato com seu organismo total, sua unidade corpo-mente, mesmo que a sinta, erradamente, separada do meio ambiente. Ele não se considera, ainda, uma alma inteligente separada do estúpido corpo animal. E isto é apenas um passo além do Nível da Mente, ainda que pareça um salto gigantesco sobre enorme abismo.

Com a geração do Dualismo Terciário, o próprio corpo-mente se divide. Fugindo da morte, o homem rejeita seu corpo, que é real, e corre, amedrontado, para um mundo de idéias que julga verdadeiro (o ego, alma, espírito, que é irreal). Em vez de existir com seu organismo psicossomático total, cria e assume uma representação puramente mental ou psíquica de seu ser e se identifica com o ego. Agora, o homem é o que seu ego é e está inequivocamente no Nível do Ego. Cortou todos os laços restantes com sua consciência organísmica, com qualquer percepção não-dual (no Nível Existencial ainda tinha contato com ela). Está também sem contato com o Momento presente, pois vive perseguindo o futuro para evitar a morte. Em vez de consciência organísmica, ele agora tem imaginação, intelecção (de intelecto), fantasia, e o modo dual de conhecer se concretiza.

Benoit: ‘O mecanismo mais específico e concreto por cujo meio o ego se torna alma é a fantasia... A fantasia, como alucinação do que não está ali (a alma) e que nega o que está ali (o organismo); atribui, ao que é real (organismo), um estado destituído de significação e atribui, ao que é irreal (a alma), esperança e significado. Vê-se que a imaginação desempenha aí duplo papel: o de protetora das ilusões que tornam real o ego, e o de repressora do corpo animal pelo medo da morte. Protege o ego, que é irreal, e destrói o organismo, que é real’.

Com a repressão do organismo, concretiza-se a destruição da percepção organísmica. Resta dela agora apenas uma muito pobre percepção de seu corpo. O homem não sabe, nem pode saber, que a percepção do corpo é a ponta de uma jóia oculta de enorme valor, o conhecimento não-dual. A fuga ao corpo, na compreensão do homem, é a fuga à morte, mas afasta o homem do único modo de conhecer capaz de revelar a Realidade. O modo dualístico de conhecer funciona, agora, plenamente. A identidade do homem se transfere para uma imagem mental de si mesmo (o ego), a qual, por ironia, se baseia totalmente no passado (no que ele foi) e, portanto, está de todo morta. Ironicamente, o homem se mata para fugir de uma morte imaginada.

No Nível Existencial, o homem ainda está em contato com seu organismo total, sua unidade psicossomática. Mas, já não está mais plenamente em contato com a pura consciência organísmica porque esta, aí, foi contaminada pelos raciocínios dos dualismos primário e secundário. Você pode perceber o Nível Existencial num lugar sossegado e sem distrações, expulsando as idéias e conceitos que formou a respeito de si mesmo. Esqueça se é homem ou mulher, inteligente ou néscio, amargurado ou feliz, e preste atenção para o sentimento que persiste debaixo ou por trás dessas idéias, o sentimento central de existir e de estar vivo neste momento, a simples alegria de viver.

No Nível Existencial, predomina o dualismo do eu versus o não-eu. Nosso sentimento mais profundo de identidade e de existência (o eu) parece separado do mundo que nos rodeia (o não-eu). Se, de repente, percebêssemos que nossa existência é a existência do universo, esse dualismo desapareceria e estaríamos novamente no Nível da Mente (é o que se busca pela meditação).

O dualismo eu versus o não-eu possui inúmeros fatores, biológicos e sociológicos (Faixas Biossociais), que atuam no sentido de modelá-lo, colori-lo, ajustá-lo. Cada indivíduo, nesse nível, carrega consigo vasta rede de relações que ele interiorizou por pertencer à determinada sociedade: crenças, mitos, culturas, regras, a soma total de toda informação sociológica que o organismo acumulou, inclusive pela genética; até mesmo a linguagem e a gramática modelam, inconscientemente para nós, nossa experiência. A linguagem, e seu produto, a intelecção abstrata (compreensão, interpretação, raciocínio) estão entre as principais fontes de dualismos do homem.

Benjamin Whorf: ‘A divisão da natureza em partes é um aspecto da gramática. Retalhamos a natureza ao longo de linhas traçadas por nossas linguagens nativas... O mundo se apresenta num fluxo ilusório de impressões que precisam ser organizadas por nossa mente, o que significa, em grande parte, pelos sistemas lingüísticos existentes em nossa mente. Fazemos a natureza em pedaços, organizamos esses pedaços em conceitos e lhes atribuímos significados de acordo com os padrões de nossa língua’.

Com nossos processos lingüísticos, inconscientemente, fatiamos o real introduzindo distinções que, depois, acreditamos que existiram o tempo todo. Sempre incluímos na percepção das coisas da natureza mais do que elas contêm, simplesmente porque nossos verbos precisam de substantivos. Dizemos ‘uma luz brilhou’, e interpretamos como duas coisas, esquecendo-nos que o brilhar (verbo) e a luz (substantivo) são uma coisa só. Portanto, a linguagem cria coisas e, com o pensamento, enchemos o universo de coisas fictícias, e depois acreditamos que tais coisas sempre existiram. Os dualismos são como um véu colocado sobre a Realidade, modificando-a e, assim, criando coisas. Refletindo sobre essas coisas, criamos distinções sobre distinções, isto é, idéias sobre idéias. Alimentamos o pensamento e, por conseqüência, alimentamos o ego.

Esse nível age como reservatório para reforçar o ego, através de seus papéis, valores, status, etc. O dualismo primário reprimiu o nível da Mente, projetando-a como organismo versus meio ambiente, gerando o Nível Existencial. Isso desencadeia o dualismo secundário de vida versus morte, que gera o dualismo terciário entre psique versus soma, dando lugar ao surgimento do Nível do Ego. Uma das principais características do ego, nesse nível, consiste em que, mais do que em qualquer outro nível, sua natureza seja nada mais do que um feixe de lembranças colecionadas, organizadas e arquivadas para consulta (memória).

Watts: ‘O ego se compõe principalmente de uma história de lembranças selecionadas, que começam com o nascimento. De acordo com nossa convenção, eu não sou apenas o que estou fazendo agora. Sou muito mais o que fiz, pois minha história convencionalmente organizada do passado parece um eu mais real do que o que sou no presente. O que sou parece meio vago e impalpável, ao passo que o que eu fui é fixo e final, a base firme das predições do que serei no futuro, e é por isso que estou mais estreitamente identificado com o que fui do que com o que realmente sou! Basta-nos perguntar ‘Quem sou eu?’ para verificar que a resposta que predomina será sobre coisas que fizemos no passado, enquanto o correto seria responder ‘Sou agora um processo de ler esta página’.

Uma coisa é recordar o passado, mas outra, bem diferente, é identificar-se com ele! A seguinte historia Zen é reveladora: “Após o aluno ter dado alguns passos, o mestre lhe perguntou: ‘Você é capaz de ver suas pegadas?’ O aluno respondeu que não. E o mestre: ‘Elas não estavam ali antes e não estão ali agora. Não havia nada em sua vida antes (no passado) e nada em sua vida depois (no futuro), nada”. Nós, porém, nos identificamos com nossas pegadas, com nosso passado ilusório. Sempre ficamos relembrando o que nos ocorreu ontem. A ansiedade e o conflito assim produzidos podem levar-nos a perceber que nossa ‘historia é um pesadelo do qual estamos tentando despertar’.

As ilusões, como as do passado, não trazem felicidade e, na tentativa de aliviar a frustração, o ego imagina que, no futuro, encontrará felicidade; que terá uma bonita recompensa no fim dos tempos (exemplo disso é o acreditar-se que o ano que começa será melhor do que o ano que findou). Mas essa idéia é falsa, porque a felicidade terá por base o sempre incerto futuro. A melhor notícia para o ego é a promessa de um futuro feliz e não a de um presente feliz. O ego suportará incríveis adversidades no presente se crer que, no futuro, será recompensado; mas esse futuro nunca será desfrutado pois ainda não existe e, quando chegar, o ego só ficará contente se lhe prometerem um novo futuro feliz! O ego se parece com o burro da fábula na qual, para que não parasse de correr, seu dono amarrou no próprio animal, à sua frente, uma cenoura na ponta de uma vara de modo que, por mais que corresse, nunca a alcançava. De passar tanto tempo correndo atrás da felicidade futura, o ego acaba identificando a felicidade com o próprio processo de correr atrás dela, acaba confundindo a felicidade com sua busca. E não pode mais parar de correr e, se o prêmio futuro realmente aparecer, não podendo parar, passará correndo por ele, sem o perceber. Nunca viverá completamente no presente e, assim, nunca terá felicidade, mesmo que ela venha. Se não pode desfrutar o presente, não poderá desfrutar o futuro quando ele se tornar presente. Correrá assim, frustrado, até ser atirado num círculo vicioso de trabalhar para sua própria e permanente frustração.

Maynard: ‘Estamos mais preocupados com os resultados futuros e remotos de nossas ações do que com sua qualidade e efeitos atuais. O homem está sempre procurando assegurar uma imortalidade ilusória para os seus atos, empurrando seu interesse por eles para frente no tempo...’

O insensato disso é que o ego jamais consegue provar plenamente a alegria de viver que é apenas do Momento Presente, pois a alegria do momento presente não conhece futuro, e o que não conhece futuro, na concepção humana, é a morte, da qual o homem foge. O ego não aceita a morte e, por isso, não encontra a felicidade. Então, o homem no Nível do Ego tenta evitar a morte do momento intemporal vivendo de um passado que já não existe e buscando um futuro que ainda não existe e que nem sabe se existirá.

Há, ainda, outro dualismo. No desmembramento final, o homem impõe divisões ao próprio ego, reprime a unidade de todas suas tendências (que constituem o próprio ego) e projeta-as como persona versus sombra. Cada dualismo apresenta uma realidade ilusória; revela as coisas como parecem ser e não como realmente são. Aqui, embora o homem reprima e projete certos aspectos seus, que lhe desagradam, eles continuam sendo seus e só parecem existir fora dele. Assim, quando tenta expulsar certas facetas de si mesmo, como continuam sendo suas, elas voltam para persegui-lo na forma de sintomas neuróticos. Mas, as facetas projetadas dão impressão de estar fora do ego, de modo que o homem, mais uma vez, transferiu e diminuiu sua identidade separando-se de partes do próprio ego. Esta divisão cria o nível final do espectro, nível que Jung denominou ‘Sombra’, os aspectos não desejados de nosso eu dos quais nos tentamos livrar, mas que nos seguem como nossa própria sombra.

Essa é a evolução do espectro da consciência, no sentido de uma identidade cada vez mais reduzida: do universo para o organismo, deste para o ego, do ego para partes do ego. Esses níveis (são os principais) não estão separados; unem-se infinitamente uns aos outros. A consciência do homem raramente se limita a um nível; no curso de vinte e quatro horas, pode viver em todos eles. Mas, em geral, passa a maior parte da vida de acordado numa área muito pequena do espectro.

Há, porém, aspectos da consciência não totalmente percebidos como objetos de percepção, como determinadas lembranças, experiências, desejos e idéias denominadas inconscientes, e certos processos orgânicos (autônomos), como a digestão, o crescimento corporal, as habilidades motoras automáticas, que não controlamos de forma consciente. O inconsciente contém desejos e idéias a eles ligadas, repelidos da consciência pela repressão de modo que, onde ocorre repressão, ali ocorre, necessariamente, um tipo de inconsciente. Cada nível do espectro, por ser provocado por um dualismo-repressão-projeção particular, é sempre acompanhado por processos inconscientes particulares; cada nível tem seu próprio inconsciente. Em suma, a realidade não-dual reprimida torna-se ‘o’ inconsciente. Isto é, cada inconsciente particular representa algum aspecto do universo com o qual já não nos identificamos. Logo, dualismo significa inconsciência (ao superarmos os dualismos, ampliamos nossa consciência e a teremos integral).

Todos os opostos (os dualismos criam opostos) são interdependentes e inseparáveis e formam uma unidade; portanto, são não-duais. Na maioria dos casos, como no caso da palavra e do plano de fundo da página, imaginamos que somos capazes de perceber a palavra sozinha e essa noção nos leva a concluir que figuras ou coisas separadas existem por si sós, já que é essa, aparentemente, a maneira como as percebemos. Sabemos, porém, que isso é pura ilusão, pois percebemos realmente todo o campo visual da figura-mais-página-mais meio ambiente. A figura e o segundo plano só estão separados na nossa atenção seletiva, na nossa mente; não, na realidade. E, de maneira semelhante, pensamos que a ‘figura’ do bem está totalmente separada, sendo mesmo o oposto exato, do ‘segundo plano’ do mal; que o certo está separado do errado; que a verdade está separada da mentira. Talvez até aceitemos a não separação entre palavra e página, coisas inconseqüentes, mas reagimos com espanto à idéia da não separação entre Deus e Satanás, vida e morte, prazer e dor, vício e virtude, bem e mal! Mas, devemos compreender que, no nosso íntimo, já sabemos que a compreensão de um sem o outro é impossível e sem sentido. Seria como falarmos de caixas com as partes interiores e sem as partes exteriores. No caso da palavra e do plano de fundo, tudo que fazemos é fatiar e reprimir aspectos do campo não-dual da percepção total visual, deixando-o mutilado e falso. Assim, é inevitável que a realidade da unidade do campo não-dual permaneça uma ilusão e se torne inconsciente para nós.

(‘eu’ + o inconsciente = Nível da Mente = Deus; o Nível da Mente se realiza ao incorporarmos o nosso inconsciente ao nosso eu. Assim, Yung disse que havia realizado seu inconsciente).

Tudo indica, pois, que, entre o que nossos sentidos percebem e o que nossos processos dualísticos nos fazem pensar que percebemos (em face das nossas interpretações), há um enorme abismo, com o qual o inconsciente se acostuma. Assim, o dualismo primário-repressão-projeção cria o Nível Existencial pela divisão da unidade sujeito-objeto, eu e não-eu, organismo e meio ambiente. A própria Mente se torna despercebida, inconsciente, que quase todos nós ignoramos que somos Mente. A experiência de só-Mente, contudo, está sempre presente, é a única experiência sempre-presente; mas, em conseqüência dos dualismos, nós a reprimimos e, assim, ela se torna inconsciente para nós.

A iluminação final, isto é, o desfazimento do dualismo primário, não requer que percebamos a Mente objetivamente, coisa impossível (pois não é objeto); e sim que vivamos conscientemente como Mente o que, em certo sentido, já estamos fazendo. Como a Mente nunca pode ser objeto de percepção ou da consciência, referimo-nos a ela como o Inconsciente, o que mostra que não temos percepção do fato de estarmos sempre vivendo como Mente, fato que somente vamos perceber com o fim do dualismo primário. O nível da Mente é o Inconsciente para nós porque não podemos conhecê-lo pelo nosso modo dual de conhecer. Resumindo, o dualismo primário torna o Inconsciente inconsciente para nós. E isso quer dizer que nosso consciente somado ao que é o Inconsciente para nós é o próprio universo (Nível da Mente, Deus). Estrelas, montanhas, nuvens, oceanos, animais, vegetais, minerais e mesmo automóveis, aviões, trens, são parte do conteúdo do nosso inconsciente básico.

Goethe: ‘Tudo está na Mente eternamente presente, pois ela não conhece passado nem futuro. Para ela, o presente (o agora) é a eternidade’.

Assim, o inconsciente fundamental, básico, é o universo infinito e eterno, que os dualismos primário e secundário tornaram inconsciente, mas jaz no íntimo não-percebido de cada ser humano.

Brown: ‘O inconsciente é aquele mar imortal que nos trouxe aqui, sinais do qual nos são dados em momentos de ‘sentimento oceânico’; mar de energia ou de instinto, que abarca todo o gênero humano, sem distinção de raça, língua ou cultura; que abrange todas as gerações passadas, presentes e futuras, num só corpo místico. O inconsciente é a verdadeira realidade psíquica, o Espírito Santo’. Assim, se realizarmos o Inconsciente, nos uniremos ao Espírito, seremos a Divindade conscientemente pois, inconscientemente, já a somos.

Os dois primeiros dualismos tornam a Mente inconsciente para nós pois reprimem a consciência organísmica, a própria Subjetividade Absoluta, de percepções atemporais e inespaciais. Nada existe em nossa percepção sensorial quando pura (isto é, sem a interferência do ego) que, mesmo vagamente, corresponda a espaço ou a tempo. Esses dualismos reprimem e obscurecem a consciência organísmica, a própria Mente, convencendo-nos de que as fronteiras entre passado e futuro são reais, ao passo que, como todas as fronteiras, elas não passam de convenções simbólicas.

Erich Fromm: ‘Cada sociedade, pela própria prática de viver e pelo modo convencionado de relacionar-se, sentir e perceber, desenvolve um sistema de categorias que determina as formas de percepção (como se estas tivessem de passar por um filtro para serem ‘aceitas’). As experiências que não podem ser filtradas continuam fora da percepção, quer dizer, permanecerão inconscientes’.

No Nível Existencial, o homem sente-se e age ainda como um corpo-mente. É, ainda, um ego-corpo. Mas, com o dualismo terciário, que divide psique versus soma, mente e corpo, passa a dar menos importância ao corpo, animal que ele procura controlar para obrigá-lo a executar as ações desejadas, e a dar muito mais importância àquilo que lhe parece ser imortal, o ego. Aí está a geração do Nível do Ego. Estreitamente ligado ao ego está o que se pode chamar inconsciente filosófico, isto é, todas as suposições transcendentais e crenças do ego, premissas intelectuais básicas e seus mapas, os quais considera tão verdadeiros e incontestes que, acerca deles, não admite qualquer discussão.

Assim, para cada nível, existe um inconsciente correspondente, alguns aspectos ou processos inconscientes próprios diferentes, isto é, necessidades diferentes, modos de percepção, compreensões, interpretações, símbolos, motivações, compensações diferentes. Mas, seja qual for o nível em que vivamos, o inconsciente total consiste na soma de nosso consciente com o inconsciente, isto é, com todos os aspectos e características do universo com os quais não mais nos identificamos. Nas condições gerais de repressão, seja em que nível for, os aspectos com os quais não mais nos identificamos entram no campo da percepção de forma indireta e distorcida, surgindo como objetos estranhos e potencialmente ameaçadores lá fora. No Nível da Sombra, por exemplo, perdemos contato direto com o meio-ambiente, com o corpo e até com partes do ego e, por isso, só temos consciência desses aspectos, agora inconscientes, de modo indireto: eles nos surgem como objetos lá fora, alheios, potencialmente ameaçadores, embora sejam apenas reflexos de partes da nossa identidade reprimida, projetada e esquecida.

Por mais diferentes que sejam os níveis de consciência, todos vêm do dualismo primário. Depois que se separa do visto, o vedor passa a ser um ponto cego do universo pela simples razão de que não pode ver a si mesmo. Nenhum sistema de observação pode observar a si mesmo e, assim, alguma coisa sempre fica de fora (aí estão os princípios da Incompletude e da Incerteza, agora já operando psicologicamente). Cada dualismo é, assim, uma ampliação do ponto cego inicial. Não há, porém, uma evolução real da Mente através do espaço e do tempo, mas uma suposta evolução que se manifesta como espaço e tempo (Como afirma Krishnamurti, não existe evolução da Mente; a Mente já é; e o Velho Testamento: Eu sou Aquele que sou). A descrição da evolução dos níveis da Mente, em razão dos dualismos principais, como se ocorressem no tempo, é apenas uma concessão aos nossos padrões dualísticos de pensamento e de linguagem, para permitir uma melhor compreensão.

Coomaraswamy: ‘A vida do homem pode ser imaginada como uma curva. O movimento centrífugo, Evolução, caracteriza-se pela crescente afirmação do ego. O movimento centrípeto, Involução, pela crescente compreensão do Eu. A religião dos homens no caminho centrífugo é a religião do tempo; a religião dos que retornam (no caminho centrípeto, pela crescente compreensão do Eu) é a Religião da Eternidade’.

Esse processo de involução e evolução é considerado o drama universal da ‘eterna brincadeira de pegador’, da manifestação e dissolução, da criação e destruição, mas o único ator é a própria Divindade, que representa quantidade infinita de papéis, como você e eu, sem deixar de ser sempre ela mesma, inteira e indivisa, inespacial e intemporal (Deus brinca com ele mesmo? Preparou um palco para isso, o universo?) Dividimos esse drama em involução e evolução, ao passo que, na realidade, as duas fases são um aspecto só. Não há involução nem evolução no tempo pois, compreendamos ou não, o Eu está sempre no Presente eterno, intemporal. A iluminação é a libertação dessa ilusão que apresenta a Eternidade como se estivesse estendida numa seqüência chamada passado-presente-futuro.

O Nível Existencial, produto do dualismo sujeito-objeto, é uma perturbação na raiz do eu, perturbação que estimula todas suas atividades. Seu combustível, no fundo, é o desejo, mesmo inconsciente, de encontrar Deus ou, o que é a mesma coisa, o desejo de Deus se encontrar. O dualismo primário expulsa o homem do Éden, isto é, Deus sai de si mesmo e se torna inconsciente de partes de si mesmo. O Inconsciente é a verdadeira realidade. O homem, máscara de Deus nesse drama, busca uma reunião impossível, pois o buscar implica a dualidade de buscador e buscado, e Deus só está onde não há dualidades. E não podendo conseguir o impossível, o homem busca satisfações-substitutas, simbólicas, nas quais procura encontrar o Jardim não-dual. Como seu desejo é inconsciente, nem ele sabe o que procura. Imagina querer sucesso, prestígio, dinheiro, poder, fama. Como jamais pode encontrar a só-Mente nessa busca dualística, nunca está completamente satisfeito, nem feliz consigo nem com o mundo, porque busca a união de uma forma que nunca a encontrará.



6. O QUE AS TRADIÇÕES DIZEM

O psicólogo e maior filósofo da América, William James, expôs essa controvérsia com precisão: ‘Consideremos a sensação direta que nos dão as paredes desta sala. Podemos afirmar que o psíquico (percepção) e o físico (paredes) são totalmente diferentes? Pelo contrário, são tão pouco diferentes que, se pusermos de lado todas as invenções explanatórias (do homem), se tomarmos a realidade como ela se nos apresenta, sem intermediários (sem a interferência do ego, com suas memórias, imaginações, associações), a realidade sensível (percebida) e a percepção que temos dela são absolutamente iguais uma à outra no ‘momento’ em que ocorre a percepção. A Realidade é a própria percepção. O conteúdo físico é exatamente idêntico ao conteúdo psíquico. O sujeito e o objeto se confundem’ (Krishnamurti: o observador é a coisa observada).

A Realidade é a percepção (sem interferência do ego) mas, com o dualismo primário, a percepção se torna distorcida. O mundo é indistinto dele mesmo, mas se torna falso para ele mesmo. Contudo, essa falsidade não é real, uma vez que o mundo continua indistinto dele mesmo. O universo existe exatamente como o percebemos, e não como o dividimos, interpretamos e nomeamos como coisas separadas, estendidas no espaço e no tempo, fato que torna nossa interpretação diferente da nossa percepção.

A psicologia vedântica funda-se na percepção experimental e constatável de que Brahman é a única realidade, e sua primeira preocupação é explicar o por quê de o homem não perceber sua suprema identidade com o Absoluto. A causa disso são os dualismos que levam o homem a um mundo de ilusões e, em conseqüência, de conflitos. Psicologicamente, nossa ignorância é causada pela colocação de véus, produzidos pelos dualismos, sobre a realidade de Brahman, o que faz com que o homem a interprete erradamente e, em conseqüência, identifique-se também erradamente, não tendo, com isso, percebimento de sua verdadeira identidade cósmica. As equivocadas identificações do eu produzem os diferentes níveis de consciência e de compreensão. Nosso eu verdadeiro é a só-Mente, Deus, mas nos o confundimos com o conteúdo variável de nossa mente.

Zen: ‘A pessoa que vê na corda uma cobra, bem como a pessoa que vê na corda uma corda, estão igualmente adormecidas; o despertamento só ocorre quando ambas vêem na corda o que ela é: uma manifestação de Brahman, uma objetivação da Mente; tanto a corda quanto a cobra são ilusões’.

Ao despertar, percebemos que a própria vida é um grande sonho. Enquanto o despertar não vem, os ignorantes se acreditam despertos e, supondo que compreendem tudo, fazem discriminações sutis, diferenciando príncipes de escravos. E, se alguém realmente desperta, é considerado louco. ‘As tentativas de despertar são freqüentemente castigadas, particularmente pelos que mais nos amam, porque eles, abençoados sejam, estão adormecidos e pensam que quem desperta e compreende que o que consideramos real não passa de um sonho, está ficando louco’ (Bíblia: a sabedoria de Deus é loucura para os homens).

Benoit: ‘Zango-me com alguém que me aborrece; haverá, em mim, duas reações diferentes: a primária (não-dual) consiste no despertamento em mim de certa dose de energia vital, que jazia latente até ser despertada pela minha percepção de uma energia manifestada pelo não-eu contra o eu (dualismo primário). A energia agressiva estranha provoca em mim a manifestação de uma energia reativa que equilibra a energia do não-eu. Durante um instante, a força que desponta ainda não é uma força de raiva, não tem ainda forma precisa; é informe, uma força vital pura (não contaminada pelo ego-pensamento). A reação primária corresponde a certa percepção do mundo exterior, a certa consciência, mas muito diferente do que habitualmente se chama assim. Não é consciência mental, mas uma consciência profunda, orgânica, que conhece o mundo de forma não-dual. Sinto a força subir para a minha cabeça, onde ela passa a constituir um milhar de imagens (já contaminada, então, pela conceituação); sinto-a vir de baixo, da minha existência orgânica. Esta reação primária, extremamente rápida, escapará à minha observação se eu não estiver muito atento’.

Benoit ensina que, no momento em que se inicia a conceituação, o modo organísmico não-dual de conhecer se desintegra no modo simbólico, ocultando nossa Identidade Suprema que o modo não-dual revelaria. Quando ainda sou uma consciência orgânica, não discrimino (não-dualismo) mas, na medida em que sou uma consciência intelectual, discrimino (dualismo). Em minha consciência orgânica estou tão identificado com o não-eu quanto com o eu (Nível da Mente); em minha consciência intelectual identifico-me apenas com o eu (Nível do Ego). Sempre acreditamos que temos conhecimento intelectual do mundo exterior, mas, na verdade, só temos conhecimento das modificações causadas na nossa consciência pela percepção do mundo exterior (sensações que são distorcidas pelos dualismos e, assim, produzem interpretações diferentes e equivocadas acerca do Real).

Nunca pensamos que um livro de física fosse realmente um livro religioso do qual se retiraram todas as palavras inconvenientes, como intuição, eternidade, Deus. No Hinduísmo, Energia é um dos nomes de Deus, e todos os fenômenos do universo nada mais são que formas de Energia, a qual constitui a base de toda a matéria (Einstein). Isso é física pura e ficamos imaginando se estamos lendo física ou misticismo. (Margenau, segundo Dossey, escreveu um livro sobre física que é, nada mais nada menos, que um livro sobre Deus).

A consciência não pode ser encontrada dentro do corpo. Como afirmou Schroedinger, ‘não compreendemos esse fato, porque nos habituamos a pensar na mente de um ser humano como estando no interior de seu corpo. Ficar sabendo que ela, com efeito, não pode ser encontrada ali é tão surpreendente que não desejamos de maneira alguma admiti-lo. Nós nos acostumamos a localizá-la na cabeça de uma pessoa, uma a duas polegadas atrás do ponto situado no meio da distância entre os dois olhos. É muito difícil assimilarmos o fato de que a localização da personalidade, da mente consciente, dentro do corpo, é apenas simbólica, simples auxiliar para uso prático’.

Isso não quer dizer que a consciência fica fora do corpo, crença muito popular na projeção astral. Essa crença é apenas reflexo do dualismo interior versus exterior. (Ela está dentro e está fora, e está em todo lugar).

Ramana: ‘Para quem é o interior e para quem é o exterior? Estes só existem enquanto houver sujeito e objeto. Se você fizer uma investigação, descobrirá que eles se convertem no sujeito. Veja quem é o sujeito; e a investigação levará você à Consciência pura, além do sujeito’. Assim, quando Benoit diz que a energia sobe à cabeça isso é apenas metáfora. A força pura, não-dual, não conhece interior ou exterior, não pode ser localizada porque está em todo lugar, no Infinito.

Benoit: ‘Aquelas duas reações correspondem a duas consciências distintas: a reação primária, à consciência orgânica (Nível da Mente); a reação secundaria, à consciência intelectual, ou imaginativa (Nível do Ego). Minha consciência imaginativa é dualística; os processos emotivo-imaginativos que (nela) ocorrem podem ser afirmativos ou negativos, agradáveis ou desagradáveis (frente e costas). Minha consciência orgânica, ao contrário, não é dualística pois a força vital que sobe dentro dela é informe, anônima, sempre a mesma, independente das formas dualísticas que ela tomará dali por diante... A consciência orgânica não diferencia entre o eu e o não-eu e, em conseqüência, nos dá conhecimento do Universo em sua unidade... Em suma, somente minha consciência orgânica conhece o Universo’. E o conhece em sua totalidade porque é inespacial e intemporal, infinita e eterna (é o próprio universo), e porque toda a infinidade-eternidade está em cada ponto do espaço e do tempo, simultaneamente.

Se conhecermos o Agora absoluto, conheceremos todo o tempo; se conhecermos o Aqui absoluto, conheceremos todo o espaço. Isso não quer dizer que conheceremos todos os fatos que podem ser obtidos pelo conhecimento do mapa simbólico, ou tudo que está em todos os livros já escritos. Conheceremos e seremos a realidade de todos os fatos individuais, conheceremos vividamente a realidade absoluta refletida na memória.

Lao Tzu: ‘Sem sair de casa podes conhecer o mundo inteiro. Sem olhar pela janela podes ver como anda o céu. Quanto mais longe fores, menos conhecerás. Assim, o sábio conhece sem viajar’.

Vimos que o espectro da consciência representa identificações do Vedor Absoluto com objetos vistos, portanto conhecidos. Como afirmou Patanjali: ‘Ignorância é a identificação do Vedor com os objetos da visão’. A meta, portanto, é deixar de nos identificarmos com objetos percebidos para podermos descobrir nossa identidade com toda a manifestação universal. Conforme Benoit: ‘Essa identificação não é equivocada, mas incompleta, pois exclui nossa identificação com o resto do Universo’.

Na hipótese de alguém bater em mim, a batida propriamente dita, em sua forma mais simples, é uma manifestação da Energia do Absoluto, apenas um movimento do universo mas, assim que ocorre o dualismo primário, sinto que uma mobilização da energia se processa dentro de mim. Antes que o dualismo ocorra, a energia é intemporal, informe, pura. Quando o dualismo ocorre, a energia assume a forma de raiva, me sobe à cabeça onde a conceituo como raiva (Nível do Ego), e perdura no tempo. Se ocorrer, então, o dualismo quaternário, projetarei a raiva e a agressão e, por isso, sentirei medo (Nível da Sombra).

Tal é a mobilização e a desintegração da Energia, a evolução e involução de Brahman, um ‘jogo jogado eternamente com todas as criaturas’, isto é, a criação e dissolução, não de matéria, mas de dualismos (o inspirar e o expirar Búdicos, ou a noite e o dia de Buda).



7. UNINDO PERSONA E SOMBRA

Na psicanálise e psicologia, sabe-se que, na execução de inúmeras ações, o homem age movido por razões que ele nem percebe, pois, aparentemente, não se acham em sua consciência. Freud construiu sua psicanálise em torno dessa visão: o homem é movido por necessidades ou motivações inconscientes. Por serem inconscientes, o homem não tem percepção delas, de modo que nunca pode atuar sobre elas para obter satisfação. Em suma, o homem não sabe o que quer; muitos dos seus desejos são inconscientes e, por isso, nunca são adequadamente satisfeitos. Daí advêm neuroses e ‘doenças mentais’. O homem é pois inconsciente de alguns aspectos do seu eu, ou a percepção que tem deles é confusa. A esses aspectos inconscientes do eu chamamos Sombra. Somente através da reunião da Persona, sua auto-imagem inexata, à Sombra, ou facetas ‘projetadas’ do eu, o homem recuperará sua auto-imagem exata reintegrando-se no Nível do Ego, da mesma maneira que, somente com a reidentificação com aspectos desmembrados por força dos demais dualismos, se reintegrará, finalmente, no Nível da Mente.

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(Wilber afirma que é possível integrar, de modo completo e abrangente, a maioria das escolas de psicoterapia ocidentais com os enfoques orientais da consciência, pois cada uma das principais, embora diferentes escolas, se dirige a um nível do espectro da consciência. A razão da existência de tantas escolas diferentes é que elas não têm em mira, como erradamente se supõe, o mesmo nível de consciência. Cada uma aborda um nível distinto, e suas conclusões, portanto, não são contraditórias como parecem, mas complementares).

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Cada nível do espectro é gerado por um determinado dualismo-repressão-projeção que resulta, entre outras coisas, num estreitamento cada vez maior da consciência e da identidade: do universo (nível da Mente), ao organismo (nível Existencial), à psique (nível do Ego), até a partes do ego (nível da Sombra). Cada nível é produtor em potencial de certa classe de doenças, pois representa um tipo particular de alienação de partes de si mesmo. A natureza dessas doenças se agrava a cada novo nível mais restrito, pois surgem mais aspectos do universo com os quais deixamos de nos identificar e que nos parecerão alheios e ameaçadores. No Nível Existencial, nos imaginamos separados do meio-ambiente e, assim, potencialmente ameaçados por ele. No Nível do Ego, nos sentimos separados do próprio corpo e este e o meio ambiente nos parecem ameaçadores. No Nível da Sombra, repudiamos partes da própria psique e, meio-ambiente, corpo e partes repudiadas da psique, podem nos parecer ameaçadores. Cada uma dessas alienações é produtora potencial de uma classe específica de doenças, ou processos inconscientes, ou repressões, ou projeções.

A Sombra pode conter não só aspectos maus, demoníacos e agressivos, que repudiamos, mas também aspectos bons, divinos e nobres, que esquecemos de que nos pertencem. Ainda que repudiados, continuam sendo nossos, continuam a operar e continuamos a percebê-los; mas, como julgamos que não são nossos, vemo-los como se pertencessem a outras pessoas e acreditamos, ou que nos ameaçam, ou que o outro tem qualidades excepcionais que nós não temos. Assim, quando temos o impulso para fazer algo, parece que o meio ambiente é que nos está empurrando para agir e, em lugar de interesse, sentimos pressão; em lugar de desejo, obrigação. A energia continua sendo nossa, mas devido à projeção, sua fonte parece estar fora de nós e, assim, em vez de possuirmos energia, nós nos sentimos martelados por ela, forçados pelo que parecem ser forças exteriores. E podemos projetar, não só emoções positivas de interesse, impulso, desejo, mas também emoções negativas de raiva, ressentimento, ódio, rejeição. Em vez de entender que estamos com raiva de alguém, achamos que esse alguém está com raiva de nós; em vez entender que odiamos, achamos que o mundo nos odeia; em vez de entender que rejeitamos, achamos que somos rejeitados.

Podemos, também, projetar idéias, qualidades ou traços positivos ou negativos. A pessoa apaixonada projeta todo seu potencial no amado e, logo se sente dominada pela suposta bondade, sabedoria, beleza, competência, do ente querido. Entretanto, a beleza está nos olhos do contemplador, e a pessoa apaixonada está, muitas vezes, apaixonada por aspectos projetados do seu próprio ego. Fato semelhante ocorre nos casos de admiração, inveja etc. Nossa tendência natural, frente a um aspecto não desejável de nós mesmos, é simplesmente negá-lo e projetá-lo para fora da consciência, o que é impossível; os aspectos repudiados continuam sendo nossos e não deixam de nos perseguir. Nossa luta com as maldades do mundo geralmente é nossa luta com nossa própria Sombra. A irritação, a negativa violenta é a evidência da projeção. As críticas que fazemos dos outros, geralmente, não passam de trechos não-percebidos de nossa própria auto-biografia. Para se conhecer de fato uma pessoa, basta prestar atenção ao que ela fala a respeito dos outros.

Assim, as neuroses resultam do dualismo quaternário, pelo qual a unidade do ego é reprimida e certas facetas são projetadas no meio-ambiente; negamos e reprimimos e projetamos nossas próprias tendências. A terapia nesse nível será a reintegração ou nossa reidentificação com as facetas reprimidas e projetadas.

Perls: ‘Comecemos com a suposição de que tudo que vemos em outra pessoa ou no mundo seja uma projeção nossa... Podemos ter de volta essas nossas projeções, projetando-nos completamente na outra coisa ou pessoa. Temos de fazer o oposto da alienação e projeção: a reidentificação’.

(Seguem-se exemplos das principais projeções de emoções ou qualidades, positivas ou negativas, e suas terapias).

Trechos: quanto mais uma qualidade é projetada, mais tenderá a se projetar. Toda vez que você sente ansiedade é porque está simplesmente se recusando a ficar excitado, vibrante, vivo. A solução não é fugir nem esquecer, mas restabelecer contato com seu interesse ou excitação, deixar que a excitação domine, respirar até ofegar profundamente; em vez de comprimir o peito e restringir a respiração; estremeça e vibre de energia, em vez de simular frieza e conter a excitação, ficando tenso e nervoso; deixe que sua Energia se mobilize e flua, em vez de reprimi-la. A ansiedade é apenas o interesse e a excitação reprimidos e projetados.

Se estiver vivendo uma situação de ansiedade, não tente livrar-se dela (ou seja, aliená-la ainda mais); assuma-a totalmente, estremeça, trema, arfe, siga sua tendência corporal; entre em contato com a ansiedade deixando-a explodir em excitação; descubra a Energia que quer nascer e sinta-a completamente, pois a ansiedade é a excitação (Energia) que se reprime e se projeta. Uma sugestão é realizar o programado assim que puder, se possível imediatamente, para evitar a ansiedade e suas conseqüências.

Quando você se sentir pressionado a fazer alguma coisa, veja se o desejo de fazer essa coisa não é desejo seu mesmo, desejo que você reprimiu e que, agora, sente como uma pressão externa. Essa pressão é seu próprio desejo disfarçado e, caso não existisse o desejo, você não se sentiria pressionado.

Putneys: ‘A alternativa consiste em movimentar-se para além da pressão, reconhecendo que qualquer sensação de pressão é nosso próprio impulso projetado. O homem capaz de reconhecer que o que sente é seu próprio impulso projetado, não se irritará com a pressão, nem resistirá a ela; agirá (com ela)’.

Na projeção de emoções negativas, como agressão, ressentimento, raiva, ódio, rejeição etc, deve-se entender que isso é fato muito comum, sobretudo no Ocidente onde a cultura moral predominante do Cristianismo popular exige que combatamos todas as tendências más e negativas em nós e nos outros, ainda que o Cristo tenha aconselhado a não resistir ao mal, a amá-lo e a favorecê-lo, pois disse ‘Eu sou o Senhor e não há mais ninguém. Faço a luz e crio a treva, faço a paz e crio o mal; Eu faço todas as coisas’. Apesar disso, desprezamos as nossas más qualidades, odiamo-las, pois nos envergonham; por isso, procuramos aliená-las e, inconscientemente, as projetamos. Mas elas surgem no meio-ambiente, muitas vezes contra nós mesmos, de modo que, quando olhamos outras pessoas e ficamos escandalizados com os defeitos que vemos nelas, estamos, muitas vezes, apenas olhando para o espelho de nossa própria alma.

Para a saúde do nosso ego, é preciso ter de volta todas as tendências que inconscientemente repudiamos. E veremos que, depois, acontece uma coisa espantosa: as tendências negativas, que tanto relutamos em admitir como nossas, depois de reintegradas se equilibram harmoniosamente com as positivas e perdem o suposto colorido mau. Desse modo, tendências negativas de ódio e agressão só assumem natureza realmente má quando as alienamos, separando-as das tendências positivas de amor e aceitação, que as contrabalançam, e as atiramos no meio-ambiente onde, separadas do fator equilibrador, nos parecem ameaçadoras. E assim, quando erradamente imaginamos que esses aspectos maldosos existem no meio-ambiente, em vez de compreender que eles existem em nós mesmos como contrapeso de nossas tendências positivas construtivas, reagimos de maneira violenta a essa ameaça ilusória, somos levados a cruzadas brutais, a guerras para manter a paz, a inquisições para salvar almas, matamos bruxas para o próprio bem delas. Uma tendência negativa projetada e separada de seu contexto pode assumir natureza brutal e resultar em ações destrutivas, ao passo que, a mesma tendência, reintegrada e colocada ao lado da sua tendência equilibradora positiva, assume natureza branda e cooperativa. Nesse sentido, é imperativo que, para sermos semelhantes a Cristo, precisamos favorecer o Diabo (isto é, equilibrar essas tendências contrárias trazendo de volta para nós as tendências más que projetamos).

As tendências não só se equilibram quando lado a lado com seus opostos, mas, como todos os opostos, são necessárias umas às outras; o mal não só se harmoniza com o bem mas o próprio mal é necessário à existência do bem.

Lao Tzu: ‘Há diferença entre o sim e o não? Há diferença entre o bem e o mal? Devo recear o que os outros receiam? Tolice! O ter e o não ter surgem juntos, o difícil e fácil se completam, o longo e o curto se contrastam, o alto e o baixo descansam um no outro, o dianteiro e o traseiro se acompanham’.

E Chung-tzu: ‘Os que desejam ter o certo sem seu correlativo, o errado, ou um bom governo sem o seu correlativo, o mau governo, não percebem os grandes princípios do universo, ou a natureza da criação. É como imaginar o princípio positivo sem seu oposto, o princípio negativo, o que é absolutamente impossível. As pessoas, por não compreenderem, continuam a pensar, tolamente, que as coisas podem ser assim’.

Nunca reconheceríamos nossos aspectos negativos se não fossem nossos aspectos positivos. São como os vales e montanhas; uns não podem existir sem os outros, de modo que se tentamos acabar com os vales, na mesma operação destruímos as montanhas. Quando tentamos eliminar as tendências negativas, o que é impossível, apenas as projetamos; elas continuam sendo nossas e voltam para nos atormentar como sintomas neuróticos de medo, depressão e ansiedade. Separadas da consciência, assumem ares ameaçadores, fora de proporção com sua verdadeira natureza. Só conseguimos amenizar o mal favorecendo-o, reintegrando-o; se o reprimimos, damos-lhe mais força.

Fraser: ‘O ódio ao ódio fortalece o mal; a oposição reforça aquilo a que nos opomos. Eis aí uma lei cuja exatidão é igual à das leis matemáticas’.

Berdyaev: ‘Satanás rejubila-se quando nos consegue inspirar sentimentos diabólicos contra ele. É ele quem vence quando seus próprios métodos lhe são aplicados. A contínua denunciação do mal e de seus agentes só lhe estimula o desenvolvimento no mundo, verdade abundantemente revelada nos evangelhos, mas para a qual continuamos persistentemente cegos’.

Quando percebemos que sentimos ódio, na realidade não se trata de ódio puro, pois está envolvido com emoções positivas de amor e bondade; o ódio integrado assume tons mais suaves e nunca radicais. Muitos de nós passamos a vida achando que ninguém gosta de nós e julgando que isso é injusto porque nós não desgostamos de ninguém. Mas, estas são precisamente as marcas da projeção no Nível do Ego; achamos que o mundo nos odeia porque não reparamos na parte de nós mesmos que odeia o mundo.

Os atos agressivos e anti-sociais não resultam de uma tendência de agressão integrada, mas de uma agressão reprimida e projetada, pois, ao ser reprimida, a força de agressão aumenta consideravelmente. E sentimos a agressão projetada por nós mesmos como medo da agressão com que o meio-ambiente nos ameaça. O medo que temos dos outros ou do mundo é apenas o sentimento disfarçado de agressão que voltamos contra nós mesmos, por projetá-lo continuadamente contra o mundo. Raiva projetada é sentida como depressão. Se rejeitamos o mundo e reprimimos e projetamos essa rejeição, vamos sentir que o mundo nos rejeita, tem raiva de nós e, assim, nos sentimos deprimidos. Quem se sente deprimido deve perguntar a si mesmo: ‘Do que é que estou com tanta raiva?’

Sempre que você se sentir tímido ou com respeito exagerado por alguma pessoa, esteja certo de que você construiu para ela um pedestal com elementos tirados de seu próprio potencial, pois, em geral, ‘tanto a beleza como a sabedoria estão nos olhos de quem as contempla’.

As acusações que A faz contra B são trechos embaraçosos da autobiografia de A, pois insinuações e acusações se encaixam melhor em quem as profere. A aceitação de si mesmo, com suas qualidades e defeitos, é a solução do problema moral (eu sou assim, você é assim, elas são assim, eles são assim, tudo é assim).

Perls: ‘Uma projeção é um traço, atitude, comportamento ou sentimento que pertence a nosso ego mas que não é sentida como tal; ao contrário, é atribuída a coisas ou pessoas que se acham no meio-ambiente e, em seguida, experimentada como se fosse dirigida contra nós. Rejeitamos, inconscientemente, os outros e acreditamos que são os outros que nos rejeitam ou, inconscientes de nossas tendências para abordar os outros (de maneira inadequada), acreditamos que são eles que nos estão abordando dessa forma’.

A projeção é facilmente identificada: se uma pessoa ou coisa no meio-ambiente apenas nos informa, muito provavelmente não estamos projetando; porém, se nos afeta emocionalmente, é provável que estejamos sendo vítimas de nossas próprias projeções. O que vejo nos outros é qualidade dos outros se se limita a informar-me, mas é uma projeção minha se me afeta com força emocional. O primeiro passo para a cura é compreender que o que eu pensava que, sem motivo, o meio-ambiente está fazendo contra mim é, na verdade, alguma coisa que eu estou fazendo a mim mesmo, e pela qual sou responsável.

E Perls afirma que assumir a responsabilidade pela vida é fazer aumentar as capacidades e as experiências ricas. Devemos entender o quanto ganhamos ao assumir a responsabilidade por todas as nossas ações, por todos os movimentos que fazemos, todos os pensamentos que temos, todas as emoções e, mais ainda, assumir a responsabilidade por qualquer outra pessoa. Sejamos francamente o que somos, sem máscaras. Afirma que, enquanto combatemos um sintoma, ele se torna pior. Se você assumir a responsabilidade pelo que faz, pelos sintomas, principia sua integração, sua cura. Precisamos perceber os nossos opostos, os aspectos da nossa personalidade que nos desagradam, e recuperá-los ou seremos obrigados a receá-los. Não agir contra eles; apenas ter percepção deles, que são partes de nós mesmos, partes que rejeitamos e projetamos.

A solução, então, não consiste em livrar-nos de nenhum sintoma, mas em experimentá-lo conscientemente em toda plenitude e tentar aumentá-lo com vontade. Se estamos tensos, tornemo-nos ainda mais tensos; se nos sentimos culpados, aumentemos o sentimento de culpa, literalmente. Agindo assim, estamos assumindo nossa Sombra e reintegrando-a. Quando nos empenhamos integralmente em aumentar nossos sintomas, estamos, na verdade, colocando, juntas nossa Persona e nossa Sombra, recuperando as partes do ego que havíamos projetado. A adesão consciente a um sintoma nos liberta desse sintoma. Mas, não procuremos saber se o sintoma desapareceu ou não. A seu tempo, desaparecerá naturalmente, porque a psique é um mecanismo que se organiza espontaneamente e que, dada a correta informação de que ela está se prejudicando, cessará automaticamente de fazê-lo.

Não esquecer que nossos traços projetados serão traços que vemos nos outros e que não apenas nos informam como, sobretudo, nos afetam emocionalmente. De qualquer modo, as qualidades ou emoções projetadas, serão sempre o oposto daquelas que pensamos possuir. E, reintegrada a Sombra, ao ego é devolvida sua exata auto-imagem e, do Nível da Sombra, nos transferimos para o Nível do Ego.



8. O GRANDE FILTRO

A existência de toda civilização, cultura, sociedade e indivíduos depende diretamente da Faixa Biossocial, localizada entre o Nível Existencial e o Nível do Ego. Ali, os mais sérios dualismos são o do eu e do não eu (organismo e meio ambiente), da vida e da morte (passado e futuro). O homem se sente um organismo separado, existindo no espaço e durando no tempo. Enquanto no Nível do Ego nos interessamos pelo eu, na Faixa Biossocial nos interessamos pelo eu e o outro. Ali está a profunda influência, nos condicionamentos, da estrutura da linguagem, dos valores sociais, das regras inconscientes de comunicação etc; em suma, a influência dos mapas que a sociedade dá ao indivíduo para que este interprete a Realidade. Também estão ali as convenções sociais, sua lógica, leis e ética, a perspectiva religiosa básica e as suposições (crenças) acerca da Realidade, a estrutura familiar e os tabus, enfim, todos os convencionalismos que distinguem aquela sociedade e que o indivíduo, mais ou menos, assimila pelo fato de pertencer a ela. Em resumo, as regras com que o indivíduo aprende e responde ao mundo como ele acredita que os outros entendem que ele deve fazer. Aí, aprendemos a associar os objetos com as palavras convencionais com que a sociedade os representa (denomina). Aprendemos a agir como foi convencionado pela sociedade de modo que possamos ser mutuamente compreendidos.

Podemos ver agora que o mundo real, por ser vazio de conceitos, símbolos e mapas, é vazio de significado, o que quer dizer que nossos conceitos e idéias não são a realidade, como supúnhamos, e por isso não têm os significados que lhes atribuímos. Podemos dizer que é um território puro, não-dual, no qual todos os eventos, sendo mutuamente interdependentes e inseparáveis, não podem apontar para nada porque nada existe fora ou além dele para ser apontado, e, portanto, não têm significado. Por isso, quando pediram a um mestre Zen que fizesse um sumário da essência do Budismo, ele apenas disse: ‘Ah, isso!’, e se retirou.

As crenças, idéias, opiniões e conceitos que emitimos são também aspectos desse território dual e, em última análise, não significam nada. Acontecem na mente como as nuvens acontecem no céu. Dessa maneira, não é de estranhar que forcemos alguns dos aspectos da natureza, como pensamentos e idéias, a significar outros aspectos, como coisas e eventos. Essa fábrica de significados e valores é a única fonte de todos os nossos problemas fundamentais, lógicos e psicológicos. Pois, como dizem os sábios, nada é bom ou mau, justo ou injusto (a Bíblia também afirma isso quando diz que Deus não faz acepção de pessoas, que faz chover sobre os ímpios e os bons, igualmente) mas nosso pensar, nossa interpretação, é que o faz assim. Na visão dos sábios não existe nenhum problema na Vida porque nada está errado (a não ser na interpretação do homem). (de um cântico do bramanismo: ‘... do perfeito tirando o perfeito o que resta é perfeito...’).

Só podemos dar significados à Realidade fragmentando-a, porque dar significado é apontar, escolher, cortar, dividir, e é isso exatamente o que fazem a conceituação e a simbolização. Constrói-se um mapa apenas desenhando uma linha divisória. Essa é a função de todos os mapas sociais: estabelecer significados e valores pela divisão da Realidade. Um mapa só tem significado apontando e comparando. A significação que damos a tudo, dividindo verdadeiro e falso, significador e significado, agente e ação, causa e efeito, antes e depois, bem e mal, certo e errado e a todos os opostos em geral, é simples ilusão resultante da ilusão de que o mundo pode ser dividido. Percebemos o mundo cortando-o em fatias (dualismos) e depois acreditamos que o mundo sempre existiu assim. Nossas percepções passam a ser interpretações individuais que julgamos verdadeiras. Nossos mapas são ficções, como o são também a divisão da Terra em linhas de latitude e longitude, e do dia, em horas e minutos. Por mais úteis que sejam para a vida prática, trazem tremendos conflitos, como a separação entre a vida e a morte e a crença na existência de um mundo objetivo lá fora. E isso porque sofremos completa lavagem cerebral ministrada pela cultura, por nossos pais e outros bem intencionados que, por sua vez, sofreram idêntica lavagem.

Por isso, Castanheda afirmou que o mundo que conhecemos é apenas uma descrição que nos é imposta à força a partir do momento em que nascemos. Todos que entram em contato com uma criança são como professores que lhe descrevem o mundo incessantemente, até o momento em que a criança se torna capaz de percebê-lo tal como lhe descreveram (isto é, interpreta-o tal como lhe ensinaram). A realidade de nosso dia-a-dia consiste num fluir sem fim de interpretações das percepções que temos do mundo e que aprendemos a fazer em comum (de acordo com as regras da sociedade).

Os mapas sociais servem, basicamente, para modelar a percepção do indivíduo através de interpretações convencionais que têm algum significado para a sociedade em que vive e, desastrosamente, os aspectos da realidade, desse modo, são ocultados da consciência; são reprimidos, tornados inconscientes, e isso ocorre com todos os membros dessa sociedade, por força da adesão comum às interpretações que essa sociedade tem do mundo, devido à sua cultura, crenças, linguagem, lógica, ética e leis.

Assim, a Faixa Biossocial não passa de um filtro da realidade, um repressor da percepção existencial. Como disse o psicanalista Laing, se nossas percepções, sentimentos, temores, desejos, aspirações, imaginação, memória, sonhos, não correspondem ao convencionado pela sociedade, somos ‘postos fora da lei e excomungados’ (excêntricos).

Mas, mesmo fora da lei, essas experiências (interpretações ou percepções individuais) não desaparecem; vão para o subsolo onde formam o inconsciente biossocial. Pois, vimos que nossos mapas, palavras e símbolos sociais são quase universalmente dualísticos e, sempre, dualismo significa inconsciência.

Fromm: ‘O indivíduo não se pode permitir pensamentos ou sentimentos incompatíveis com a cultura de sua sociedade e é forçado a reprimi-los. Isto é, aquilo que é inconsciente e o que é consciente dependem, em geral, das regras estabelecidas pela sociedade. Pode-se afirmar que o inconsciente (unido ao consciente) sempre representa o homem integral, com todas suas potencialidades positivas e negativas; contém todas as respostas às perguntas que a existência lhe faz’. A própria linguagem também filtra (interpreta, dá significado) o mundo externo, o que é tremendo reforçamento dos dualismos.

Mapas significam dualismo e dualismo significa inconsciência. Os mapas interpretam a percepção mas, muitas vezes, o fazem em direções contraditórias. Nesses casos a interpretação do mundo sai ao contrário e, ao agirmos, obtemos resultados conflitantes. O efeito disso, na melhor das hipóteses, é dramático.

A Faixa Biossocial é vasta fábrica de distinções convencionais; nossos símbolos, mapas, idéias básicas e convenções sociais têm todos uma finalidade comum: determinam a maneira como devemos interpretar a realidade. Essa faixa determina o modo como agimos sobre nossas experiências a fim de socializá-las, simbolizá-las, avaliá-las, filtrá-las, dividi-las, criando regras implícitas que governarão nossos comportamentos posteriores. Ainda mais: nossas atividades sociais e de relacionamento são jogos, pois que dependem de regras que sempre se apóiam sobre diferenças (opostos). Exemplo: a diferença entre o Deus Salvador e o homem pecador traz uma regra pela qual o pecador só pode ser salvo se se aproximar de Deus; eis o Jogo da Religião. A distinção entre o sucesso glorioso e o fracasso humilhante traz uma regra pela qual, para termos valor, precisamos ter sucesso; aí está o Jogo da Competição.

Mas, o que acontece se estabelecemos distinções inadequadas? Elas levarão a regras contraditórias que, por sua vez, levam a jogos que penalizam todos os jogadores. Tais jogos têm regras, que podem ser inconscientes, e que fazem com que nunca haja vencedores. Uma sociedade construída sobre essas regras e jogos é terreno ideal para neuroses e psicoses.

Watts: ‘A sociedade, tal como é, prepara armadilhas para todas as crianças desde a mais tenra idade. Inicialmente, ensina-se à criança que ela é um agente livre, um ser independente nos pensamentos e nas ações. Ela ‘aceita’ esse ‘faz de conta’ porque não tem como deixar de pertencer à sociedade em que nasceu e porque não tem meios de resistir a essa doutrinação social, continuamente reforçada por prêmios e castigos, e construída sobre a estrutura básica da linguagem que a criança está aprendendo. A doutrinação é o tempo todo incutida com observações como: ‘Uma criança como você não pode fazer uma coisa dessas!’ Ou, ‘Não imite os outros; seja você mesma!’ A vítima inocente dessa doutrinação não compreende a contradição. Dizem-lhe que precisa ser livre, e uma pressão irresistível é feita sobre ela para fazê-la acreditar que não existe pressão. A sociedade da qual ela faz parte e da qual necessariamente é um membro dependente, define-a sempre como um membro independente.

Em segundo lugar, ela recebe ordens, como agente livre que lhe dizem que é, para fazer coisas que só serão aceitáveis se forem feitas voluntariamente! ‘Você precisa amar papai e mamãe!’, dizem os pais e irmãos. ‘Todas as crianças boazinhas amam sua família e fazem coisas por ela sem que seja preciso lhes pedir!’ Em outras palavras: ‘Exigimos que você nos ame porque quer amar-nos, e não porque nós dizemos que deve fazê-lo’. A sociedade joga portanto um jogo com regras auto-contraditórias. Como resultado, as crianças estão quase sempre confusas.’

Mas as contradições não terminam aí. Está nos próprios fundamentos das instituições sociais, impondo-se também aos adultos.

Afirma Watts: ‘Assim, é difícil evitar a conclusão de que estamos admitindo uma definição insana da sanidade.’

E Nietzsche: ‘A insanidade em grupos e partidos, nações e épocas é a regra. Em suma, a sociedade que conhecemos está louca’.

Laing: ‘As crianças não são tolas, mas nós as transformamos em imbecis como nós mesmos. Desde o nascimento, quando se vê diante da mãe moderna, é sujeita às forças da violência, chamadas amor, como foram, antes dela, seus pais, os pais de seus pais etc. Essas forças se concentram principalmente em destruir a maior parte de suas potencialidades e, de modo geral, essa intenção é bem sucedida. Na época em que atinge seus quinze anos, vemo-nos ao lado de um ser como nós mesmos, uma criatura meio enlouquecida, mais ou menos ajustada a um mundo louco. Em nossa era atual isso é normalidade. A condição de alienação, de estar adormecido, inconsciente, fora de si, é a condição do homem normal. A sociedade dá grande valor ao seu homem normal. Educa as crianças para que se tornem absurdas e, assim, se normalizem. Os homens normais já mataram talvez cem milhões de semelhantes normais nos últimos cinqüenta anos.’

J. Henry, antropólogo, dá exemplo de um jogo social universal de regras auto-contraditórias: se fizermos distinção entre eu e o não-eu, o que nossa sociedade faz o tempo todo, isso nos levará a uma regra totalmente equivocada pela qual, num egoísmo selvagem, podemos pisotear os outros na busca do nosso êxito pessoal. Esse jogo é incutido nas crianças desde tenra idade, e justamente por aqueles que deveriam educá-las para uma qualidade de vida melhor. É o caso do aluno que não responde corretamente a uma pergunta do professor. Enquanto outras crianças levantam a mão, o aluno fica mentalmente paralisado e infeliz. Após repetir a pergunta várias vezes, o professor volta-se para a classe: Quem pode dizer a ele qual é a resposta certa? E um colega dá a resposta certa. O fracasso do aluno possibilitou sucesso ao colega; a humilhação de um é a glória do outro. Essa é a condição padrão de todas as nossas escolas. Para um índio dakota, o procedimento do colega e do professor é de uma crueldade sem nome, já que, conseguir o sucesso próprio valendo-se do fracasso alheio é uma forma de tortura estranha a essas culturas não competitivas. A humilhação infligida ao menino é interiorizada pelo resto da vida. Experiências dessa natureza fazem que todos os homens educados em nossa cultura sonhem todas as noites, não com a felicidade do sucesso, mas com o medo do fracasso, temerosos de sofrerem o pesadelo da humilhação, como se fosse humilhação não ter êxito numa atividade. Numa sociedade em que a competição é o motor da ação, não se pode ensinar às pessoas a se amarem umas às outras (não há amor, como afirma Krishnamurti). A escola assim está ensinando ódio, desamor, sem, contudo, dar a impressão de que é isso que está fazendo, pois nossa cultura não tolera a idéia de que as crianças se odeiem e até mesmo ‘exige’ que elas se amem. Mas o que ensina é outra coisa; usa, portanto, regras auto-contraditórias, fazendo um jogo sem vencedores, que resulta em seres humanos frustrados, infelizes e neuróticos.

É uma terrível contradição, pois ninguém fracassa mais do que quem deseja o sucesso. Enquanto isso, o homem desconhece que o eu e o meio-ambiente são o mesmo processo e, portanto, que o sucesso do meio-ambiente é, em última análise, o seu sucesso. É impossível ao homem ser plenamente feliz enquanto o meio-ambiente não o for também. Somos enganosamente levados a participar desse jogo sem que ninguém nos ensine que nunca poderemos vencê-lo. Acreditamos, então, que o insucesso é fruto de nossa incompetência. Repetidas vezes voltamos à questão sem êxito, não por não encontrar as respostas certas, mas porque elas não existem. E, assim, muitas vezes somos levados a neuroses, e até a psicoses, à procura da resposta inexistente. A dificuldade, porém, está na confusão de nossos pensamentos porque, em vez de nos ensinarem regras corretas, pais, avós, irmãos, todos, inconscientemente, não o fazem porque também foram vítimas da mesma educação condicionante e errada.

Tais problemas nos atingem pelo fato de pertencermos à sociedade. Eles se originam da nossa cultura, da convenção gramatical da nossa linguagem que separa a natureza em substantivos e verbos e em sujeitos e objetos; de nossas leis, lógica e ética; de nossos papéis, nosso sistema de valores e da filosofia social popular. Vivendo buscando o sucesso no amanhã, nunca seremos capazes de desfrutar nem o dia de hoje nem o de amanhã, porque sempre tememos o fracasso, de modo que quanto mais conquistamos sucesso mais temos medo que o fracasso nos atinja.

Portanto, a Faixa Biossocial é fonte de numerosas dificuldades emocionais e intelectuais, das neuroses e da insanidade coletiva. A maneira condicionada com que representamos a Realidade (resultante da linguagem, da lógica e dos mapas sociais simbólicos), não retrata a Realidade; interpreta-a, e aí está a razão de todos os conflitos e sofrimentos do ser humano.

Visto que nossa ação é ação do próprio universo, não tem sentido tentar agir contra o universo, pois não estamos fora dele para podermos atingi-lo. Mas, quando interpretamos a Realidade, ficamos na ilusão de que nada temos com o meio ambiente e que, por isso, podemos agir contra ele, para daí tirar vantagens pessoais. Essa percepção equivocada leva a regras auto-contraditórias de jogos sem vencedores. Daí os absurdos que praticamos contra a natureza e contra os semelhantes. E não percebemos o erro porque estamos hipnotizados pelo conhecimento dualístico. Dizer que um meteoro caiu na lua, é o mesmo que dizer que a lua caiu no meteoro; que o trem se move sobre a terra é o mesmo que dizer que a terra se move sob o trem. Há aqui apenas uma ação, mas tentamos colocar nela dois pontos de vista opostos ao mesmo tempo, coisa que nossa linguagem e nossa lógica não estão preparadas para fazer, gerando, com isso, idéias aparentemente contraditórias. Desse mesmo modo, fazemos erradamente distinção entre vida e morte, dividindo a unidade vida-morte, fato que conduz à regra autocontraditória pela qual temos de lutar com unhas e dentes para evitar a morte, e continuar vivendo.

Não há nenhum mal em fazer distinções e divisões, dualismos, desde que conheçamos a Realidade que estamos dividindo. Mas, como não a conhecemos, nossas distinções são inadequadas e nos conduzem a contradições; então, maya se transforma em loucura, porque não percebemos que nossa interpretação da Realidade é totalmente equivocada.

Sullivan: ‘A natureza nada sabe sobre as distinções que fazemos. Afinal, as distinções que criamos são uma característica psicológica nossa’. Estabelecendo significados, nossos mapas sociais dividem a natureza, que é una, e, desse modo, interpretamos erradamente nossas percepções (que são) corretas.



9. O HOMEM INTEGRAL

Sendo a divisão do organismo em mente e corpo que nos leva do Nível Existencial para o Nível do Ego, é exatamente recompondo essa unidade que nos sentiremos no organismo total corpo-mente que é o Nível Existencial. A transferência para este nível pode ser temporariamente efetuada pelo simples descanso num lugar tranqüilo, expulsando todos os conceitos mentais a respeito de nós mesmos e sentindo plenamente nossa existência básica. Ter essa ligação de modo mais ou menos permanente requer, quase sempre, alguma forma de terapia, como a meditação. Qualquer abordagem que tais terapias façam pode ser expressa como: para cada problema ou nó mental, existe um nó corpóreo correspondente, e vice-versa, visto que corpo e mente não são dois. Assim, traumas físicos podem resultar em problemas psicológicos, e vice-versa. A terapia dirigida ao corpo pode desatar um nó mental e vice-versa. Aí está a causa de espasmos e bloqueios em músculos, grandes quantidades de energia puxando em direções opostas. Enquanto na mente há uma guerra de atitudes, no corpo há uma guerra de músculos. A pessoa que reprime seu interesse ou excitação terá de reprimir também a respiração, enrijando diafragma e estômago e comprimindo maxilares. Os nós mentais e os físicos surgem ao mesmo tempo.

Uma das terapias para a integração da unidade corpo-mente que leva ao Nível Existencial, consiste em experimentar o organismo como um todo no qual mente é corpo e corpo é mente, coisa que muitos acham difícil de compreender porque estamos acostumados a imaginar a mente na cabeça, e achamos que o corpo se limita a acompanhar-nos. Mas, nós não estamos no corpo; nós somos o corpo.

No hata yoga (ginástica) dá-se atenção especial à respiração; visto ser uma função que une corpo e mente; ficam unidos o controle mental consciente, a atenção, e os processos corpóreos inconscientes, a respiração. Esta é a chave para união mente e corpo, resultando num organismo físico integrado. Já o raja yoga (meditação) tem por meta a união do organismo ao meio-ambiente, com o objetivo de restaurar o Nível da Mente (pura, total).

Assim, R. May, psicólogo existencial, sustenta que ego separado e corpo alienado, bem como outras fragmentações, são projeções ou divisões do organismo total produzidas pelos dualismos, divisões que, integradas, levam ao Nível Existencial.

E o dualismo terciário, gerador da ilusória divisão mente e corpo, é a base absurda e irrestrita dos campos da educação, atletismo, psicologia e medicina! A educação treina a mente, o atletismo treina o corpo; a psicologia cura a mente, a medicina cura o corpo. Desse modo, o antagonismo, entre educação e atletismo, e entre psicologia e medicina, é um dramático reflexo da divisão mente-corpo, produzido pelos habitantes desse nível; e, por isso, os resultados ineficazes que tais campos têm obtido. Compreende-se, assim, porque as ciências psicológicas e a medicina psicossomática, que procuram restaurar a unidade mente-corpo, até hoje ainda não foram reconhecidas como merecem.

Vimos que a descida do Nível da Sombra para o Nível do Ego implica numa expansão progressiva da identidade, resultando numa auto-imagem mais precisa, agora com todas as facetas da psique, antes consideradas alheias e ameaçadoras. O mesmo ocorre na descida do Nível do Ego para o Nível Existencial: tornamos a expandir nossa identidade para incluir todos os aspectos de nosso organismo total que, antes, nos pareciam estranhos e ameaçadores. Recebemos de volta nosso corpo e nos tornamos a unidade psique-soma, mente-corpo.

Perls: ‘O propósito consiste em alargar os limites que supomos de nós mesmos para incluir todas as atividades orgânicas’ (para sermos o organismo). Enquanto no nível do Ego temos raiva, no nível Existencial somos a raiva’ (é o que ensina Krishnamurti). Para isso, devemos fazer contato com nosso corpo, percebê-lo, senti-lo, bem como suas emoções de raiva, alegria e pesar.

Lowen: ‘O corpo é rejeitado quando se torna fonte de dor ou humilhação em vez de fonte de prazer e orgulho. Nessas condições, a pessoa se recusa a aceitar o corpo (ou parte dele) ou a identificar-se com ele.’

Deite-se, relaxe, feche os olhos e perceba seus impulsos, energias, tônus muscular e, o mais importante, a respiração. Perceba os lugares onde há bloqueios, pouca ou nenhuma sensação, um branco. Esses são os pontos de projeções corpóreas (equivalentes físicos de projeções mentais de Sombra; por projetá-los, quase não os sentimos). Concentre sua atenção, tente percebê-los cada vez mais. Onde sentir tensão ou retesamento, sinta-os mais e mais, exagere a sensibilidade, contraia e relaxe e descarregue-os na atividade apropriada que é o que o corpo quer fazer: chorar, rir, gritar, bater, tremer, saltar de alegria etc. Enfim, sinta-se integralmente corpo e mente, até sentir, afinal, não que você existe em seu corpo, mas que você existe como corpo, que você é corpo.

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(Não podemos escolher nosso destino, pois a escolha não é nossa; mas podemos (?) escolher (?) nossa atitude para com ele, o que não altera o destino, mas altera grandemente nossa atitude frente à vida).

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Aceitando e trabalhando a ansiedade nascida com a divisão vida e morte, dualismo secundário do ser e do não-ser, evita-se que ela seja empurrada para o dualismo terciário (ego e corpo) e quaternário (persona e sombra). Aceitando minha inevitável morte, não serei tentado a escapar para uma falsa imortalidade de idéias. Terei, então, descido do Nível do Ego para o Nível Existencial.

No Nível Existencial, tem origem um importante movimento: a religião exotérica. Tanto ela como o existencialismo nascem, direta e igualmente, da reação do homem aos dualismos primário (eu e não-eu) e secundário (espaço e tempo, vida e morte). Aí, onde o existencialismo manipula o dualismo ‘eu e o outro’ tentando suavizar seus efeitos ao fazer que o eu participe com o outro, a religião exotérica manipula esse dualismo tentando apaziguar o Grande Outro (Deus). E onde o existencialismo manipula o dualismo secundário da vida e da morte, encarando a morte, a religião o manipula negando a morte. O Nível Existencial é, assim, o nível da religião exotérica, das tentativas do homem para lançar, sobre o dualismo primário, uma ponte que o ligue com o Grande Outro onipotente, onisciente, onipresente.

H. Smith: ‘Schuon traça a linha entre o esotérico e o exotérico. A diferença fundamental não está entre as religiões; a diferença não é uma linha que divide verticalmente hindus de muçulmanos, de budistas, de cristãos etc. A linha divisória é horizontal e ocorre apenas uma vez, cortando de um lado a outro todas as religiões históricas. Acima, está o exoterismo (superficial, de muitos, popular, recheado de crenças, com divisões indicadas pelas diferentes denominações); abaixo, o esoterismo (profundo, de poucos, a essência, sem nenhuma divisão, no qual todas as experiências são, em qualquer época e em qualquer lugar, iguais).’

Essa linha é o dualismo primário, a divisão entre o eu e o não-eu. Exotéricas são as religiões históricas, dualistas, populares onde o modo de conhecer é simbólico, dual. Esotéricas são as religiões (escolas de experimentação) monísticas, onde o modo de conhecer é não-dual.

Acima do dualismo primário está o Nível Biossocial-Existencial; abaixo, está o Nível da Mente. Todos que experimentam o Nível da Mente e depois voltam ao Nível Biossocial-Existencial, terão de falar dessa experiência religiosa com os únicos símbolos que conhecem, isto é, os símbolos fornecidos pela sua faixa biossocial (cultura, linguagem etc). A diversidade das religiões exotéricas, portanto, é resultante da diversidade das ideologias e culturas. Dessa forma, Jesus, Schroedinger e Shankara, que experienciaram a Mente, falaram dela em termos diferentes, que não refletiam diferenças na Mente, mas diferenças nas interpretações simbólicas da Mente. Schroedinger usou termos da ciência física, Jesus, da teologia hebraica e Shankara, da ciência hindu do Eu; mas a percepção da Realidade é sempre a mesma. No Nível Existencial, as religiões ainda divergem, são diferentes; mas, no Nível da Mente, elas convergem e são uma só.

Muitos, particularmente os cristãos, não admitem a afirmação de que todas as religiões são iguais na sua essência esotérica, porque isso implica em que o Cristianismo não é o Único Caminho. A crença reinante é que a salvação só é concedida àqueles que aceitam a realidade histórica de Jesus, o Cristo (e vejam, pesquisadores há, ainda hoje, que se opõem a considerá-lo personagem histórico). Mas, colocar Jesus na história é colocá-lo no passado e o passado não existe; Cristo é, sempre, acima da historia, acima do tempo, eterno. Está escrito: ‘antes que Abraão fosse, eu sou’. E mais: ‘E disse Deus a Moisés: Eu sou aquele que sou. Assim dirás aos filhos de Israel: Eu Sou me enviou a vós’. Cristo não é do tempo nem do espaço e, assim, não pode ser propriedade de qualquer grupo religioso. E ainda: ‘Os dons são diversos, mas o Espírito é o mesmo. E há diversidade nos serviços, mas o Senhor é o mesmo. E há diversidade nas obras, mas o mesmo Deus é que opera tudo em todos’.

A questão da unicidade ou diversidade das religiões é relativa ao modo de conhecer: o modo dualístico nos dá as religiões exotéricas, diferentes entre si; o não-dualístico nos dá as esotéricas, todas idênticas. O Nível Existencial é o nível exotérico, dos muitos ‘eus’ diferentes que conhecem, simbolicamente, muitos deuses diferentes, enquanto o Nível da Mente é o nível esotérico, o nível da Divindade, da percepção não-dual em que muitos ‘eus’ e muitos deuses se fundem no Deus Único, intemporal, onisciente e onipresente.

Enquanto as terapias do Nível do Ego procuram desfazer a divisão persona e sombra, para restaurar o ego integral, e as do Nível Existencial procuram desfazer a divisão psique e corpo, para restaurar o organismo integral, o misticismo vai além, pois procura desfazer a divisão primária entre o organismo integral e o meio-ambiente (eu e não-eu), para dar a unidade universal, o nível da Mente. Se restaurarmos, em nós, um nível, será mais fácil transcendê-lo, pois nossas energias não estarão mais ocupadas com os problemas desse nível.

Se alguém procura ir além do Nível Existencial, deverá saber que esse nível é o mais profundo a que se pode descer sem renunciar ao conhecido, ao familiar. Mas, se estiver preparado para conhecer Deus em vez de apenas crer em Deus ou adorá-lo, para ser o mundo em vez de lutar contra o mundo, para aceitar morrer agora (pela meditação que traz o esquecimento do passado) em vez de deixar a morte para depois, estará pronto para iniciar o Caminho do Retorno, a Religião da Eternidade, a descida ao nível da Mente.

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(Todo bem ou mal psicológico, em geral, origina-se de uma maior ou menor percepção da Divindade. E, sendo psique e soma uma unidade, todo mal ou bem fisiológico tem a mesma explicação).

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10. TERRA DE NINGUÉM.

Entre o Nível Existencial e o Nível da Mente está a porção do espectro mais misteriosa e mal compreendida, as Faixas Transpessoais, onde se pode ter visões de anjos, ‘viagens astrais’, percepções de vidas passadas ou do futuro, extra-sensoriais, clariaudiência, clarividência. Essas faixas não foram amplamente estudadas porque: amedrontam a maioria das pessoas; a psiquiatria as considera sintomas de psique perturbada; os iluminados as consideram apenas estorvos que atraem e distraem os que buscam Deus.

Para lá vai quem desfez incompletamente o dualismo primário e, por isso, ainda leva consigo os mapas do nível Biossocial e do nível do Ego, que determinarão como irá interpretar esse território. Muitos crêem que tais faixas não existem, ou são patológicas e, se ali entram alguma vez, temem logo pela saúde mental, como sugerem diagnósticos equivocados de doenças mentais. Embora os psiquiatras não descubram loucura nesse nível, inventam-na, ao defini-la assim. Nessas faixas estão as formas mais puras do Misticismo Tibetano e o inconsciente coletivo, de Jung.

Jung: ‘A outra parte do inconsciente (além do pessoal) é o inconsciente impessoal ou coletivo... O conteúdo do inconsciente coletivo pertence à totalidade do gênero humano. Esse conteúdo não se adquire durante a vida, mas é o produto de formas e instintos congênitos (da genética)... A criança possui, recebido como herança de seus antepassados (geneticamente, portanto), um cérebro altamente desenvolvido, depósito da atividade psíquica de toda a raça humana. Traz, portanto, com ela um órgão pronto para funcionar da mesma maneira como funcionou durante toda a história humana. No cérebro, os instintos são pré-formados, como são pré-formadas as imagens primordiais (arquétipos) que sempre constituíram a base do pensamento do homem... Existem tantos arquétipos quantas situações particulares existem na vida. Uma repetição interminável gravou tais experiências em nossa psique, porém não em forma de imagens cheias de conteúdo, mas formas sem conteúdo (os arquétipos) que representam a possibilidade de certo tipo de percepção e ação. Quando ocorre uma situação que corresponde a determinado arquétipo, esse é ativado’ (à semelhança das superposições coerentes, da física quântica).

Jung acreditava que só ocorrem enfermidades se o indivíduo se recusa a estabelecer relação consciente com as imagens e mitos ativados pelo arquétipo, se não lhes procura o significado para si mesmo. Se os considera, os arquétipos serão guias poderosos, significativos e benéficos para sua vida. Se os evita, o resultado é a neurose.

Lama Govinda: ‘(A Divindade não pode ser conquistada) por convicções, ideais e metas baseadas no raciocínio, mas através da penetração consciente nas camadas da nossa mente que não podem ser alcançadas nem influenciadas por argumentos lógicos (raciocínio) nem pelo pensamento. Essa penetração só é possível pelo poder coercitivo da visão interior (meditação) cujas imagens primordiais ou arquétipos são os princípios formadores de nossa mente. ’

P.W.Martin: ‘(Jung descobriu que) o inconsciente está, hoje, produzindo, no consultório do psicólogo, símbolos que, há muito tempo e muito longe daqui, haviam trazido nova energia e novas introvisões... e por meio dos quais muitas pessoas estavam experimentando uma poderosa renovação da vida.’ Isso significa que nossas experiências nas Faixas Transpessoais nos proporcionam entusiasmo e motivação capazes de renovar nossas vidas.

Jung: ‘O pensamento é apenas uma equação da qual só tiramos o que nela colocamos. Essa é a maneira do intelecto trabalhar. Mas, além disso, há, na psique, imagens primitivas, símbolos mais antigos do que o homem histórico, entranhados nele desde os mais remotos tempos, e que, ultrapassando todas as gerações e persistindo eternamente, constituem a base da psique humana. Só conseguimos viver uma vida plena quando estamos em harmonia com esses símbolos. A sabedoria é uma volta a eles. Não se trata de crença ou de conhecimento, mas da concordância do nosso pensamento com as imagens mais primitivas do inconsciente.’

E Jung pergunta, qual é o mito segundo o qual vivemos? Pois o conjunto de imagens mitológicas vêm do inconsciente coletivo o qual, entre outras coisas, não foi distorcido pelas convenções, linguagem e lógica sociais, nem pelas ilusões de nenhum culto ou indivíduo. A linguagem mitológica é unificadora e integrativa, e não dissociativa e analítica, como é o pensamento e, assim, reflete com mais clareza e verdade a realidade do universo, a interdependência e interpenetração de todas as coisas e fenômenos. Não nos esqueçamos de que o mito é a abordagem mais próxima da verdade absoluta que se pode pôr em palavras. Por isso, dá ao homem uma idéia de sua universalidade, uma idéia direta de sua unidade bem-aventurada com toda a criação, fato que coloca o ser humano a grande distância dos problemas mesquinhos do dia-a-dia e no mundo mágico do transpessoal. O mito, conforme Jung, é a representação mais próxima da Realidade do que as que encontramos em qualquer outro sistema simbólico.

Mesmo que nas Faixas Transpessoais não estejam eliminados todos os dualismos, em parte estão suspensos, e é nisso que reside o seu incrível poder renovador da vida. O hindu chama essas Faixas de ‘nível da bem-aventurança pura’ porque aí a guerra dos opostos está, temporariamente, suspensa.

As faixas podem ser experimentadas diretamente, como na ‘viagem astral’, clarividência etc. Como afirmou Jung: ‘Os místicos são pessoas que têm experiência particularmente vívida dos processos do inconsciente coletivo. A experiência mística é a experiência dos arquétipos’.

É preciso corrigir essa afirmação de Jung: certas experiências místicas menores são a experiência dos arquétipos, pois o verdadeiro misticismo está além dos arquétipos, no Nível da Mente, na qual todos os arquétipos se desfazem. Por isso, o hinduísmo faz distinção entre o samadhi sarvikalpa (pequeno), a percepção bem-aventurada do inconsciente coletivo, onde se obtém a compreensão da Divindade, pois todos os dualismos são, mais ou menos, suspensos enquanto se contempla o Real, e o samadhi nirvikalpa (grande), a percepção direta da Divindade, onde todas as dualidades e imagens são totalmente dissolvidas. No primeiro contemplamos a Realidade; no segundo, somos a Realidade. Esta é a verdadeira experiência mística.

Os arquétipos, pois, como formas primordiais sem conteúdo, representam o primeiro ponto em que, durante sua mobilização ou surgimento, nossa Energia pura e informe principia a tomar uma forma. Mais tarde, essa forma captará conteúdo no nível Biossocial-Existencial, como imagens, idéias, mapas em geral, que são a primeira fonte dos dualismos que reativamos e cristalizamos em todos os momentos da vida, sobretudo o dualismo primário. Na psicologia budista, os arquétipos são as sementes das forças (maya) que manifestam o universo por tornar objetiva a Mente.

Portanto, nas Faixas Transpessoais ainda continuam presentes os dualismos, especialmente o primário, mas mais ou menos suspensos. E os arquétipos são os mais fortes indicadores da consciência cósmica, num sentido e, ao mesmo tempo, noutro sentido, seus primeiros destruidores. Assim, Eliade afirma que ‘a Yoga se esforça por queimar os arquétipos, pois eles são a última barreira entre o homem e Deus’.

Ter experiências nessas Faixas é o começo da transcendência do ego, visto que os arquétipos são símbolos coletivos ou transpessoais; ali, sentimos, dentro de nós mesmos, um sinal daquilo que está além do ego. As Faixas são o ponto em que o homem principia a ‘tocar’ Deus. Não compreende ainda que ele mesmo é Mente, mas percebe que existe dentro dele algo que está além do ‘eu’. Por isso, não é difícil compreender o imenso poder curativo das autênticas terapias relativas às Faixas Transpessoais. O primeiro e maior benefício é a suspensão de todos os dualismos (exceto alguma forma do dualismo primário). Isso inclui, portanto, a extinção dos dualismos de persona e sombra e de psique e soma, fato que elimina, automaticamente, as neuroses individuais do Nível do Ego e do Nível Existencial. Por isso mesmo, a prática sistemática de meditação é altamente terapêutica para as enfermidades psicológicas. Reconhecendo a dimensão real da nossa identidade, que vai muito além do ego individual e separado, uma pessoa facilmente se livrará de suas neuroses individuais. Nossa percepção começa a transferir-se para uma perspectiva transcendental, universal. Quando esse processo se acelera, o homem perde o sentimento de ser um eu separado e, portanto, já não fica mais apegado aos problemas puramente pessoais. Percebe que seus medos, ansiedades, depressões e conflitos deixam de existir, e começa a vê-los com clareza e com a mesma indiferença com que vê as nuvens flutuando no céu. Agora, pode olhar para seus complexos emocionais, o que significa que deixou de usá-los como alguma coisa com que podia olhar para a realidade e, assim, distorcê-la. E o fato de poder olhar para eles, significa que já não se identifica com eles.

As Faixas Transpessoais são chamadas Testemunha Supra-individual, pois quem as experimenta é capaz de observar o fluxo do que é, sem interferir, sem julgar, sem manipulá-lo de maneira alguma. Apenas testemunha o fluir dos eventos, dentro e fora de si, de modo indiferente, porque não mais se identifica com nenhum deles, com nenhum conteúdo mental. Em outras palavras, quando compreende que sua mente e seu corpo podem ser percebidos objetivamente (como objetos), o indivíduo imediatamente percebe que eles não constituem seu eu subjetivo. Como disse Huang Po: ‘O percebido não pode perceber’. Esse estado de testemunhar é o fundamento de toda prática budista e do Jnana Yoga hindu (ioga da meditação). Ou, como disse Maslow, ‘é o transcender do espaço e do tempo’. A Testemunha é um estado no qual se pode sentir a Realidade, mas ainda contém dualismo primário, a testemunha e o testemunhado. Quando esse dualismo é completamente destruído, testemunha e testemunhado se tornam um só, e despertamos para a Mente. A Testemunha é altamente terapêutica e pode agir como ponte para nos levar ao nível da Mente, isto é, à iluminação.

Como as Faixas Transpessoais não levam tão longe como é o nível da Mente, quem aí permanece, na felicidade do eu transpessoal, é chamado, no Zen, de ‘herege vazio’. Nessas Faixas, o indivíduo testemunha a Realidade. No nível da Mente, ele é a Realidade. Na Mente, não há mais um mundo de subjetividade interior enfrentando um mundo de objetividade exterior. Os dois mundos se fundem radicalmente e entende-se que nunca estiveram separados. O indivíduo vai ao fundo do próprio ser para descobrir quem está realizando o ato de ver e descobre que, em lugar de um eu pessoal separado, quem realiza o ato de ver é Aquele mesmo que é visto, o que R.H.Blyth chamou de ‘a experiência do universo pelo universo’. Como ensina o Vedanta, o Vedor se identifica com todos os mundos vistos (o Vedor é tudo o que ele vê).

Ramana: ‘A suposição de que o Vedor é diferente do Visto está na mente. Para os sábios, o Vedor é o Visto’. O que é visto é aquele mesmo que está vendo.

As paranormalidades, portanto, são uma suspensão incompleta do dualismo primário; o eu ainda é sentido como separado do mundo, porém a percepção é aumentada. As paranormalidades ocorrem, assim, sempre fora do nível da Mente e, portanto, não têm nada que ver com o misticismo puro. A Mente não pode ser provada porque não existe lugar fora da Mente que nos permita medi-la. Assim, a ciência nunca poderá provar o Nível da Mente, pois prova exige verificador e verificado, dualismo, e ali não há dualismos. Ali, a ciência não tem utilidade alguma. Mas a Mente pode ser provada experimentalmente e por qualquer um que siga o Caminho (a física quântica veio concordar com isso).

Os iluminados afirmam, sempre e universalmente, que os siddhi, ou poderes paranormais, devem ser evitados pelo sábio, porque, por trás da intenção de usá-los, está a ânsia pelo poder do ego amedrontado, sempre procurando aumentar sua capacidade de dominar o meio-ambiente. Mas, quando somos o meio ambiente, por quê dominá-lo? Os únicos em condições de utilizar os siddhi são justamente os sábios, que não se interessam em usá-los.

Em resumo, nosso ponto de partida é a só-Mente, a Subjetividade Absoluta, que não conhece esta página olhando-a de longe, mas sendo esta página. Tudo que observo é o Eu mesmo que está observando, e que está sendo observado, e essa é a condição do mundo real antes da divisão ilusória entre eu e não-eu. O dualismo sujeito-objeto se dissipa na só-Mente e percebe-se que nunca existiu, de modo que os termos subjetivo e objetivo se tornam incoerentes. Há simplesmente um processo de percepção não-dual em que ‘o observador é a coisa observada’. Não podemos ver a Mente porque ela é a Vedora; no entanto, nunca estamos vendo coisa alguma senão a própria Mente, pois ela é tudo o que existe.

Vimos que, devido aos dualismos, nossa identidade se transfere do universo para o organismo, do organismo para o ego e do ego para partes do ego. Como cada dualismo-repressão-projeção torna inconscientes certos processos mentais, segue-se que cada nível é produtor em potencial de uma classe específica de enfermidades. Interpretamos o universo como um múltiplo de objetos lá fora separados do eu-sujeito aqui dentro e opostos a ele. Contudo, esse eu, o ‘homenzinho aqui dentro’, é uma ilusão porque, embora ele me pareça ser o sujeito que vê, conhece e sente o universo, é, na verdade, outro simples objeto de nossa percepção. Tudo que nós podemos olhar ou perceber é um objeto, um objeto percebido, um objeto de percepção; ele nunca é o sujeito que está olhando.

Meu eu supostamente subjetivo não é um sujeito verdadeiro; é um pseudo-sujeito, apenas outro objeto. É uma coisa que posso perceber e, portanto, não é o verdadeiro Percebedor! O verdadeiro Percebedor, a Mente, não pode ser visto porque é ele que está realizando o ato de ver. Em outras palavras, objetivei o que sou, tentei ver meu verdadeiro Eu como objeto e, imaginando ter sido bem sucedido, desfiz minha identidade original com o universo inteiro e liguei-me a um conjunto particular de objetos, a um pseudo-sujeito que, agora, imagino estar enfrentando um mundo estranho e ameaçador de objetos lá fora. Portanto, cada nível do espectro é um nível de identidade equivocada, de falsa subjetividade. Em cada nível de consciência, meu sentimento de eu é apenas minha ilusória identificação com uma metade do dualismo que criou esse nível.

Quando um dualismo se desfaz, em qualquer nível, os elementos desse nível, que antes ameaçavam o indivíduo, são percebidos como simples aspectos de sua própria consciência que ele havia dividido, reprimido e projetado. A inversão desse processo, em qualquer nível, simplesmente desfaz, cura, toda classe de doenças desse nível.

As necessidades, em qualquer nível, são indicação clara do potencial de crescimento nesse nível, uma indicação do que, nesse nível, falta ao indivíduo. Os sonhos, de qualquer nível, sinalizam o que nos falta, numa íntima indicação simbólica dos aspectos do universo com os quais já perdemos a identificação original. (Por isso, talvez, o interesse por determinada religião, crença, filosofia ou misticismo, pela busca da transcendência do eu. Os sonhos acima das Faixas Transpessoais ligam-se às convenções ou preocupações sociais; os abaixo, começam a ser universais, existenciais ou arquetípicos).

Sendo cada nível um conjunto de objetos que confundimos com o sujeito real, isto é, uma diminuição progressiva de nossa identidade pessoal, do pseudo- sujeito, a terapia, em cada nível, consiste em trazer plenamente à consciência esse pseudo-sujeito. Percebendo-o, então, como objeto, compreende-se que ele não é um eu-sujeito real. Assim, o indivíduo abandona sua identidade com esse pseudo-sujeito e desce um nível em busca de uma identidade mais abrangente. Isso restaura o dualismo desse nível, e restaurar o dualismo de qualquer nível é tornar esse nível plenamente consciente. Pois, quando o indivíduo deixa de identificar-se com um pseudo-sujeito, que é uma das metades do dualismo desse determinado nível, adquire uma nova identidade que reúne as duas metades da velha dualidade, fato que harmoniza aquilo que antes se supunha fossem opostos antagônicos. Desidentificando-se com a metade, automaticamente identifica-se com a unidade. Nesse nível mais amplo, ainda de pseudo-subjetividade, é capaz de integrar-se, de assumir a responsabilidade pelo que, no nível anterior, lhe parecia alheio, exterior e ameaçador.

Toda vez que desce um nível, a identidade se alarga para incluir aspectos do universo que antes supunha alheios. O novo nível ainda é um pseudo-sujeito, mas bem mais confortável e menos infestado de doenças. Mas, só no nível da Mente a ilusão da pseudo-subjetividade se desfaz totalmente e encontramos a Subjetividade Absoluta, Total, a que chamamos Deus.

Devemos distinguir, sempre que formos capazes, o nível no qual se passam nossos sonhos. Pesadelos vêm do nível da Sombra; sonhos relativos às questões do dia-a-dia, do nível do Ego ou Existencial; sonhos inspiradores ou de significado arquetípico, mensagens do alto, vêm das Faixas Transpessoais (que estão próximas do Nível da Mente).

A meditação torna possível acesso gradual a todo inconsciente, àquilo que é parte de nós mesmos, mas que foi reprimido, projetado e esquecido; e, no fim, caímos da falsa-subjetividade para a Subjetividade Real. Então, a busca cessa, pois se vê, como num lampejo, que o Buscado nada mais é que o próprio Buscador.

S. Agostinho: ‘Num único lampejo, chega-se ao Que É’.



10. SEMPRE FOMOS O EU

Chuva nevoenta sobre o Monte Lu,

E ondas encapeladas no rio Che.

Se você ainda não esteve lá,

Muitos pesares, por certo, terá;

Mas, uma vez lá e no rumo de casa,

Como parecem prosaicas todas as coisas!

Chuva nevoenta sobre o Monte Lu,

E ondas encapeladas no rio Che. (Su Tung-Po)



(Se você ainda não teve o percebimento, a iluminação, os sofrimentos da vida continuarão, como para todos que ainda não chegaram lá; mas, se teve o percebimento, não por efeitos de drogas ou outra razão, mas no ‘rumo de casa’, isto é, na intenção de encontrar Deus, como tudo, a partir daí, passa a ter significado profundo se comparado às coisas da vida comum. E, depois de iluminado, a mesma chuva, as mesmas ondas, todos os eventos serão os mesmos de sempre, porque o mundo não mudou, mas, para quem chegou, a interpretação do mundo e da vida se transforma radicalmente).



Falamos da Mente como o nível mais profundo do espectro, mas não é um nível particular, nem profundo. O nível da Mente é nosso estado atual e comum de consciência pois, sendo infinito e oniabrangente, é compatível com qualquer nível ou estado imaginável de consciência. Se fosse separado dos demais, isso seria uma limitação à Mente que é a Realidade sem limitações, oniabrangente e infinita, cada um de cujos níveis representa um desvio ilusório. Nosso estado de consciência neste momento, seja deprimido ou exaltado, triste ou feliz, agitado, preocupado ou amedrontado, exatamente como é, é o Nível da Mente. A Mente não é um nível de consciência ou estado de alma; é exatamente o nível que temos agora, seja ele qual for, e a profunda compreensão disso (iluminação) nos trará uma paz intensa, paz que persistirá mesmo que estejamos debaixo das piores depressões, ansiedades e medos.

Embora, hoje, o conhecimento sobre Misticismo tenha aumentado de modo considerável, ainda há quem continue a distorcer suas doutrinas, afirmando que os místicos estão totalmente fora da realidade, sempre mergulhados em transe, e assim por diante. Isso nada diz sobre Misticismo, mas nos faz perceber a ignorância dos que têm tais opiniões e não escutam o que dizem os grandes mestres de todas as tradições, segundo os quais ‘a nossa consciência comum e de todos os instantes é a própria Divindade’.

Realmente, o supremo ideal dos místicos é o expresso pelo Bodhisattva, no Mahayana, o qual vê a Divindade em toda parte e em todos os momentos, em todas as pessoas, lugares e coisas e, portanto, não precisa recolher-se à solidão e ao transe para encontrar o seu deus. A visão mística do Bodhisattva é igual ao que se esteja fazendo no momento, isto é, quer esteja dançando, trabalhando, chorando, rindo ou sofrendo muito, sabe que, fundamentalmente, tudo está bem pois, como diz Hakuin, ‘este corpo é o corpo de Budha’ (do perfeito tirando o perfeito o que resta é perfeito). E, porque a Mente (pura, Deus) está em toda a parte em todos os momentos, não é possível nem tem sentido tentar alcançá-la, pois não existe lugar algum onde ela não esteja (falta-nos, apenas, percebê-la).

Amazuki Sessan: ‘A verdadeira paz e felicidade, a percepção do Absoluto, o Caminho de Buda - o grande erro é pensar consegui-lo em algum céu ou mundo do outro lado. Nunca deixamos o Caminho por um momento sequer. O que podemos deixar não é o Caminho’.

Huang Po: ‘Busca-o e ele te escapa; corre dele e ele segue junto a ti. Nunca podes conquistá-lo e nunca podes deixar de possuí-lo. Portanto, não precisas preocupar-te com essas coisas’.

Niu-tou: “Se fugires do Vazio, nunca poderás livrar-te dele; se o buscares, nunca poderás alcançá-lo’.

Yung-Chi: ‘Como o céu vazio, ele não tem limites e, no entanto, está bem aqui, sempre tranqüilo e claro. Quando o procuras, não podes encontrá-lo, mas também não podes perdê-lo’.

Se Deus, ou a Mente, é o que, até inconscientemente, estamos buscando, e fora da Mente não há nada, pois a Mente é todos os lugares (e tempos), conclui-se que já estamos lá, que o que somos agora é Mente, e que apenas não temos percepção dessa verdade. (‘Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará’).

Norwich: ‘Vê! Eu sou Deus. Estou em todas as coisas! Levo todas as coisas até o fim que ordenei desde o sem começo, com a mesma força, sabedoria e amor com que as fiz. Como é possível que alguma coisa esteja errada?’

Zazen de Hakuin: ‘Todos os seres são Budas desde o princípio. Fora dos seres vivos, onde encontramos Buda? Não sabendo quão perto está a Verdade, as pessoas a procuram muito longe; que pena! São como aquele que, no meio da água, chora de sede com acentos tão lastimosos’.

Eckhart, místico cristão: ‘Conforme a crença dos simples, sentimos Deus como se Ele estivesse lá e nós aqui. Não é assim; Deus e eu somos um só no ato de percebê-lo’.

Ramana: ‘Você precisa livrar-se da idéia de que ainda precisa compreender o Eu. Você é o Eu. Terá havido algum tempo em que você não se dava conta do Eu?’ Assim, quer o compreendamos, quer não, nós o somos, sempre o fomos e sempre o seremos.

Diz um poema Zenrin:

‘Se compreenderes, as coisas são exatamente como são.

Se não compreenderes, as coisas são exatamente como são’.

Assim, nunca poderemos alcançá-lo porque nós o somos.

Ramana: ‘Não há alcançar o Eu. Se o Eu devesse ser alcançado, significaria que o Eu não está aqui agora. Por isso digo que não se alcança o Eu. Você é o Eu; você já é Aquilo.’

Rinzai, o rei dos mestres Zen: ‘Estás colocando outra cabeça acima da tua! O que te falta? O que fazes neste exato momento é exatamente o que um Buda faz. Mas não acreditas nisso e teimas em buscá-lo fora de ti.’

E de Huang Po, o mestre de Rinzai: ‘Não existe nada a ser atingido. Sempre te identificaste com o Buddha; portanto, nunca poderás atingir essa identificação por meio de quaisquer práticas. Se, neste momento, pudesses convencer-te disso, estarias iluminado. É difícil compreender esta afirmação? É para te ensinar a não buscares o estado de Buddha, pois toda busca se destina ao fracasso.’ (já que o somos, a tentativa de buscá-lo é absurda. Temos apenas de buscar essa percepção. Ensinou Jesus: ‘Buscai em primeiro lugar o reino de Deus... ‘).

Huang Po: ‘A Mente Una é o Buddha e não há separação entre Buddha e os seres sensíveis; estes, como estão ligados às formas, buscam o estado de Buddha nas coisas exteriores e, assim, o perdem, pois isso é buscar o Buddha pelo Buddha, é usar a Mente para encontrar a Mente.’

Bankei: ‘A mente de Buddha e a nossa são uma só.’ (‘Eu e Pai somos um’).

A busca implica investigação ou procura de objeto ou coisa lá fora, mas a Mente não é objeto lá fora, e sim o próprio Sujeito Absoluto (em todos nós). A busca supõe uma carência atual, mas não carecemos de nada; só a falta de compreensão cria em nós um ilusório sentido de carência. O sujeito da busca e o objeto da busca são, na verdade, o mesmo. Aquilo que eu estou procurando é exatamente aquilo que está realizando o ato de procurar: eu mesmo. Aquilo que estou observando outra coisa não é senão eu mesmo que estou realizando o ato de observar.

Huang Po: ‘Quando se ouve dizer que os Buddhas transmitem a Doutrina da Mente, supõe-se que existe alguma coisa para ser atingida ou compreendida e, em seguida, utiliza-se a mente para procurar a Mente sem saber que a mente que procura e a mente procurada são a mesma coisa.’ (Krushnamurti: ‘o observador é a coisa observada’)

E como aquele que está procurando é exatamente aquele que está sendo procurado, só por causa disso, aquilo nunca poderá ser conhecido ou visto como objeto, pois Ele é quem busca, quem observa, é o próprio sujeito, é o único Conhecedor, o único Vedor, o único Eu (tudo é Um).

Upanishad: ‘Nunca poderás ver o vedor da visão, nem ouvir o ouvidor da audição, nem perceber o percebedor da percepção, nem conhecer o conhecedor do conhecimento’.

Por isso, nunca poderemos perceber nosso Eu. E aqui está a origem do dualismo primário, pois imaginamos ver e perceber nosso Eu, sem compreender que tudo o que vemos ou percebemos é apenas um complexo de objetos percebidos e, assim, não pode ser o Eu, pois ‘o percebido não pode perceber’ e o Eu não é um objeto e sim o Sujeito Absoluto. Assim, nenhum eu de que possamos ter consciência ou percepção é, absolutamente, nosso Eu!

Ramana: ‘Não sou o corpo grosseiro, nem os cinco órgãos dos sentidos; não sou a mente que pensa, nem a memória, nem os sentimentos, nem as emoções...’

Wei Wu Wei: ‘Ainda não compreenderam que nosso eu é apenas um objeto de nossa percepção, e que se ele pode ser percebido, não pode ser quem está percebendo?. Logo, ele não pode ser o que somos’

Talvez não percebamos isso porque é tão evidente. Não podemos ver o vedor, ouvir o ouvidor etc., mas pensamos que podemos e aí está a criação do dualismo primário, do sujeito e objeto, eu e não-eu.

O que acontece é o seguinte: o Vedor, Aquilo em nós que conhece e vê, na realidade não está separado daquilo que ele vê; é o que vê, pois o Vedor vê uma coisa sendo aquela coisa. Como disse Tomás de Aquino: ‘O conhecimento só acontece quando o objeto conhecido está dentro do conhecedor.’ Esta página, por exemplo, é idêntica àquela dentro de nós que a está lendo.

William James: ‘A página vista e o vedor são somente dois nomes dados a uma mesma e indivisível experiência’. Isto não significa que a página não existe se eu fechar os olhos, mas que ela não existe como objeto ‘lá fora’. Entre o Vedor e a página, entre o sujeito e o objeto, não há distância, não há espaço! (Não havendo Vedor, não há visão, nem coisa vista. Vedor, visão e coisa vista estão estreitamente ligados no processo de ver; são um só).

Entretanto, como supomos ver o vedor, como quando dizemos ‘Sei quem sou’ ou ‘Estou cônscio de mim mesmo vendo está página’, sentimos, muito naturalmente, que quem está vendo está dentro de nós. Como disse Wittgenstein: ‘O que nos perturba é a tendência para acreditar que a mente é um ‘homenzinho’ em nosso interior.’ Assim, cremos que o vedor, o eu, está separado do que vê, e este é o dualismo primário. Ou melhor, ao imaginar que vemos o Vedor, ou que conhecemos o Eu como objeto, erradamente fazemos de nossa Subjetividade um objeto chamado eu, que não passa de um complexo de idéias, sentimentos, identidades, memórias, avaliações. Tomamos esse complexo de objetos pelo Sujeito, tomamos o que podemos ver por aquele que está realizando o ato de ver, sem compreender que a Subjetividade nunca é um objeto, exceto na nossa ilusão. Nosso eu nem é um sujeito real. Já podemos objetivamente percebê-lo, ele é um pseudo-sujeito, um pseudo-eu, um puro caso de identidade trocada. Identificado com esse falso-sujeito, todos os demais objetos parecem separados de mim; aí está o dualismo primário. (Não houvesse o dualismo primário, não haveria Maya, nem Sansara, a roda do nascimento e da morte, nem conflitos, sofrimentos, nem o universo).

Deste modo, aquilo em nós que, neste momento, vê e lê esta página, é a Divindade, a Mente, Brahman e, por isso, não pode ser visto nem conhecido como objeto, nem encontrado quando o procuramos. O que quer que eu veja, pense, perceba, sinta ou saiba acerca de meu eu, é um emaranhado de objetos percebidos, o ego. O visto é o ego; o que está realizando o ato de ver é o Eu, a Mente, Deus. Nós nos identificamos, erradamente, com o que pode ser visto, o ego, e, portanto, já não nos identificamos com toda a manifestação fenomênica, pois estamos ilusoriamente separados de tudo o que parece ser o não-eu. Separados, assim, do meio-ambiente, este passa a ser uma ameaça.

Já vimos que o dualismo primário inicia o debate entre o ser e a nulidade, o que resulta na repressão da morte pelo homem e na sua batalha, permanente, contra o universo, tentando desesperadamente colocar a maior distância possível, chamada segurança, entre ele e o meio ambiente, movido pelo medo e pela ansiedade. Mas, o triste não é que essa seja uma batalha difícil, e sim que a causa da batalha seja uma ilusão. O eu separado simplesmente não está lá para ser protegido, nem para ser salvo, de modo que passamos a vida na fútil tentativa de salvar algo que não existe (o eu não está ali; não há o que salvar).

Wei Wu Wei: ‘Porque és infeliz? Porque 99,9 por cento de tudo o que pensas e fazes, é para ti, e não há ninguém aí’ (onde pensas que está o teu eu.)

Ora, se ao lermos esta página, decidirmos ir para trás do eu, a fim de descobrir quem está realmente realizando o ato de ler, encontraremos apenas: esta página! Não haverá nenhum de nós como sujeito nem página alguma como objeto, pois tanto o sujeito como o objeto terão desaparecido na Subjetividade não-dual. Neste momento, somos a página que se lê a si mesma. Pois todos os objetos são seus próprios sujeitos, e sujeito e objeto nada mais são do que duas maneiras diferentes de abordar a realidade chamada Mente (frente e costas).

Essa divisão da unidade sujeito-objeto é o início do espectro da consciência; opera em todos os seus níveis, provocando a separação ilusória entre observador e coisa observada, eu e não-eu, e o sentimento persistente de um eu separado. Esse espaço entre eu e não-eu tem necessariamente um componente temporal, pois tempo e espaço não são separados, mas um continuum. O componente temporal vem do dualismo secundário, que divide a unidade vida-morte e empurra o homem para fora do Agora intemporal, onde vida e morte são uma só, para o mundo imaginário do tempo, onde ele tenta escapar de uma morte ilusória, assegurando para si um futuro de fantasia. Pois viver no intemporal é não ter futuro, o que significa morrer. Mas, como o homem não aceita a morte, não pode viver no intemporal, acima do tempo. Assim, o dualismo secundário é que gera o tempo. Quando o homem se identifica com o Todo (cessando o dualismo primário), absolutamente nada há fora dele que possa ameaçar sua existência e, por isso, não existe o debate entre o ser e a nulidade, nem a fuga da morte (cessou o dualismo secundário). Por outro lado, quando a vida e a morte são vistas como uma só (pois cessou o dualismo secundário), nada pode ameaçar a existência do homem e assim cessa a separação entre o homem e o universo (pois cessou o dualismo primário).

Isto é, a separação entre nós e esta página é a mesma separação que existe entre nós e o momento Agora (isto é, não há separação). Se vivêssemos totalmente no Agora, nós e esta página, e todos os outros objetos, seriamos um só e, por outro lado, se percebêssemos que nós e esta página somos um só, estaríamos vivendo no Agora intemporal (‘o observador é a coisa observada’).

Visto que não há jeito de encontrar a Mente em algum lugar, procurando-a como objeto lá fora, também não há jeito de encontrá-la em algum tempo, como ocorrência futura. Assim, como não existe espaço até Aqui, não existe tempo até Agora. Quase todos acreditamos que não somos a só-Mente; que poderemos encontrá-la amanhã se nos dedicarmos profundamente; que ela está ausente agora, mas poderá estar presente no futuro. No entanto, rigorosamente falando, nunca encontraremos a Mente porque estamos sempre nela, pois nós somos a Mente; e a Mente é o sempre presente Sujeito Absoluto.

Shankara: ‘A libertação é eterna. É a própria natureza do Eu, eternamente livre.’ Isto é, qualquer libertação ou descobrimento da Mente que tenha um começo não é libertação nenhuma. A libertação não é uma esperança futura, mas um fato presente, do agora, uma vez que todo dualismo é ilusório.

‘Tao-hsin: Mostre-me, por favor, o caminho da libertação!

Seng-tsang: Quem te acorrenta?

Tão-hsin: Ninguém.

Seng-tsang: Então, porque pedes libertação?’

Alan Watts: ‘Tudo aquilo que precisa ser experimentado para a Consciência Cósmica já está presente; tudo o que passar disso é obstrutivo e redundante.’ (Já somos livres; apenas não o percebemos).

Huang Po: ‘Quando, finalmente, num único lampejo, atingires a perfeita compreensão, estarás apenas compreendendo a natureza de Buddha que esteve em ti durante o tempo todo; e, em todas as fases precedentes não lhe terás acrescentado absolutamente nada.’ (Tudo é, tão somente, uma questão de percebimento).

Os meios que fazem perceber a Mente são chamados meios habilidosos e, às vezes, truques, porque nos levam a procurar aquilo que nunca perdemos. Esses meios, perfeitamente sensatos, científicos e compreensíveis, proporcionam a experiência que, realizada no laboratório pessoal, permitirá ao indivíduo a percepção da Mente, do Absoluto, Deus.

O meio habilidoso do Zen (‘A Doutrina Suprema’, H.Benoit), é um gesto interior que, praticado fiel e repetidamente, nos permite compreender que ‘cada um de nós já vive no estado de satori e não pode viver de outra maneira, porque é o nosso estado eterno, independente de nascimento e morte’. Benoit afirma que o que condiciona nossa ilusão de que não vivemos em estado de satori são nossos processos emotivo-imaginativos, resultantes da imperfeição de nossa atenção e nos quais nossa Energia vital se desintegra. São nossas tendências de classificar, analisar, adjetivar, refletir, avaliar, comparar, tudo que vemos, ouvimos, sentimos etc, fazer associações com o que já temos na memória, o que resulta em nossa identificação com os objetos da nossa percepção (o conteúdo mental) e não com toda Manifestação. Assim, para perceber nossa identidade cósmica, precisamos fazer que cessem, pelo menos temporariamente, todos os nossos conceitos, imagens, emoções, memórias que, em última análise, compõem o eu (a cessação do ‘eu’ é obtida pela meditação. Da Bíblia: ‘Aquieta-te e sabe: Eu sou Deus’; Krishnamurti: ‘quando o eu não é, Deus é’).

A Energia, que é o próprio Deus, flui sem cessar em nós, mas se desintegra quando ocorrem tais ações mentais decorrentes da atenção imperfeita. Para que a Energia não se desintegre, é necessário que essas ações, que formam uma tela entre o eu e Deus, não ocorram pelo menos temporariamente, o que só se torna possível quando nossa atenção é perfeita (o que acontece na meditação correta). Assim, temos de ficar atentos antes que a Energia, que é constante, seja mobilizada para formar pensamentos e conceitos. O que em geral acontece é que, quando ficamos atentos, a energia já foi mobilizada e se dissipou pelos processos emotivo-imaginativos e não há mais como perceber a Realidade que a ausência desses processos permitiria. Devemos, então, estar completamente atentos aos processos que estão para acontecer, a fim de não perdermos a energia que nos tornará percebedores do Absoluto. Para isso, não devemos forçar o pensamento a parar, mas praticar o gesto interior que impede que as formas de pensamento surjam. A atenção não deve ser provocada pela dissipação da energia (como geralmente acontece), mas antes disso; em vez de ficar atento aos pensamentos que estão surgindo, devo ficar atento aos pensamentos que estão para surgir; em vez de ficar atento à energia mobilizada e à sua transformação em formas de pensamento, devo ficar atento para perceber o próprio nascimento dos pensamentos. Minha atenção ativa deve dominar a mobilização da Energia e devo procurar perceber o nascimento dos meus movimentos mentais. Não são mais minhas emoções que me interessam, mas o seu nascimento (fique com toda a atenção voltada para o ‘lugar’ onde vai ‘nascer’ o próximo pensamento, como se fosse ‘surpreender’ esse pensamento).

(Gurdjef: a ‘observação de si mesmo’; Benoit: ‘atenção, em todos os instantes, sobre si’; Krishnamurti: ‘ponha atenção sobre o processo do pensar; o homem não será surpreendido porque, então, estará atento; assim, a energia não se desintegra’).

Se a atenção é incompleta, surgem pensamentos. Se completa, não surgem, pois a atenção impede a desintegração da Energia em emoções e imagens. Então, não há absolutamente nada de objetivo para ser percebido; não há mais um mundo objetivo lá fora. Os pensamentos não mais surgem e, como são eles que me separam do mundo, a separação não mais existe e eu e o mundo somos um só. A atenção total ao fluir dos pensamentos faz com que o fluir cesse e com isso cessa o processo emotivo-imaginativo; a Energia não se desintegra e percebo que estou identificado com o universo, que sou o universo.

Benoit: ‘Quando a atenção age completa e ativamente é pura, sem objeto. A energia mobilizada nunca é percebida em si mesma, mas nos efeitos que sua desintegração produz (imagens, pensamentos, memórias etc.). A atenção total impede a desintegração e, então, nada mais há para ser percebido. Se eu assumir, frente a minha tagarelice mental, a atitude de quem ouve completamente atento e que autoriza a tagarelice a se expressar como quiser, como se dissesse ‘Fala, que estou escutando’, ela pára sem que eu a force a isso, e só recomeça quando a atenção total cessa. Quando fico atento ao nascer dos pensamentos, nenhum nasce. E estou em pura consciência não-dual’ (assentado no Bodimandala).

Os experimentos habilidosos de qualquer tradição têm em comum três fatores:

1) Atenção Total ao nascimento dos pensamentos que, se feita corretamente, resulta em:

2) Cessação dos pensamentos, da tagarelice mental, o que traz completo Silêncio mental. Isso é permanecer na pureza do que é, sem contaminação dos dualismos, livre da influência do conteúdo mental. Nesse estado a coisa pode explodir a qualquer instante. Se a cessação for perfeita, resulta em:

3) Percepção Passiva, que é ver nada de objetivo, sem o dualismo primário de sujeito e objeto, visão sem nada exterior ou interior. Nada está fora dela e ela opera espontaneamente, sem esforço, sem referência a passado ou futuro, além do espaço e do tempo, no Agora intemporal e absoluto, não vendo nada além de si mesma, porque nada existe além de si mesma (nada existe além da Mente, além da Divindade); é conhecer tudo sem separação de coisa nenhuma. E, um instante dessa percepção, é o próprio Deus.

Krishnamurti, cujos discursos Aldoux Huxley comparou aos de Buddha, percorreu o mundo por mais de meio século expondo, com clareza e sabedoria, a necessidade da percepção passiva, sem escolha, intensamente alerta e livre da contaminação do pensamento; percepção de o que é (isto é, sem influência do ego, memória, associações, julgamentos, desejos, medos etc.) e nunca do que era (lembrança), e do que será ou do que deveria ou poderia ser (imaginação, expectativa). Ensinava: somente ‘o que é’ é real (sem quaisquer acréscimos) e só pela percepção dessa verdade somos postos em liberdade’. (Jesus: ‘Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará’).

Krishnamurti: ‘O real está próximo; você não precisa procurá-lo. A verdade está no que é. Mas, no momento em que a procura você principia a lutar e o homem que luta (usa o ego) não pode compreender (a mente não estará quieta, tranqüila). Eis aí porque temos de permanecer imóveis, observadores, passivamente percebedores!’ (sentar-se penas; nada mais)!

Não percebemos a verdade de o que é porque a obscurecemos com pensamentos, lembranças e associações que a distorcem e ocultam. ‘Deus ou a Verdade não pode ser objeto de reflexão. Se você reflete sobre ela, já não é a verdade’. Era a verdade, mas desde que houve reflexão deixa de ser a verdade pois foi distorcida pelo pensamento, pela interferência do eu. A mensagem de Krishnamurti se resume em nos aconselhar a ver através do dualismo primário, despertar para o modo de conhecer não-dual, porque isso, e só isso, é que nos dá a percepção da Realidade. Ensinou a observação, a atenção sem escolha. ‘O observador é a coisa observada. Mas, quando, por interferência do ego, conceitua, verbaliza, julga ou compara a coisa que sente, que observa, que experimenta, o experimentador (coloca pensamentos e associações sobre ela e assim) se separa dela e age sobre ela; essa ação é artificial, ilusória. Mas, se não houver verbalização (interferência do ego), o experimentador e a coisa experimentada são uma coisa só. Essa integração é necessária e tem de ser enfrentada radicalmente’.

‘O que é percepção? É estar atento e consciente das coisas exteriores, das proporções desta sala, das várias cores que vestimos, observando sem nenhuma escolha, sem comparar, sem julgar; somente observar; e estar, interiormente, consciente de todo movimento do seu pensamento, seus gestos, seu modo de caminhar, de como você come, dos hábitos que criou, novamente sem escolha, sem comparar, sem julgar, sem corrigir; somente observar com atenção. Você não poderá estar inteirado de tudo se houver divisão entre o observador e a coisa observada’. ‘Observar, olhar para a coisa sem as imagens anteriores (memórias) dessa coisa; olhar para uma flor (ou o que for) sem as associações ou lembranças com relação à flor, porque as associações e lembranças (que são fruto da interferência e atividades do eu) criam separação ilusória entre o observador e a coisa observada. Nessa separação, na divisão entre o vedor e a coisa vista, está todo o conflito e sofrimento do homem. É necessário ver sem as imagens guardadas na memória (sem a interferência do eu; o eu é apenas memória), o que fará que o espaço entre o observador e a coisa observada simplesmente não exista’.

Para Krishnamurti, o problema, também, é a desatenção. Quando estamos totalmente atentos, como na atitude do ‘Fala, que estou escutando’, não surgem imagens mentais, não há pensamentos. ‘No momento da atenção, a construção de imagens cessa; só quando você não está atento começa a coisa toda. No momento em que a imagem (pensamento) vai surgir, dê completa atenção a esse momento e verá que nenhuma imagem surge; e, não havendo imagem, não há divisão, não há espaço entre o observador e a coisa observada. E naquele momento, se persistir nesse estado (no Bodimandala), a qualquer instante a coisa pode ocorrer e... acabou-se’.

Para Ramana, também o pensamento é a fonte de toda ilusão e conflito. Portanto, a suspensão do pensamento deve ser feita. ‘Uma vez que a mente não é mais do que um feixe de pensamentos, através da indagação ‘Quem sou eu?’ a mente cessa. Mesmo que, durante a indagação, surjam pensamentos estranhos, não lhes dê atenção; em vez disso, indague atentamente: ‘A quem ocorreu este pensamento?’ Não importa quantos pensamentos lhe ocorram; se você, com total atenção, indagar imediatamente a quem foi que eles ocorreram, verificará que ‘foi a mim’. Indague, então, ‘Quem sou eu?’ e o pensamento nascente se aquieta e cessa a percepção do mundo como realidade objetiva’. Você mergulha, nessa indagação, num silêncio mental idêntico ao produzido pelo exercício de Benoit. Nesse silêncio você estará pronto para ver o Real num lampejo. ‘Pela investigação da natureza do eu, o eu perece e, com ele, você e os objetos. O resultado é o nosso estado natural, o Ser Absoluto. Procure o eu dentro de você e ele se apaga e, onde o eu se apaga, surge o Eu por si mesmo’ (ou eu, ou Deus).

A desatenção, pois, é o mecanismo da produção de imagens, da interferência do eu; isso é o que nos separa da Realidade (No Cristianismo primitivo, de Jesus e dos apóstolos, conforme Cristianismo Perdido, a desatenção era considerada o mais grave pecado; e a atenção, a maior das virtudes).

‘À medida que prossegues indagando com atenção, chegará com certeza o momento em que te será totalmente impossível continuar a indagar (como no koan do Zen). É como se tivesses chegado à nascente de um rio e te visses bloqueado pelas montanhas a tua volta. Nesse momento, a diferença entre sujeito e objeto é inteiramente destruída e ambos se unem numa identidade perfeita. Encontrarás aí o grande satori que traz paz e faz cessar todas tuas indagações e buscas’ (Ramana). Pois que, não ocorrendo reflexão nem análise intelectual, não há interferência do eu, não há pensamentos, pois o ego cessou sua interferência e, assim, nada mais nos oculta a Realidade.

Suzuki: ‘Voltem a atenção para dentro toda vez que pensamentos estiverem para nascer em sua mente. Desse modo, os pensamentos que estão nascendo morrem e a mente morre por si mesma; isso (o resultado disso) é o inconsciente (o Absoluto, Deus)’.

Mumon: ‘Para perceber essa coisa maravilhosa chamada iluminação, você precisa atentar para a fonte de seus pensamentos, aniquilando-os dessa maneira’.

Hung Chih, mestre Zen: ‘Silenciosa e serenamente esquecemos todos os pensamentos. Clara e vividamente aquilo aparece, vasto e ilimitado, percepção pura. Despojado de qualquer esforço, esse aparecimento é natural e espontâneo.’ (Krishnamurti: a meditação é espontânea, inconsciente e sem esforço). Volte a atenção para dentro para ver o nascer dos pensamentos e, enquanto perdurar a atenção, eles simplesmente não nascem.

Lu, Meditação Chinesa: ‘O praticante volte a atenção para dentro para ver os pensamentos nascendo em sua mente. Verá que os pensamentos passados se foram, que os pensamentos presentes não ficam e que os pensamentos futuros não chegam... Pouco a pouco, sua mente chegará ao fim por si mesma’. (Deixe que os pensamentos fluam como as nuvens levadas pelo vento).

O que sou, a própria Realidade, não é nada objetivo, nada que possa ser visto, tocado, ouvido, pensado. O que penso ser o meu eu, um suposto sujeito lendo estas linhas, não passa de um objeto, pois posso percebê-lo, olhar para ele, pensar nele, respeitá-lo, detestá-lo, melhorá-lo. Então, o que penso ser meu eu não é o sujeito Percebedor, porque ‘o percebido não pode perceber’. Meus pensamentos, minha mente, intelecto, raciocínio, memória, meu corpo, desejos, esperanças, medos, todos são objetos de minha percepção e, portanto, não podem ser quem está percebendo, não podem ser o sujeito Percebedor, o Eu.

Tudo que eu posso conhecer, ver, sentir ou pensar a respeito do meu eu é precisamente o que o Eu não é, pois todas essas percepções são objetos e, por conseqüência, não podem ser o Sujeito. Compreender profundamente que, como Vedor, não posso ser visto, nem percebido, este é o princípio da introvisão essencial. E você está tão perto d’Ele agora mas, por ser Ele quem pratica a ação de ver, você nunca poderá vê-lo.

Wei Wu Wei: ‘Nenhuma intensidade de olhar em qualquer direção pode ajudar você a ver aquele que está olhando’ (vendo).



Chung Tzu conta a seguinte historia:

‘Yen disse: ‘Estou melhorando’.

Confúcio: ‘Como assim?’

Yen: ‘Posso esquecer-me de mim enquanto estou sentado

(meditando). Libertei-me do corpo e da mente’.

Confúcio: ‘Você é deveras um homem sábio. Confio em que

me permita seguir seus passos’.



Estamos sempre em contato direto com Ele, mas não podemos vê-lo ou nomeá-lo, nem pensar n’Ele, pois, se o fizermos, nós o transformaremos num objeto ilusório. Buscando a Verdade como se ela fosse um objeto, nunca vamos encontrá-la, pois ela é o Sujeito que está praticando a ação de buscar. E o Sujeito nunca é objeto.

‘ Que adianta olhar para fora (procurar a Verdade fora de nós)?

Tudo que você verá são objetos. Olhe para dentro!

- Verei então o Sujeito, em lugar dos objetos?

- Se você o visse estaria olhando para outro objeto. Um objeto é

um objeto seja qual for a direção para a qual você olha.

- Então, verei a mim mesmo?

- Você não pode ver o que não está ali!

- Que verei, então?

- Você talvez possa perceber, então, a ausência de você mesmo.

Isso tem sido chamado o Vazio. O Vazio é o que você não

pode ver quando procura um eu que não está lá. Porque é

assim? Porque é ele que está procurando (praticando o ato de

ver, de procurar).’

E isso, que pode acontecer a qualquer momento, a visão do que já é sempre, nós o adiamos porque insistimos em procurá-lo e vê-lo como se fosse um objeto fora de nós, alguma coisa que podemos perceber ou tocar, enquanto que Ele, na realidade, é quem está em nós neste exato momento e que tenta perceber ou tocar. Ponha a atenção na direção certa, para dentro (meditação) e a visão essencial poderá acontecer. O Percebedor chegou a um ponto de sua busca em que olha para o que ele mesmo é; atingiu um beco sem saída em sua análise e vê-se frente a frente com sua própria natureza, mas, em vez de compreender que o vazio é o que os olhos não vêem quando olham para si mesmo, teima em tentar objetivar o que não vê, o que nunca poderá ver, transformando-o num conceito objetivo. Quando eu olho para dentro e não vejo nada de objetivo, preciso compreender que aquilo que busco é exatamente o que não vejo quando procuro; isso é Ele e isso sou Eu! ‘É a Mente que procura a Mente e não a encontra como objeto! E esse não encontrar é o verdadeiro encontrar!’

Você não pode vê-lo como objeto; assim, desista! O seu próprio não-ver é Ele, e se você persistir nessa condição de não-ver, nesse momento e nesse lugar, a coisa pode acontecer, porque você está exatamente diante do que está procurando. O Vazio que você vê quando olha atento para o nascedouro dos pensamentos pode, num relâmpago, mostrar a Realidade (de que ‘Eu e o Pai somos Um’).

Aquilo que você procura e não pode encontrar é VOCÊ mesmo. O motivo porque a Mente não pode ser encontrada é porque é Ela que está realizando o ato de procurar. Quando isso é profundamente compreendido, atinge-se o fim da busca, e nada mais há a ser buscado (‘Buscai em primeiro lugar o reino de Deus, que o demais vos virá por acréscimo’). Quando isso acontece, nossa identidade se une com tudo o que é experimentado. Não há mais um experimentador separado de objetos experimentados separados; há somente experimentação não-dual. Então, quando olhamos para dentro (de nós mesmos) à procura do eu-Percebedor encontramos o universo inteiro (como disse Jacob Boeme), que não é mais um objeto ameaçador lá fora, e percebemos que Ele é quem está procurando. Assim, se os pensamentos cessam, e se você perseverar nisso, a qualquer momento, sem causa ou razão aparente, pode acontecer e a busca se acabou (Como na parábola do ladrão que pode chegar a qualquer hora).

Terminada a busca, temos de assumir a responsabilidade por tudo o que nos acontece, pois compreendemos, então, que tudo é obra nossa. Minhas ações são as ações do universo, e vice-versa, de modo que quando eu e o universo já não mais estamos separados, o que ele me faz e o que eu lhe faço são a mesmíssima ação. Se uma pedra me cai na cabeça, eu o fiz. Se um homem me alveja pelas costas, eu o fiz. Se eu apanhar uma doença dos pulmões e morrer dolorosamente de asfixia, eu o fiz. Anteriormente, eu pensava que as coisas me aconteciam devido a causas fora de mim (acidente de percurso, conseqüência de meus erros, carma, ou os desígnios insondáveis de Deus); agora, sei que nada está fora de mim, de modo que a palavra final é: ‘só existe uma vontade: a minha, que é a de Deus’. Este é o sentido íntimo do carma: ‘o que te acontece é obra tua; você colhe o que plantou’. Aqui deixam de haver problemas; não que sejam resolvidos por Deus ou por nós. É que o próprio problema não mais se apresenta, pois as coisas são o que são (‘do perfeito tirando o perfeito o que resta é perfeito’; ou, o que resta é o que é; não há nada que fazer; tudo é um fluir imprevisível e sem fim). Não há mais perguntas a serem feitas. Tudo é.

Isto é tudo o que há no misticismo: perceber sem julgamento ou análise o que está acontecendo no momento, fora e dentro de nós, atentos para nossos pensamentos involuntários (pois não são nossos) como se eles não fossem mais do que o barulho da chuva. E um momento dessa percepção é suficiente para mostrar que a vida que já estamos vivendo é a própria vida na Eternidade. A percepção mística do Agora não é, absolutamente, diferente daquilo que já estamos experimentando. Mas não compreendemos porque acreditamos que temos de ter contato com a Divindade, como se não fosse isso que estamos fazendo o tempo todo.

S.Gregório: ‘Ninguém consegue tanto de Deus quanto o homem que está completamente morto’.

Kierkegaard: ‘Entre o homem e a Verdade está a morte’.

Eckhart: ‘O Reino de Deus é para os completamente mortos’.

Ramana: ‘Você perceberá que sua glória está onde você deixa de existir’.

Contudo, essa morte não é a morte no final da vida, mas a morte imediata em todo o decorrer da vida. Como observa T.S.Eliot ‘o momento da morte é todo o momento’. E Krishnamurti ensina que devemos morrer a cada instante (pela meditação), isto é, fazer o passado, que é o eu, morrer; porque ‘quando o eu não é, Deus é’ (‘para que o homem entre no reino de Deus, é preciso nascer de novo’, como falou Jesus).

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11. DAS REFERÊNCIAS E NOTAS DO CAPÍTULO FINAL

Eckhart: ‘Só quando Deus e o ‘eu’ formos um só, poderemos percebê-lo.’

Ramana: ‘Não há criação, nem destruição; nem destino, nem livre arbítrio; nem caminho, nem aquisição; esta é a verdade final’ (porque já o somos).

Quanto à dúvida se se deve caminhar pela fé ou pelas obras, a resposta do Zen é esta: ‘Não há nada que você possa ou não fazer para conseguir ser o que sempre é’ (nada escolhemos, como afirmam Krishnamurti e a ciência moderna. A própria Sagrada Escritura dos cristãos ensina, nas palavras de Paulo, que não somos salvos pelas obras, mas pela graça de Deus; como, também, Jesus falou a Pilatos: ‘nenhum poder teríeis se do alto não vos fosse dado’). Para perceber isso, porém, a única maneira é fazer cessar o dualismo primário, o que se consegue com a suspensão do pensamento (pela meditação); depois disso, torna-se evidente que não restou nenhum pensador. Os conceitos ainda surgirão, como surgirão objetos mas, assim como os objetos já não parecerão lá fora, os conceitos já não serão objetos do pensamento. Os objetos existirão, mas então não terão um sujeito separado, como os conceitos surgirão, mas não mais terão um conceituador separado. Antes, acreditávamos que os objetos, conceitos, fenômenos, eram o universo; agora, perceberemos que são apenas movimentos do universo.

A mente da impermanência é a mente fluída, não-bloqueada, não-obstruída, sem apegos ou ilusões, sem sensações (Krishnamurti e o Zen). Quando a mente fica bloqueada significa que ela está sendo movida por algo externo, ilusões, sensações, pensamentos, emoções, crenças. Quando há o mais leve medo da morte ou o mais leve apego à vida, a mente perde a fluidez. A mente livre de todo medo e dos apegos será mestra de si mesma, não conhecerá impedimentos, nem inibições, nem estorvos; seguirá o próprio curso, e fluirá livremente, como a água. O principal bloqueio é o dualismo primário, que a meditação pode destruir. Quando há o mais leve vestígio de certo e errado, a mente está bloqueada, pois estará, ainda, poluída pela interferência do eu.

Viver sem plena atenção do momento presente, apenas com a memória e a expectativa, não é viver; é morrer. Pensamento é tempo; percepção é eternidade.

Eckhart: ‘(depois de procurar, afanosa e diligentemente, a mais alta virtude por cujo meio podemos chegar mais próximos de Deus) descubro que ela não é senão o total alheamento (esquecimento) de tudo o que é criado. Para ser não-tocado e puro precisa-se apenas de uma coisa: alheamento (indiferença).’

Ramana: ‘O não-apego total é o único caminho para a bem-aventurança.’ (novamente, indiferença; indiferença pois não há o que fazer; tudo acontece como tem de acontecer, gostemos ou não).

Todas as tradições afirmam que o dualismo primário é destruído de repente. I Coríntios 15-51-2: ‘Eis que vos digo um mistério; nem todos dormiremos, mas transformados seremos todos, num momento, num abrir e fechar de olhos, ao soar da última trombeta...’

‘Não há ninguém aí onde pensas que está o teu eu’... só há a Divindade, Deus, que é quem pensa, reflete, memoriza, ouve, fala, vê, é ‘visto’, cheira, é ‘cheirado’, é ouvido, sente e é ‘sentido’ e percebe...

‘Somos apenas, máscaras de Deus; estamos todos num mega-drama cujo único ator é Deus. Nós somos, todos nós, os sentidos, as mãos, os pés, olhos e ouvidos da Divindade...’

‘Deus está em cima e embaixo, à direita e à esquerda, à frente e atrás, fora e dentro. Enfim, tudo é Deus, que opera em nós o pensar e o fazer, o imaginar e o raciocinar, o sentir, o escolher e o decidir...’ (como assegura Paulo. ‘A escolha, a decisão, nunca é nossa’. É o que diz a mecânica quântica, também. Quando a Bíblia diz que o Senhor é quem opera em nós o pensar e o fazer, devemos concluir que não somos responsáveis, que não há pecado, que nada escolhemos ou decidimos).

Quando percebemos o universo, é Deus se percebendo; quando buscamos Deus, é Deus se buscando... (por isso, quando um monge perguntou a seu mestre: ‘o que é buscar o Buda?’, o mestre disse: ‘é cavalgar o boi para ir à procura do boi.’).

Coomaraswamy: ‘Os diferentes níveis de consciência não estão separados por um muro intransponível mas, em seus diferentes graus, representam uma hierarquia de tipos de consciência que se estendem do animal à divindade (Kardec: do átomo ao anjo é uma linha reta) e de acordo com os quais (e nos quais) o mesmo indivíduo pode funcionar em diferentes ocasiões’.

Teilhard de Chardin, padre católico, teólogo, filósofo e cientista, em O Fenômeno Humano, enfaticamente afirma, como muitos iluminados, que todos nós, tanto os seres humanos quanto os animais, compartilhamos a mesma consciência.

Wilber: ‘(Quando se fala que, para a libertação final, temos que nos fundir com o Centro, Deus), na realidade, não há fundir-nos com o Centro. Estamos sempre fundidos com o Centro. É antes uma compreensão agora (uma percepção) dessa união eterna, e não uma manifestação dela amanhã’.

Brown: ‘Não é a esquizofrenia (os esquizofrênicos), mas a normalidade (os chamados normais) que tem a mente dividida; na esquizofrenia, os falsos limites estão se desintegrando... os esquizofrênicos padecem da verdade.’

Wilber: ‘Para propósitos práticos, todavia, a única maneira de ver através do dualismo primário é cessar (pela meditação) o pensamento (o ego); depois disso, torna-se evidente que não restou nenhum pensador...’

(Krishnamurti afirmou que ‘aquele que escolhe é imaturo’. Com respeito a essa afirmação, parece-nos que, como sugerem os novos cientistas, temos certa autonomia no pensar; então, acreditamos que fazemos escolhas quando, na verdade, apenas pensamos que escolhemos e, por isso, ficamos decepcionados e frustrados quando os eventos não se dão conforme as nossas escolhas).

Wilber: ‘Quem não favorece Freud, não pode chegar a Buda’, isto é, para chegarmos a ser um Buda temos que, primeiramente, ‘acertar’ nossa psique.



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