(9) A ESPIRITUALIDADE E A
VISÃO DA NOVA FÍSICA’ (Jan 2008)
Baseado em livro de Fritjof Capra, físico
quântico e pesquisador do misticismo oriental (com os monges beneditinos David
e Thomas, estudiosos profundos do cristianismo e das tradições místicas; Thomas
foi proibido, pela igreja, de estudar ioga e religiões orientais). Cultrix,
1988.
Enormes mudanças, vindas das descobertas
da física quântica, trouxeram implicações tremendas e vieram comprovar que a
visão de mundo do misticismo milenar é idêntica à visão de mundo trazida pela
nova física; tais mudanças se refletem em todas as áreas de atuação do homem,
como na das ciências, psicologias, psiquiatria e nas religiões profundas.
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INTRODUÇÃO
Visão prévia dos novos paradigmas na
ciência e na teologia:
Na ciência, o paradigma cartesiano é
substituído por um paradigma novo, holístico, ecológico e sistêmico.
Na teologia, o paradigma racionalista da
teologia, baseada em textos das Escrituras (como se as revelações contidas nas
Escrituras Cristãs fossem a verdade definitiva, isto é, que após elas, nenhuma
outra possa ser tomada como revelação genuína) usados como prova dos argumentos
escolásticos (escolástica, filosofia baseada em Tomás de Aquino e Aristóteles,
seguida pela Igreja) é substituído pelo paradigma holístico, ecumênico (geral,
universal) ou tomístico transcendental (relativo a Tomás de Aquino).
Na ciência, muda-se da parte para o
todo. A relação entre as partes e o todo se inverte; antes, acreditava-se que,
em qualquer sistema complexo, o todo poderia ser entendido a partir do estudo
de suas partes. Hoje, as propriedades das partes só podem ser entendidas a
partir da dinâmica do todo; não há, pois, absolutamente, partes. O que chamamos
de parte é meramente um modelo numa teia interdependente de relações. Hoje,
sabe-se que é o todo que determina o comportamento das partes, ao contrário do
que se acreditava anteriormente.
Na teologia, antes, acreditava-se que,
para a compreensão da verdade inerente às revelações, deveria lhe ser
acrescentada a soma total dos dogmas. Hoje, a relação entre as partes e o todo
está invertida; muda-se de Deus como revelador da verdade, para a realidade
como auto-revelação da divindade (Deus se revela o tempo todo). E a Revelação é
um processo ininterrupto, não constituído de um bloco único, como se presumia,
e o dogma (nem todos) focaliza (por aproximação) as experiências pessoais
(inexprimíveis) da manifestação de Deus entre os homens.
Na ciência, toda teia de relações é
intrinsecamente dinâmica e sabe-se que a compreensão do processo de conhecimento
(isto é, a participação da mente do homem) deve ser incluída explicitamente para
a percepção e descrição dos fenômenos naturais. Antes, os alicerces do conhecimento
estavam se desagregando; leis, partes, princípios e blocos de construção fundamentais,
como se acreditou e se usou na ciência e filosofia por séculos, mostraram-se
ser apenas representações metafóricas. Hoje, vigora a visão da rede interconexa de relações entre todos os
fenômenos e coisas, rede na qual não há hierarquias; nenhuma coisa é mais
importante que a outra. Também, contrariamente ao pensamento anterior de
que a ciência poderia vir a explicar a
certeza absoluta e final, reconhece-se que ela nunca poderá dar uma compreensão
completa e definitiva da realidade e que todos os conceitos, teorias e
descobertas são sempre limitados e só aproximações (os princípios da incerteza
e da incompletude, dos físicos quânticos).
Na teologia, o novo paradigma mostra que
o processo de ‘salvação’ é a grande verdade da manifestação de Deus, e que a
revelação, como tal, é intrinsecamente dinâmica. Acreditava-se que os relatos
(dos iluminados) eram objetivos, isto é, independentes da pessoa que os
experienciava e do processo de conhecimento. Hoje, percebe-se que a reflexão
sobre os modos não-conceituais de conhecimento - intuitivos, afetivos, místicos
- deve ser incluída explicitamente no discurso teológico, havendo uma
concordância crescente de que o modo de conhecimento não-conceitual (sem
conceitos ou palavras; com o afastamento do ego; meditação) constitui parte
integrante e essencial da teologia. As bases do conhecimento teológico estavam
se desagregando; a crença em leis, princípios, blocos de construção
fundamentais, usados por séculos pela teologia, ruiu. Está surgindo a visão da
rede de inter-relações, os enunciados da teologia formando uma rede interconexa
de diferentes perspectivas sobre a realidade transcendental. Não há mais um
bloco único de enunciados de verdades teológicas, mas uma rede na qual cada
aspecto pode produzir introspecções (reflexões íntimas) válidas sobre a
verdade, o que implica no abandono da idéia de um sistema único de teologia
constituindo a verdade única para todos os que crêem e para a doutrina
Reconhece-se o caráter limitado e aproximado de todo enunciado teológico e
sabe-se que a teologia nunca poderá fornecer uma compreensão definitiva e
completa dos mistérios divinos (da verdade última).
EXPLICAÇÕES
O autor, pesquisador das tradições
orientais, percebeu semelhanças surpreendentes entre as teorias da ciência
moderna, particularmente as da física quântica, que é sua área, e as idéias
básicas do hinduísmo, budismo e taoísmo. Essa descoberta lhe trouxe intensa
transformação pessoal, que o fez voltar-se para a espiritualidade oriental.
O monge David, católico e budista, tal
como são, hoje, muitas pessoas que redescobriram seu cristianismo num nível
muito mais profundo graças à prática do Zen, afirma que, numerosas pessoas, que
sob todos os aspectos podem ser chamadas de adultos, pela formação religiosa
não passam de crianças (estão, ainda, no jardim da infância e, dificilmente,
chegarão à Graduação Universitária). Isso ocorre com cientistas e mesmo com
religiosos praticantes, estudiosos e devotos (particularmente no Ocidente).
CIÊNCIA E TEOLOGIA
O objetivo da ciência é o conhecimento
sistemático do universo físico. Esse objetivo, de conhecer para dominar ou controlar a natureza, está muito ligado à
teologia. Nesta, o objetivo é o conhecimento direto do Espírito Absoluto no
aqui/agora, um conhecimento que transforma a maneira como o homem vive sua vida
no mundo.
Quando uma experiência espiritual
original é transformada em religião, surge a institucionalização da
espiritualidade. A religião institucionalizada procura entender e expressar a
experiência original em palavras e conceitos e, a seguir, produz sua dimensão
social ao transformar aquela experiência num princípio de vida para a
comunidade. Religião, com R
maiúsculo, é o sentido pleno de religiosidade do qual fluem todas as religiões
(com r minúsculo). Na vida dos
homens, religiosidade transforma-se em religião; quando institucionalizada,
torna-se religião organizada, popular.
Numa experiência de pico (em geral fruto da meditação)
encontramos significado para tudo e
tudo faz sentido, vida, morte, dor, tudo. Vagamente, e até inconscientemente,
ansiamos por esse sentido. Daí pode surgir a Espiritualidade (ou
religiosidade), um modo de ser e viver que flui a partir da experiência
religiosa. (Como diz K, ‘compreender é agir’).
A vida é um questionamento. E, por
vezes, sem razão aparente, num estalo, sabemos a resposta, resposta
que não é soletrada, mas compreendida pelo íntimo e dizemos ‘É isso aí!’ Essa
experiência produz tranqüilidade em nosso estado comum de inquietação com o
qual, permanentemente, vivemos. Nesses momentos de pico, sentimos que fazemos
parte de algo maior do que nós, e que ‘encontramos o nosso lugar’, ‘pertencemos
a isto’, ‘agora estamos em casa’, que pertencemos a todos os seres, homens,
animais, plantas; isto é, nós todos nos pertencemos nesta unidade cósmica (uns
aos outros e ao todo onde tudo é Um).
Mas, como nascem, dessa percepção, as
religiões que vemos ao nosso redor? Quando ocorre uma experiência que nos
comove profundamente, e que percebemos ter relação com a existência,
forçosamente refletimos sobre ela; daí surge a teologia, que é o esforço para
compreender o significado da experiência e sua implicação em face da Religião; essa
compreensão é que nos trás a experiência religiosa de pertencer àquilo de que pensávamos que éramos apenas parte. A
raiz de religião é ligação (religação); a de teologia é theos, Deus (estudo sobre as coisas de Deus). Isso nos trás a
referência de nosso pertencer, a única realidade à qual pertencemos e que
pertence também intimamente a nós. Essa experiência de vir a acreditar q se pertence
forçosamente leva a uma certa maneira de viver, uma conduta moral que está
relacionada com a realidade cósmica. Quando o intelecto trabalha com a
experiência religiosa, surge a teologia.
A percepção
de pertencer trás alegria sem limites (bem-aventurança), e faz com que se
deseje sempre mais e mais. E nossa vontade é motivada a se mover em direção
àquilo que, por fim, se torna a ética ou a moral (para os relacionamentos, os
pensamentos e o comportamento). A moral é nossa boa vontade em nos conduzirmos
em relação àqueles com os quais estamos unidos, como percebemos nessa
experiência, por um forte vínculo de pertencer. Já o ritual destina-se a
celebrar e relembrar repetidas vezes essa experiência do mais profundo
sentimento de pertencer (evidentemente, para quem teve a experiência). A
‘gratidão’ é expressa pelo ritual; a gratidão por estar vivo, por pertencermos
a este universo, pela aquisição da percepção. O ritual é uma grata celebração
da vida, que percebemos, pela experiência mística, ser infinita e eterna.
A ciência e a teologia são ambas
reflexões sobre essa experiência, nas quais tentamos sempre atingir níveis cada
vez mais profundos da realidade. A teologia reflete sobre as experiências mais
relevantes para o ser humano, as experiências internas; a ciência reflete sobre
as experiências externas (hoje, a filosofia da ciência já está refletindo sobre
experiências internas, particularmente a partir da quântica, da aproximação das
tradições orientais e dos trabalhos de místicos e de psicólogos sérios e
profundos, ocidentais).
Como tais reflexões se referiam a
aspectos diferentes, tradicionalmente ciência e religião estavam em choque
(fato que tende a cessar pois, hoje, ambas se inspiram mutuamente). Ambas são
caminhos que levam a um maior entendimento da realidade; apresentam grandes
diferenças e grandes semelhanças. Baseiam-se na experiência e num certo tipo de
observação sistemática e, mesmo havendo grandes diferenças nas maneiras como
cientistas e teólogos observam, são reflexões teóricas sobre a experiência. São
abordagens da experiência humana, a ciência perguntando o ‘como’ e a teologia o
‘por que’. O ‘por que’ está ligado ao significado; o ‘como’ quer saber de que
modo um fenômeno está ligado a todos os outros fenômenos. Se percebermos mais e
mais conexões, acabamos revelando o contexto inteiro que, na verdade, é o ‘por
que’ buscado (e, hoje, ciência e religião se complementam).
A religiosidade de uma pessoa influencia
inevitavelmente sua posição na vida de relações, e é expressão de sua teologia (religião)
particular, pessoal, de sua reflexão individual sobre a experiência que teve de
Deus.
(Há, hoje, muitas pessoas, inclusive
cientistas, praticando a meditação zen budista, que está em perfeito acordo com
as teorias científicas).
Toda e qualquer coisa que se afirme em
ciência será sempre descrição aproximada e limitada da realidade. Do mesmo modo
na teologia, que é a fé em busca de convencimento, não se pode abranger o
significado total do mistério; seu entendimento é sempre aproximado e limitado.
Mas, quando o homem está muito envolvido com a vida tanto quanto com a
teologia, tende a julgar essas aproximações como sendo a verdade inteira,
interpretando-as erradamente, fato que ocorre com freqüência, e que tem trazido
implicações nocivas à humanidade.
A fé religiosa é um conhecimento gerado
por certo tipo de experiência individual. O cristianismo e o budismo enfatizam
que a fé verdadeira vinda do conhecimento de Deus é uma dádiva de Deus.
Contudo, a fé sem base, a fé transmitida pelas religiões populares, usada como
sinônimo de crença, é deficiente e muitas vezes perigosa.
A fé é uma confiança naquele supremo
sentimento de pertencer que se vivencia nos momentos de pico, na experiência
religiosa. É a postura pela qual você se entrega aos cuidados desse pertencer.
Mesmo cientistas, em particular os mais intuitivos, possuem esse tipo de fé. A
teologia é algo que vem depois da fé; está a serviço da fé e serve para tentar
expandi-la.
O sentimento de estar salvo vem da
percepção de nossa ligação com o todo, da experiência de estar, com certeza
inabalável, em casa.
Hoje, entende-se a revelação como um
processo histórico sempre em andamento, no qual a natureza e o propósito de
Deus são revelados para ‘aqueles que o buscam’. Quando tenho uma experiência
religiosa, estou explorando, conhecendo Deus; contudo a ação não é minha; é
ação de Deus que se revela à minha compreensão. Quando buscamos Deus, de súbito
chegamos a um ponto no qual descobrimos que Deus está se entregando a nós. Na
meditação não somos nós que chegamos a ela, mas ela é que chega a nós. A
revelação é sempre individual (nunca coletiva) e subjetiva (nunca exterior). É
uma introvisão, uma percepção interna de nossa parte. Uma vez que Deus é o
nosso ‘eu’ mais profundo, a verdade, a auto-revelação divina é sempre percebida
pelo âmago de nosso ser (na nossa psique). Não é uma informação vinda de fora;
é uma descoberta que vem de dentro, da nossa ligação com a fonte de todas as
coisas.
Fé é esse tipo de auto-entrega a Deus
que se revela e me revela meu verdadeiro eu (que é Ele). Esta é a seqüência:
experiência - revelação, resposta - fé, e, após, vem a reflexão sobre o
experimentado, que resulta em entendimento-teologia, necessário para relembrar
aquela experiência com a verdade, e para poder comunicá-la aos demais. Mas, tal
comunicação é impossível, por muitas razões, e somente em parte, ou por metáforas,
pode ser transmitida. A revelação é, assim, a base da fé. A crença nada
representa, nada é. A teologia é o resultado da exploração intelectual daquilo
que se entendeu acerca da experiência-revelação.
O ascetismo é uma prática sistemática
cujo objetivo é nos prepararmos para a experiência religiosa. Deus está se
revelando a nós incessantemente na realidade do dia-a-dia, mas só o percebemos
se nos tornarmos receptivos a isso. Esse é o objetivo do ascetismo (que procura
o desenvolvimento da sensibilidade, o aguçamento dos sentidos, confiança,
entrega, gratidão, persistência, atenção; não se apegar às coisas; fazer as
coisas tão bem quanto se puder, mas sem se preocupar com os resultados; estar
atento a tudo no momento presente. Tais objetivos somente são alcançados na
experiência mística, pela meditação).
Uma das razões, pelas quais temos de dar
atenção a tudo, é que estamos por demais mergulhados nas coisas do dia-a-dia,
às quais não podemos prestar a devida atenção. Por exemplo, o jejum: estamos
tão empanturrados de alimentos que, de fato, não conseguimos comer um pedaço de
pão com sentimento de gratidão. Nós temos coisas demais. Desse modo, para nos
tornarmos atentos, temos de jejuar e depois comer um pedaço de pão e nele
focalizar, de maneira efetiva, nossa atenção.
O ascetismo é o lado de nossa vida moral
voltado para a experiência mística; o outro lado está voltado para a interação
social (hoje em dia, a igreja esqueceu as práticas do ascetismo e só se dedica
à interação social).
Do mesmo modo que a ciência teve, em
certos momentos, necessidade de ‘presumir’ certos conceitos que depois viu que
eram errados (o éter universal teve papel importante para explicar certos
fenômenos, até fins do séc. XIX), certos conceitos teológicos foram
‘presumidos’ porque pareciam urgentemente necessários para a compreensão da fé,
e agora deixaram de sê-lo (não são mais necessários, como o conceito
geocêntrico, o inferno, o diabo, limbo, o pecado original e outros nos quais os
fiéis acreditaram por muitos séculos).
Não temos meios para imaginar como a luz
do Sol alcança a Terra. Experimentos do séc. XX acerca do magnetismo culminaram
na descoberta de que a luz consiste de campos elétricos e magnéticos que se alternam
rapidamente e viajam pelo espaço na forma de ondas. Isso ultrapassou a física
newtoniana e levou a ciência para a física moderna, a física quântica. Embora
cada onda necessite de um meio para se propagar, uma onda de água necessita da
água, que é perturbada e a seguir se move para cima e para baixo, à medida que
a onda passa através dela; uma onda sonora necessita de partículas de ar, que
vibram à medida que a onda passa por elas, as ondas de luz viajam através do
espaço ‘vazio’, onde não há nenhum meio para transmitir as vibrações. Então, o
que está vibrando numa onda de luz? Isso levou os cientistas a presumir o éter.
Foi necessário Einstein para afirmar que não havia éter algum, que a luz não
precisa de meio para se propagar porque ela se manifesta também sob a forma de
partículas, que podem viajar num espaço vazio. Ele as chamou de quanta de luz, o que deu nome à
física quântica, dos fenômenos atômicos. A luta que se travou com a questão:
‘Em que sentido, exatamente, um quantum de luz é uma partícula ou é uma onda?’ É
a história da física quântica. Os físicos compreenderam, então, que as ondas de
luz são ‘ondas de probabilidades’, isto é, dão a probabilidade de encontrar uma
partícula de luz (fóton) num determinado lugar quando você procura por ela
(observa), e o éter tornou-se desnecessário.
Na teologia, exemplo de teoria
desnecessária é o universo geocêntrico. A Bíblia afirma ‘O Sol parou’ e era
necessário, para não deixar dúvida sobre a verdade da Escritura, dizer que o
Sol é que se movia ao redor da Terra (afirmação contrariada por Galileu
Galilei, que teve de se retratar, no tribunal da santa inquisição, senão
morreria na fogueira). Depois, deixou de ser necessário esse conceito de uma Terra
imóvel, centro do universo.
Como a ciência, a Bíblia (a teologia)
usa de modelos e metáforas para tentar se explicar. As metáforas apontam para a
verdade, mas não são a verdade. Por exemplo, tudo que é dito a respeito de Deus
é analogia; há uma diferença
infinita entre Deus e tudo que dizemos a respeito dele.
Outro conceito que se tornou
desnecessário é o do limbo. Crianças que morressem sem batismo não iriam para o
céu devido ao pecado original; também não poderiam ir para o inferno. Então,
inventou-se o limbo, um estado intermediário, o que provocou tremenda tristeza
àqueles pais cujos filhos morriam antes do batismo. O limbo foi a conclusão
teológica de Santo Agostinho, que considerava o pecado original um pecado transmitido
a cada um durante a concepção. Por isso, toda a humanidade era uma massa amaldiçoada. Para Agostinho, até o ato de conceber uma criança,
o ato sexual, era pecaminoso (embora Deus dissesse: ‘Crescei e
multiplicai-vos’). Essa visão prevaleceu devido à importância de Agostinho na
teologia católica. A noção absurda de limbo insinuou-se na mentalidade católica
e textos teológicos, e veio a ser considerada doutrina, quando na verdade não passava
de uma idéia sem fundamento.
O cristianismo ortodoxo oriental tinha
outra visão do pecado original, não incluindo a idéia de culpa transmitida e
não vendo a humanidade como massa amaldiçoada; as crianças, se morrem antes do
batismo, são levadas à presença de Cristo e não ao limbo.
O problema, porém, não está resolvido; a
doutrina católica não é clara, mas reconhece que a natureza humana está
profundamente ferida (doente), e que temos, por isso, necessidade de salvação.
É pecado original porque, desde nosso nascimento, ‘alguma coisa está fora de
ordem, errada com a existência’, tanto que as tradições religiosas partem desse
reconhecimento de que há alguma coisa errada conosco, que estamos perdidos e
que temos de encontrar o ‘caminho para casa’. Daí o estarmos ‘desterrados neste
vale de lágrimas’, dos católicos; o planeta de expiação e provas’ dos
espíritas; o ‘assédio constante de satanás sobre os homens’, dos evangélicos. E
todos cremos nessa condição, pois os homens não questionam e, assim, nossa
sociedade é confusa e insana.
O desafio da heresia e o contato com
outras tradições têm tido efeito benéfico na teologia; os chamados hereges,
muitas vezes, contribuíram enormemente para o meticuloso exame daquilo que se considerava
errado na doutrina, daí resultando conclusões que, realmente, passaram a ser a
fé da comunidade.
Nos primeiros séculos do cristianismo,
considerava-se que a teologia tinha de ser fruto de profunda convicção
intelectual e, acima de tudo, de intensa experiência pessoal. Quase todos os
Pais da Igreja eram místicos. A crise da experiência religiosa e do misticismo,
no Ocidente, coincidiu com o aparecimento do modelo escolástico, de Tomas de
Aquino. A teologia sofreu tremenda fragmentação; a Igreja se separou da
teologia, e surgiram, seguindo caminhos diferentes, a teologia dogmática, a
teologia moral, a teologia ascética; a própria teologia dogmática dividiu-se em
tratados. O resultado disso foi tremenda tensão entre o teólogo, especializado
no exame do pensamento cristão, e a pessoa já espiritualizada que está tentando
viver profundamente o ensinamento na prática do dia-a-dia (a fragmentação da
teologia resultou em se relegar para um segundo plano a experiência mística,
que deveria ser a meta principal de qualquer religião).
No velho cristianismo, tanto os padres
ortodoxos como os ‘hereges’ tinham basicamente a mesma concepção do objetivo da
teologia: levar o crente a um conhecimento de Deus, pela experiência pessoal.
Não um conhecimento puramente intelectual, mas um conhecimento que transforma
totalmente, e que, como diziam os primeiros escritores cristãos, ‘diviniza’ o
homem (mostra que o homem é divino, que somos a divindade).
A igreja proibia o teólogo de se tornar
muito místico. Ele tinha de permanecer no nível intelectual. Mas isso só
ocorreu no Ocidente; a Igreja Oriental continuou na linha da teologia mística
e, por isso, as duas igrejas se estranhavam mutuamente. Mesmo assim, a Igreja
Ocidental teve seus místicos autênticos: Meister Eckhart, Jacob Boheme, João da
Cruz, Thereza de Ávila, Maister Echkart, entre outros Muitos deles foram
condenados ao silêncio por que a experiência mística tornou-se suspeita após a
cisão protestante.
Acreditava-se que a profunda comunhão
com Deus era privilégio só dos ‘místicos’ e ‘santos’. Hoje, o sentido de
comunhão está amplamente difundido; cada um pode ser um místico em variados graus.
Mas, devido à distinção entre a teologia e as experiências espirituais, Tomas
de Aquino, de profunda experiência espiritual, viveu sua vida mística num plano
imensamente distante da teologia que pregava. Contudo, antes de morrer, quando
a tensão entre sua experiência e sua teologia tornara-se intolerável, ele
afirmou, a respeito de sua pregação teológica: ‘É tudo palha!’ (sem valor).
Do mesmo modo que na ciência existem
obstáculos impostos pelo poder que não financia projetos que não forem de seu
interesse, na Igreja existe o poder de proibir os teólogos de falar, de excluí-los
dos postos onde seriam ouvidos, e nem mais os denominam de teólogo católico
(Giordano Bruno, Leonardo Boff, Teilhard de Chardin são exemplos).
Clima favorável para mudança na Igreja (em
grande parte devido aos mosteiros beneditinos, verdadeiros laboratórios de
experiências religiosas) ocorreu após a experiência mal sucedida de silenciar
alguns dos melhores teólogos, como o jesuíta Teilhard de Chardin, que foi
proibido de publicar qualquer um de seus escritos teológicos ou filosóficos até
o fim de sua vida. Mas, com o Concilio Vaticano II, tornou-se evidente a
necessidade de nova orientação teológica da Igreja, talvez até mesmo para
assegurar a sobrevivência do cristianismo (ver ‘Cristianismo Perdido’).
Lambert, monge beneditino, foi
aprisionado e silenciado pela Igreja por ser favorável ao ecumenismo e ao
diálogo com a Igreja Ortodoxa oriental, anglicanos e protestantes. Antes de
morrer pode ver um Concílio acatar suas idéias de atender às necessidades da
Igreja. Os Cristãos não mais encontravam, na Igreja, o que os satisfizesse,
isto é, uma teologia e uma prática ecumênica mais espiritualizadas, centradas
na celebração do mistério do Cristo (nos ensinamentos e não na vida de Jesus).
Não se pode dizer que uma experiência
religiosa não seja cristã apenas porque ocorreu em outra religião. Específico
para o cristianismo é ‘Jesus’, sua vida, morte e ressurreição; e a conseqüência
nas comunidades que acreditam nele. Mas, ‘Cristo’ não pode ser monopolizado
pelo cristianismo, porque é universal. Não conseguimos compreender Jesus a não
ser como um místico. Misticismo é a experiência da união com a Realidade
Suprema. Por isso, entendemos que o Cristo é universal (como o Buda e outros).
Jesus nos trouxe as implicações da
percepção mística em termos do Reino de Deus, isto é, o poder salvador de Deus
na história. Mas, seus seguidores nos ensinam a história de Jesus, quando, na
verdade, deveriam nos transmitir os ensinamentos de Jesus. O poder salvador de Deus é experimentado na
experiência religiosa, a experiência de pertencer sem limites, que vivenciamos
em nossos momentos de pico (momentos do Reino) e nos liberta da insanidade em
que vivemos. Mas, a mensagem de Jesus vai além do Reino. Ele nos diz que já estamos salvos, que já fomos aceitos. Paulo disse: ‘Não é pelas vossas obras, mas pela graça (grátis,
gratuitamente) de Deus que sois salvos’; logo, a salvação é uma ação de Deus sobre
o homem. Nada precisamos fazer.
JESUS E GAUTAMA.
As mensagens de Jesus e Gautama são
semelhantes: para o budismo, o caminho para a experiência mística é uma vida
moral e correta. Para o cristianismo, as condições são amar, perdoar,
respeitar. Não há diferença. Como Gautama, Jesus não veio ‘para destruir, mas
para cumprir’ e para proclamar que o caminho para a iluminação estava aberto
para todos. Buda ensinou que a iluminação é a percepção daquilo que eternamente
já é. No cristianismo, Paulo
disse: ‘Torne-se o que você é’ (Conhece-te a ti mesmo). Lamentavelmente, após
sua morte, passamos a ter um cristianismo sobre Jesus em vez do cristianismo de Jesus. Enquanto Jesus pregou o Reino de Deus, a Igreja prega
Jesus. Enquanto Jesus afirmou ‘Eu sou Deus’, ou ‘Eu e o Pai somos um’, ele está
totalmente dentro do pensamento místico do ‘Tu és Isto’; mas esse não é o
ensinamento da Igreja, que dá a Jesus posição especial, superior a todos os
demais, como na Santíssima Trindade (que foi imposta aos fiéis cristãos por
decreto do imperador Constantino, apesar do desacordo de 80, dos 320 bispos
presentes, que foram, por isso, expulsos do conclave).
Historicamente, Jesus atribuiu à mulher
posição diferente daquela que a ela a sociedade dava (fato que, parece, nem os
Evangelhos revelam). Isso lhe valeu inimigos, que persistem até hoje.
O que separa Jesus de nós não é o dogma
cristão da Trindade, mas uma compreensão equivocada desse dogma. A compreensão
correta da Trindade inclui você e eu, pois é impossível julgar Jesus separado
de nós (Paulo: ‘somos co-herdeiros’). Se Jesus não pertence à Trindade, nem nós
pertencemos e, assim, não somos participantes da natureza divina.
A afirmação de que o fato de haver ‘ressuscitado’
é a prova de que Jesus é Deus é teologia ultrapassada, do velho paradigma;
hoje, nenhum teólogo responsável fará uma afirmação dessas. O pensamento do
novo paradigma apresenta o problema de maneira diferente: vendo que Jesus
ressuscitara, os discípulos compreenderam que, também eles, ressuscitariam, que
todos o faremos um dia. Por isso Paulo disse: ‘Se nós não ressuscitarmos, nem Jesus
ressuscitou’. Isto é como afirmar que todos somos Deus, pois mesmo após a morte
estaremos vivos de uma maneira diferente (Krishnamurti; um novo estado de
existir), mas não menos real. O importante é que as expressões mais antigas do
cristianismo estavam centralizadas na ressurreição, que é a chave para se
compreender o poder salvador de Deus.
ECOLOGIA E RELIGIÃO
A percepção ecológica e a consciência
ecológica vão muito além da ciência e, num nível mais profundo, elas se unem à
percepção religiosa e à experiência mística, pois são percepção da interligação
e interdependência de todos fenômenos e coisas do universo. Nessa percepção
mais profunda, ecologia e religião se encontram. A visão de mundo que nasce,
hoje, da ciência moderna é ecológica, e percepção ecológica em seu sentido mais
profundo é percepção espiritual. É por isso que o novo paradigma, no âmbito da
ciência, e mais fora dela, é acompanhado de um aumento de espiritualidade, de
uma nova espécie de religiosidade.
Onde a ciência diz ‘ecológico’, a
religião diz ‘ecumênico’, o que dá a idéia de um lar ou morada que deve ser
preservada a todo custo, pois é do homem, talvez para sempre. Não apenas morada
do ser humano, mas de todos os seres; Deus, conforme o Velho Testamento,
‘soprou seu alento para todas
as criaturas viventes’ (hoje, a filosofia da quântica tem a mesma visão).
MISSÃO
‘Dar testemunho da fé’ é tornar a fé
conhecida pregando-a e, acima de tudo, vivendo-a; e só pode dar esse testemunho
aquele que passou pela experiência religiosa (antes disso, qualquer testemunho,
virtude ou ética serão prematuros ou imitação). A missão da Igreja não deve ser
converter (trazer os desgarrados para suas fileiras), mas libertar os homens,
levando-os a perceber o que realmente somos.
MUDANÇA DAS PARTES PARA O TODO
Como vimos, não há partes (isoladas) em absoluto. O que
chamamos de parte é um padrão numa teia inseparável de relações. A única
maneira de entender a parte é entender sua relação com o todo, descoberta que
ocorreu tanto na física, e é fundamental na ecologia, como ocorreu na teologia.
Na teologia do novo paradigma, não se pode falar a respeito de qualquer proposição
de fé sem implicar todas as outras. O entendimento de uma parte, de uma
doutrina ou ensinamento, nunca ocorre isolado do todo, que é onde está o
significado. O significado não está numa afirmação ou num dogma ou no que quer
que seja. Isso lembra a teoria bootstrap,
da física quântica, que afirma que cada partícula, num certo sentido, contém
todas as outras (a alegoria, na qual Buda surge, após a iluminação, com um
colar de gemas cujos brilhos se interpenetram mutuamente). Era esse princípio
de máxima importância na teologia da Idade Média (hoje, está esquecido).
Nessa visão, não se pode, em absoluto,
afirmar que uma coisa, espécie, lei ou princípio é ‘superior’ ou ‘inferior’ a
qualquer outra. Cada espécie animal tem características especiais. Se falassem,
as abelhas, cães etc., diriam que eles são o ponto mais alto da criação.
No novo paradigma, todas as coisas são
criadas pelo alento de Deus, concordando com a Bíblia: ‘Dais o vosso alento a
todas as criaturas e elas vêm à vida. ’, e ‘Se retirais o vosso espírito, elas
morrem’. Desse modo, plantas, animais e todas as coisas, estão cheias do sopro
divino. A confusão nasceu porque isso foi proclamado explicitamente (e
erradamente) apenas para o caso dos seres humanos, pois a mensagem bíblica foi
dirigida somente aos homens.
A concepção de que a alma é uma
característica somente dos seres humanos não é bíblica, nem o conceito de alma
imortal no sentido popular aceito. Apenas um livro da Bíblia fala da
imortalidade da alma, o livro da Sabedoria, de Salomão que, por sinal, não é
reconhecido pelos eruditos judeus nem pelos protestantes.
Até mesmo a ressurreição de Jesus tem
pouco a ver com a imortalidade da alma, noção que penetrou na tradição cristã
através da filosofia grega. A idéia de que somente os seres humanos irão para o
céu não é teologia. É apenas tolice que se disseminou e fez mal às crianças
porque seus animais de estimação não iriam para o céu. A ressurreição da carne,
o Credo, e a vida eterna, são privilégio dos humanos somente na opinião
popular. O significado correto é Renovação Cósmica (o novo estado de existir,
de que falou Krishnamurti).
Muitas coisas afirmadas sobre a
imortalidade da alma não são bíblicas. Foram introduzidas posteriormente,
recebidas de outras tradições e nos confundiram. Quando você morre, o tempo
acabou para você; não há nada após a morte. Morte é, por definição, aquilo após
o que nada mais existe. Não há um ‘depois’. Mas quando o tempo acabou, tudo que
está além do tempo permanece. Não está sujeito à mudança. Fora do tempo,
possuímos a vida num ‘agora que não acabará nunca’. O tempo não mais nos
separará (pois tempo é ilusão, e todos somos um só) e todos os seres terão vida
plena, numa plenitude que já é nossa (mas que, agora, não percebemos, como
afirmam as tradições místicas ocidentais e orientais).
A Bíblia diz que ‘toda a criação geme
esperando pela revelação dos filhos de Deus, desde as angústias do nascimento’.
Estamos todos presos nessa condição comum que é considerada dolorosa. Mas,
Isaias afirma que, no fim dos tempos ‘o lobo se deitará junto ao cordeiro; a
criancinha porá sua mão no covil das cobras’. Este é o projeto para a
humanidade, uma situação onde haverá total harmonia e total ingenuidade
(simplicidade, ausência de malícia), total paz (o novo estado de existir).
Quanto à posição humana no universo,
quando é que sentimos que somos feitos à imagem e semelhança de Deus? Nos
nossos melhores momentos, pois toda noção de Deus vem desses momentos especiais
de pico, quando percebemos que nosso verdadeiro eu é o próprio Deus.
Infelizmente o Livro do Gênesis tem sido
mal interpretado. Fomos colocados no Jardim (Éden)‘para o cultivar e guardar’.
É aí que entra nossa responsabilidade: somos responsáveis por esse Jardim;
portanto, devemos administrá-lo e não dominá-lo e explorá-lo de modo destrutivo
como temos feito. O jardineiro, os homens, parece que, para cultivá-lo, estão
do lado de fora do jardim, mas essa visão de separação equivale à Queda que
afasta o jardineiro do jardim. Antes da Queda, o jardineiro não sabia que
estava nu. Essa idéia de nudez nada tem que ver com sexualidade; é a
experiência da separação (dualismo), a condição em que todos nós nos
encontramos, alienados (sem percepção) do cosmos. Mas, no Paraíso, somos parte
integral do todo (somos o todo; ver Schrödinger); ali, estamos em casa.
Responsabilidade é a capacidade de dar
uma resposta apropriada, é sensibilidade. A maioria das espécies tem a resposta
adequada. Não há nada de não-apropriado na maneira como animais e plantas
respondem ao seu meio-ambiente. Mas a resposta humana pode não estar
apropriada, pois temos a capacidade para destruir a natureza e, portanto, a nós
mesmos. Parece que somente os seres humanos têm o terrível poder de agir assim,
de destruir sua própria casa, seu planeta.
Daí vem a questão da liberdade. A
liberdade e a responsabilidade caminham juntas. Isso é parte da nossa
experiência: enquanto jardineiros nossa responsabilidade é a de nos religarmos
ao jardim e não destruí-lo, nos separando dele e nos colocando,
irresponsavelmente, acima da natureza, como seus donos, como se pudéssemos
fazer dela o que quisermos. Esse é um aspecto da Queda, que nos toldou a visão
pelas ilusões geradas (a Queda nos deu o primeiro dualismo ilusório: a divisão
eu/não-eu, eu e o universo, a ilusão de que o universo é ameaçador, inimigo;
por isso, sofremos).
A noção política de liberdade, do velho
paradigma clássico, contrasta surpreendentemente com a noção de liberdade dos
Evangelhos. A política permite que se passe por cima dos outros, enquanto o
evangelho diz, em Filip 2: ‘A si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de um
servo’, e João Batista: ‘Ele deve crescer, enquanto que eu devo diminuir’.
Jesus: ‘Aquele que quiser ser o maior, que se faça o menor’. Num universo
totalmente inter-relacionado, o crescimento de qualquer um implica no
crescimento dos demais (e não, no contrário, que o homem sempre faz).
Nós temos capacidade e liberdade de
formar conceitos (mas não de escolher) e, conforme o modo como utilizamos essa
capacidade somos levados a transtornos (conflitos), pois nossos conceitos não
vêm da fonte divina. Esta só é alcançada na experiência mística.
A principal discussão do pensamento
ecológico atual centraliza-se na diferença entre ecologia profunda e
superficial. A superficial vê os seres humanos como situados acima da natureza,
como os mais importantes e os dominadores; a ecologia profunda vê os seres
humanos como apenas mais um fio dentre os muitos fios da teia da vida, todos de
mesma importância.
Deus não está lá em cima e o universo
aqui em baixo. Por isso Santo Agostinho disse que a transcendência de Deus é
uma transcendência para dentro: ‘Deus está mais perto de mim do que eu mesmo’. Assim,
toda resposta às dúvidas que temos sobre Deus tem que ser encontradas na nossa
própria experiência, dentro de nós, e não nas palavras de outrem. A experiência
de Deus está além do conhecimento (da imaginação, do raciocínio, do intelecto,
do ego). A experiência de Deus transcende todos os nossos conceitos, até mesmo
o conceito de transcendência, de tudo a respeito do que se possa falar, e o silêncio
é a postura adequada. Um axioma básico da tradição teológica afirma que tudo
que a teologia diz a respeito de Deus, não importa quão correto seja, é mais
falso do que verdadeiro (isto é, refere-se, apenas, aos ‘efeitos’ de Deus).
Gregory Bateson dizia que a mente não é
uma coisa, mas um processo de auto-organização, o próprio processo da vida.
Logo, em todos os níveis, o processo da vida é um processo mental. Assim, (como
o processo mental de cada ser é que o organiza), o processo mental da
consciência coletiva do nosso planeta é o processo de auto-organização do
planeta, enquanto a consciência cósmica é o processo de auto-organização de
todo o cosmos (ver ‘Universo Autoconsciente’). Isso é o que entendemos por
‘Deus’: o processo cósmico de auto-organização (bootstrap).
Pela teologia, mesmo no velho paradigma,
a criação é um processo em andamento aqui e agora. Não fosse assim, tudo
entraria em colapso. (A criação é um processo de sempre, sem fim, e inclui a
mente senciente que completa o processo criativo, determinando, com o colapso
das ondas de probabilidades, a manifestação de tudo no universo).
Embora a tradição cristã creia que Deus
é um em três pessoas, Deus não é uma ‘pessoa’ no sentido comum; significa que
seu relacionamento com o homem é ‘pessoal’, e se dá por meio da compaixão e da
auto-revelação (advindas da meditação).
O uso correto do termo Deus é para indicar
a direção do pertencer, à última e mais elevada realidade. Isso é misticismo, e
qualquer um pode vivenciá-lo diariamente, porque Deus está relacionado conosco
de maneira pessoal, e é o nosso verdadeiro eu. Os grandes teólogos sempre
afirmaram que fazemos parte da (os místicos, que somos a) própria vida de Deus.
Dizemos ‘Deus é amor’ exatamente porque
‘amor’ é precisamente o pertencer, o que se sente ao pertencer. Quando o homem
rastreia até a sua fonte - o vazio - a compaixão que recebe de volta, fica
sabendo o porquê da afirmativa ‘Deus nos amou em primeiro lugar’. Na meditação,
podemos ter essa experiência.
Dizer que Deus criou os seres humanos à
sua imagem, ‘macho e fêmea Deus
os fez’, implica o fato de que a imagem de Deus é o par, e não o indivíduo. No
entanto, toda a hierarquia católica consiste de homens e Deus é sempre macho;
devia ser ele e ela. É injustiça, na Igreja e na
tradição cristã, manter a mulher numa posição de inferioridade. Jesus fez
inimigos ao tratar as mulheres como iguais aos homens, o que não era aceito na
sociedade de então e, mesmo hoje, em muitas sociedades e culturas.
Em que sentido somos criados à imagem de
Deus? Não sabemos com que Deus se parece, senão em nossos melhores momentos;
nas experiências místicas sabemos que ‘tocamos’ a divindade, que nosso
verdadeiro eu é o próprio Deus. É isso que é ser criado à imagem e à semelhança
de Deus. Isso nos é dado com nossa própria existência e é uma realidade que
podemos descobrir se nos dirigirmos às profundezas de nosso ser, pela
meditação. Nossa vida tem como origem e fim a ‘vida’ de Deus. É ali que nossa
vida como seres humanos começa e é ali que ela termina.
Se desejamos amar a Deus, devemos
voltar-nos para o humano e para toda a criação, pois tudo tem o sopro de Deus
(mas o verdadeiro amor, como as verdadeiras virtudes, só nos vem com a
experiência religiosa).
Espírito e matéria são duas faces da
mesma moeda, dois aspectos entrelaçados da realidade (não são coisas
separadas).
O invisível é o modelo do visível (Jung,
os arquétipos).
A teoria da auto-organização, como as
tradições místicas, afirma que não há objetivo na criação. O que acontece é
criatividade, como resposta mental contínua às influencias (causadas pelas
mudanças) ambientais, a cada passo. Mas, não há plano, nem projeto ou direção.
Deus simplesmente é; Deus não
tem propósito.
Antes, acreditava-se que as descrições
cientificas eram objetivas, isto é, independentes do observador humano e do
processo de conhecimento. No novo paradigma, o processo de conhecimento
obrigatoriamente tem de ser incluído na descrição dos fenômenos naturais. Na
teologia, acreditava-se que os enunciados fossem objetivos, isto é, independentes
do indivíduo que observa e do processo de conhecimento. O novo paradigma afirma
que a reflexão sobre os modos de conhecimento não-conceituais - intuitivos,
afetivos, místicos - tem de ser obrigatoriamente incluída no discurso
teológico; há um consenso emergente de que os modos de conhecimento
não-conceituais (sem conceitos nem palavras, em total silêncio mental) constituem
parte integrante e essencial da teologia.
O mundo não existe objetivamente; ele é
criado, gerado, no processo de
conhecimento (também conforme a física quântica). Há uma realidade, mas não há
coisas, árvores, pássaros. Esses padrões são criados por nós, no processo de
conhecimento. À medida que observamos, ‘criamos’ um padrão e o destacamos do
restante, e ele se torna um objeto. Nesse sentido, estamos continuamente
criando o mundo (isto é, o ser cerebrado e senciente completa o processo
criativo de Deus. Ver ‘O Universo Auto-consciente’).
Todo conhecimento é a partir de dentro
do sujeito observador. Todo conhecimento é uma espécie de participação num
diálogo em andamento com a realidade. Assim, aquilo que realmente conhecemos a
respeito de Deus é sempre e tão-somente a nossa experiência de Deus (Jung,
Eckhart). O que não for experiência nossa será apenas projeção, recebida de
outrem, coisa emprestada. Só a respeito de nossas experiências pessoais de Deus
é que podemos falar com convicção. Isso implica em que, assim como Deus nos
criou, nós também criamos Deus à nossa imagem e semelhança. Por isso, disse
Eckhart: ‘O olho com que vejo Deus é o mesmo olho com que Deus me vê’ (ou, o
meu olho é o olho de Deus, pois somos um só).
A definição grega de ser humano é zõon logikon, animal possuidor de logos, a palavra, que cria um cosmos a partir do nada (como,
hoje, a física quântica afirma). E isso se aplica a todos os seres vivos. A
diferença é que nós, e talvez os animais superiores, temos consciência
reflexiva.
A união do pequeno eu (a consciência
localizada) com o grande Eu (a consciência universal) é o que denominamos
re-ligação, Religião com ‘r’ maiúsculo. O demais é apenas crença, suposições,
opiniões, fé sem base, raciocínio ou interpretações equivocadas, ilusões e,
assim, sem valor.
A noção de um Deus separado da criação,
que fica lá fora, em algum céu, é do velho paradigma teológico. No novo
paradigma, onde o universo é todo interligado, interdependente, interconexo,
não mais é possível expressar isso em palavras. Deus não é mais o único que criou este
mundo desta ou daquela maneira (cerebrados são necessários). Há, por exemplo,
um enunciado do sufismo: ‘Eu era um tesouro escondido e, assim, para que fosse
encontrado, criei o mundo. ’ É o ‘jogo divino’, dos hinduístas. Há, desse modo,
um jogo em andamento, e somos convidados a entrar nele. (Krishnamurti: a mente
era vazia e, por isso, o cérebro existe no espaço e no tempo. Ken Wilber: a
conversa entre Deus e Abraão. Os grandes psicólogos e filósofos: a parte do
universo que vê e a parte que é vista; o universo se vê a si próprio, através
de nossos sentidos objetivos).
Dogma é um enunciado sobre a realidade
indizível, isto é, impossível de ser comunicada. Ele jamais retrata a realidade
total, sendo sempre uma sua aproximação. A experiência individual,
inexprimível, toma a forma de dogma para inspiração dos fiéis (não estamos
falando dos dogmas impostos pela conveniência da igreja, mas dos oriundos de
experiências verdadeiras).
Na ciência não há verdade permanente; a
questão está sempre sujeita à revisão. Mas, na religião, o dogma é tido como
verdade permanente e seu significado popular é prejudicial, pois você não tem
de entendê-lo; apenas tem de aceitá-lo. E a Igreja ainda hoje é rigorosa quanto
a isso. No passado, os castigos foram terríveis: fogueira etc. Tiveram início
com Constantino, ao ‘legalizar’ o cristianismo. A idéia da Igreja é fazer com
que você chegue à profunda experiência do mistério que o dogma só expressa de
maneira aproximada. Origina-se dogma do grego dokein que significa ‘opinião’, ‘ensinamento oficial’ de uma
filosofia ou igreja. Tem a mesma origem de dogma a palavra doxa, glória, a manifestação das
qualidades de uma pessoa. Eu formo a minha opinião com base na doxa, na glória
dessa pessoa. Assim, ortodoxia significa ‘a maneira correta de glorificar a
Deus’, ou a percepção correta da glória que emana de Deus. Dogma é, pois, nossa
glorificação de Deus e da glória, a doxa, que emana de Deus.
Popularmente, glória sugere o esplendor
de Deus no seu trono lá no alto. Mas, essa concepção é totalmente errada.
Quando o grego era a língua oficial da Igreja, a resposta para a pergunta ‘O
que é a glória de Deus?’ Era um dos mais antigos enunciados teológicos da
tradição cristã: ‘A glória de Deus é o ser humano plenamente vivo’ (com vida
abundante).
Do mesmo modo que Buda apresentou o
Caminho Óctuplo, para a ‘cura’ dos males do homem, Jesus trouxe lições
semelhantes, que servem à experiência humana universal. No entanto, ao
contrário dos ensinamentos de Buda, os de Jesus são, com freqüência,
confundidos com alguma espécie de verdade imutável e independente da
experiência pessoal quando, na realidade, a compreensão plena dos ensinamentos
depende da experiência individual de cada um.
A razão por que não há dogmas no budismo
está provavelmente além do budismo e do cristianismo, na fonte de onde emergem
as duas tradições. O budismo insiste que você não pode dizer coisa alguma a
respeito da realidade que você percebe na sua experiência; ela é indizível. Já
no cristianismo, você tem de dizê-lo (embora Paulo dissesse; ‘vi e ouvi coisas
inefáveis’). Ambos têm base em nossa experiência; quando temos experiências
religiosas, sabemos que jamais poderemos traduzi-las em palavras, mas sempre
tentamos fazê-lo. O dogma surge desse esforço. Por isso, seu significado é
sempre aproximado. No budismo, o ensinamento último termina no silêncio. Mas,
no cristianismo, o dogma surge da recusa em questionar, na aceitação pura e
simples da interpretação aproximada da verdade percebida (submissão à fé sem
questionamento).
Etc.,
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Extratos de ‘Sabedoria Incomum’, de Fritjof Capra, Cultrix, 1988:
Um dos primeiros contatos que tive com a
espiritualidade oriental foi meu encontro com Krishnamurti, no final de 1968,
quando ele proferiu uma série de palestras na Universidade da Califórnia.
Estava com setenta e três anos e sua aparência era absolutamente estonteante...
A dignidade do semblante, o inglês medido e perfeito e, acima de tudo, a
intensidade da concentração e da sua presença deixaram-me encantado e perplexo.
O impacto de seu carisma e aparência física foi intensificado e aprofundado
pelas coisas que disse... A tarefa a que se propôs - usar a linguagem e o
raciocínio para levar seus ouvintes além da linguagem e do raciocínio - era
extremamente difícil, mas o modo como ele se desincumbia dela era
impressionante... A platéia ficava arrebatada, dominada por suas palavras e
totalmente atenta. Dizia: ‘Examinemos juntos a questão, sem julgarmos, sem
condenarmos, sem justificarmos. ’ No final, ficava uma sensação nítida e forte
de que o único meio para se resolver qualquer de nossos problemas existenciais
é ir além do pensamento, além do ego, além da linguagem e do tempo; ‘libertar-se
do conhecido’, do passado... (isso é meditação).
Fiquei fascinado, mas também
profundamente perturbado, com suas palestras. Após cada uma delas, Jacqueline e
eu permanecíamos acordados durante várias horas, sentados junto à lareira,
discutindo o que ele dissera. Era um mestre espiritual radical e me colocou
frente a um grave problema: eu mal iniciara uma promissora carreira científica,
com a qual estava bastante envolvido emocionalmente, e então vinha
Krishnamurti, com todo seu carisma e persuasão, dizendo para eu parar de
pensar, para me libertar de todo conhecimento, para deixar o raciocínio lógico
para trás.
O que isso significava no meu caso?
Deveria desistir da carreira nesse estágio inicial, ou continuá-la, abandonando
toda esperança de alcançar a auto-realização espiritual?
... Senti-me um tanto intimidado quando
finalmente vi o mestre cara a cara, mas não quis perder tempo. Eu sabia por que
estava ali. ‘Como posso ser um cientista’, perguntei-lhe, ‘e ainda assim seguir
seu conselho para libertar-me do pensamento e do raciocínio?’ Krishnamurti não
hesitou sequer um instante. Respondeu minha pergunta em dez segundos, e de um
modo que resolveu completamente o meu problema: ‘Primeiro, você é um ser humano’, disse ele, ‘e depois, um cientista. Antes, você tem
de se tornar livre, e essa liberdade não pode ser atingida por meio do
pensamento ou raciocínio. Ela é atingida pela meditação - a compreensão da
totalidade da vida, em que cessam todas as formas de fragmentação. Uma vez que
você alcance a compreensão da vida como um todo’, explicou ele, ‘pode se
especializar e trabalhar como cientista sem problema algum’.
Depois disso perdi contato com
Krishnamurti, mas nunca deixei de reconhecer sua influência decisiva sobre
mim...
Em 1983, sul da Índia. Às oito horas
Krishnamurti apareceu, vestido com trajes indianos, e caminhou lentamente, mas
com enorme segurança, até uma plataforma que fora erguida ali. Foi maravilhoso
vê-lo, aos oitenta e oito anos de idade, fazendo sua entrada como fizera por
mais de meio século, subindo as escadas da plataforma sem ajuda de ninguém...
Ele falou por setenta e cinco minutos
sem nenhuma hesitação, quase com a mesma intensidade que eu presenciara quinze
anos antes. Sua clareza e habilidade eram as mesmas. Sua análise do tema foi
bela e cristalina: o único meio de libertar-nos do desejo (medo, violência,
inveja, ambição, condicionamentos, influências da genética, cultura, sociedade,
crenças, ilusões, etc.) é libertar-nos do processo que produz os pensamentos
(pela meditação).
O problema que Krishnamurti resolvera
para mim, à maneira zen, de um só golpe, é o mesmo problema com que a maioria
dos físicos se depara quando confrontados com as idéias das tradições místicas
- como é possível transcender o pensamento sem abandonar o compromisso com a
ciência? É esse o motivo pelo qual, penso eu, tantos dos meus colegas
sentiram-se ameaçados por minhas comparações entre física e misticismo. Eu
também sentira a mesma ameaça. Mas tive uma enorme felicidade: a pessoa que me
fez perceber a ameaça foi a mesma que me ajudou a transcendê-la.
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