terça-feira, 25 de março de 2014

(9) A ESPIRITUALIDADE E A VISÃO DA NOVA FÍSICA’ (Jan 2008)
                                      
                                     
       Baseado em livro de Fritjof Capra, físico quântico e pesquisador do misticismo oriental (com os monges beneditinos David e Thomas, estudiosos profundos do cristianismo e das tradições místicas; Thomas foi proibido, pela igreja, de estudar ioga e religiões orientais). Cultrix, 1988.
      Enormes mudanças, vindas das descobertas da física quântica, trouxeram implicações tremendas e vieram comprovar que a visão de mundo do misticismo milenar é idêntica à visão de mundo trazida pela nova física; tais mudanças se refletem em todas as áreas de atuação do homem, como na das ciências, psicologias, psiquiatria e nas religiões profundas.
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       INTRODUÇÃO
       Visão prévia dos novos paradigmas na ciência e na teologia:
       Na ciência, o paradigma cartesiano é substituído por um paradigma novo, holístico, ecológico e sistêmico.
       Na teologia, o paradigma racionalista da teologia, baseada em textos das Escrituras (como se as revelações contidas nas Escrituras Cristãs fossem a verdade definitiva, isto é, que após elas, nenhuma outra possa ser tomada como revelação genuína) usados como prova dos argumentos escolásticos (escolástica, filosofia baseada em Tomás de Aquino e Aristóteles, seguida pela Igreja) é substituído pelo paradigma holístico, ecumênico (geral, universal) ou tomístico transcendental (relativo a Tomás de Aquino).
       Na ciência, muda-se da parte para o todo. A relação entre as partes e o todo se inverte; antes, acreditava-se que, em qualquer sistema complexo, o todo poderia ser entendido a partir do estudo de suas partes. Hoje, as propriedades das partes só podem ser entendidas a partir da dinâmica do todo; não há, pois, absolutamente, partes. O que chamamos de parte é meramente um modelo numa teia interdependente de relações. Hoje, sabe-se que é o todo que determina o comportamento das partes, ao contrário do que se acreditava anteriormente.
       Na teologia, antes, acreditava-se que, para a compreensão da verdade inerente às revelações, deveria lhe ser acrescentada a soma total dos dogmas. Hoje, a relação entre as partes e o todo está invertida; muda-se de Deus como revelador da verdade, para a realidade como auto-revelação da divindade (Deus se revela o tempo todo). E a Revelação é um processo ininterrupto, não constituído de um bloco único, como se presumia, e o dogma (nem todos) focaliza (por aproximação) as experiências pessoais (inexprimíveis) da manifestação de Deus entre os homens.
       Na ciência, toda teia de relações é intrinsecamente dinâmica e sabe-se que a compreensão do processo de conhecimento (isto é, a participação da mente do homem) deve ser incluída explicitamente para a percepção e descrição dos fenômenos naturais. Antes, os alicerces do conhecimento estavam se desagregando; leis, partes, princípios e blocos de construção fundamentais, como se acreditou e se usou na ciência e filosofia por séculos, mostraram-se ser apenas representações metafóricas. Hoje, vigora a visão da rede interconexa de relações entre todos os fenômenos e coisas, rede na qual não há hierarquias; nenhuma coisa é mais importante que a outra. Também, contrariamente ao pensamento anterior de que a ciência poderia vir a explicar a certeza absoluta e final, reconhece-se que ela nunca poderá dar uma compreensão completa e definitiva da realidade e que todos os conceitos, teorias e descobertas são sempre limitados e só aproximações (os princípios da incerteza e da incompletude, dos físicos quânticos).
       Na teologia, o novo paradigma mostra que o processo de ‘salvação’ é a grande verdade da manifestação de Deus, e que a revelação, como tal, é intrinsecamente dinâmica. Acreditava-se que os relatos (dos iluminados) eram objetivos, isto é, independentes da pessoa que os experienciava e do processo de conhecimento. Hoje, percebe-se que a reflexão sobre os modos não-conceituais de conhecimento - intuitivos, afetivos, místicos - deve ser incluída explicitamente no discurso teológico, havendo uma concordância crescente de que o modo de conhecimento não-conceitual (sem conceitos ou palavras; com o afastamento do ego; meditação) constitui parte integrante e essencial da teologia. As bases do conhecimento teológico estavam se desagregando; a crença em leis, princípios, blocos de construção fundamentais, usados por séculos pela teologia, ruiu. Está surgindo a visão da rede de inter-relações, os enunciados da teologia formando uma rede interconexa de diferentes perspectivas sobre a realidade transcendental. Não há mais um bloco único de enunciados de verdades teológicas, mas uma rede na qual cada aspecto pode produzir introspecções (reflexões íntimas) válidas sobre a verdade, o que implica no abandono da idéia de um sistema único de teologia constituindo a verdade única para todos os que crêem e para a doutrina Reconhece-se o caráter limitado e aproximado de todo enunciado teológico e sabe-se que a teologia nunca poderá fornecer uma compreensão definitiva e completa dos mistérios divinos (da verdade última). 

       EXPLICAÇÕES
       O autor, pesquisador das tradições orientais, percebeu semelhanças surpreendentes entre as teorias da ciência moderna, particularmente as da física quântica, que é sua área, e as idéias básicas do hinduísmo, budismo e taoísmo. Essa descoberta lhe trouxe intensa transformação pessoal, que o fez voltar-se para a espiritualidade oriental.
       O monge David, católico e budista, tal como são, hoje, muitas pessoas que redescobriram seu cristianismo num nível muito mais profundo graças à prática do Zen, afirma que, numerosas pessoas, que sob todos os aspectos podem ser chamadas de adultos, pela formação religiosa não passam de crianças (estão, ainda, no jardim da infância e, dificilmente, chegarão à Graduação Universitária). Isso ocorre com cientistas e mesmo com religiosos praticantes, estudiosos e devotos (particularmente no Ocidente).

       CIÊNCIA E TEOLOGIA
       O objetivo da ciência é o conhecimento sistemático do universo físico. Esse objetivo, de conhecer para dominar ou controlar a natureza, está muito ligado à teologia. Nesta, o objetivo é o conhecimento direto do Espírito Absoluto no aqui/agora, um conhecimento que transforma a maneira como o homem vive sua vida no mundo.
       Quando uma experiência espiritual original é transformada em religião, surge a institucionalização da espiritualidade. A religião institucionalizada procura entender e expressar a experiência original em palavras e conceitos e, a seguir, produz sua dimensão social ao transformar aquela experiência num princípio de vida para a comunidade. Religião, com R maiúsculo, é o sentido pleno de religiosidade do qual fluem todas as religiões (com r minúsculo). Na vida dos homens, religiosidade transforma-se em religião; quando institucionalizada, torna-se religião organizada, popular.
       Numa experiência de pico (em geral fruto da meditação) encontramos significado para tudo e tudo faz sentido, vida, morte, dor, tudo. Vagamente, e até inconscientemente, ansiamos por esse sentido. Daí pode surgir a Espiritualidade (ou religiosidade), um modo de ser e viver que flui a partir da experiência religiosa. (Como diz K, ‘compreender é agir’).
       A vida é um questionamento. E, por vezes, sem razão aparente, num estalo, sabemos a resposta, resposta que não é soletrada, mas compreendida pelo íntimo e dizemos ‘É isso aí!’ Essa experiência produz tranqüilidade em nosso estado comum de inquietação com o qual, permanentemente, vivemos. Nesses momentos de pico, sentimos que fazemos parte de algo maior do que nós, e que ‘encontramos o nosso lugar’, ‘pertencemos a isto’, ‘agora estamos em casa’, que pertencemos a todos os seres, homens, animais, plantas; isto é, nós todos nos pertencemos nesta unidade cósmica (uns aos outros e ao todo onde tudo é Um).
       Mas, como nascem, dessa percepção, as religiões que vemos ao nosso redor? Quando ocorre uma experiência que nos comove profundamente, e que percebemos ter relação com a existência, forçosamente refletimos sobre ela; daí surge a teologia, que é o esforço para compreender o significado da experiência e sua implicação em face da Religião; essa compreensão é que nos trás a experiência religiosa de pertencer àquilo de que pensávamos que éramos apenas parte. A raiz de religião é ligação (religação); a de teologia é theos, Deus (estudo sobre as coisas de Deus). Isso nos trás a referência de nosso pertencer, a única realidade à qual pertencemos e que pertence também intimamente a nós. Essa experiência de vir a acreditar q se pertence forçosamente leva a uma certa maneira de viver, uma conduta moral que está relacionada com a realidade cósmica. Quando o intelecto trabalha com a experiência religiosa, surge a teologia.
       A percepção de pertencer trás alegria sem limites (bem-aventurança), e faz com que se deseje sempre mais e mais. E nossa vontade é motivada a se mover em direção àquilo que, por fim, se torna a ética ou a moral (para os relacionamentos, os pensamentos e o comportamento). A moral é nossa boa vontade em nos conduzirmos em relação àqueles com os quais estamos unidos, como percebemos nessa experiência, por um forte vínculo de pertencer. Já o ritual destina-se a celebrar e relembrar repetidas vezes essa experiência do mais profundo sentimento de pertencer (evidentemente, para quem teve a experiência). A ‘gratidão’ é expressa pelo ritual; a gratidão por estar vivo, por pertencermos a este universo, pela aquisição da percepção. O ritual é uma grata celebração da vida, que percebemos, pela experiência mística, ser infinita e eterna.
       A ciência e a teologia são ambas reflexões sobre essa experiência, nas quais tentamos sempre atingir níveis cada vez mais profundos da realidade. A teologia reflete sobre as experiências mais relevantes para o ser humano, as experiências internas; a ciência reflete sobre as experiências externas (hoje, a filosofia da ciência já está refletindo sobre experiências internas, particularmente a partir da quântica, da aproximação das tradições orientais e dos trabalhos de místicos e de psicólogos sérios e profundos, ocidentais).
       Como tais reflexões se referiam a aspectos diferentes, tradicionalmente ciência e religião estavam em choque (fato que tende a cessar pois, hoje, ambas se inspiram mutuamente). Ambas são caminhos que levam a um maior entendimento da realidade; apresentam grandes diferenças e grandes semelhanças. Baseiam-se na experiência e num certo tipo de observação sistemática e, mesmo havendo grandes diferenças nas maneiras como cientistas e teólogos observam, são reflexões teóricas sobre a experiência. São abordagens da experiência humana, a ciência perguntando o ‘como’ e a teologia o ‘por que’. O ‘por que’ está ligado ao significado; o ‘como’ quer saber de que modo um fenômeno está ligado a todos os outros fenômenos. Se percebermos mais e mais conexões, acabamos revelando o contexto inteiro que, na verdade, é o ‘por que’ buscado (e, hoje, ciência e religião se complementam).
       A religiosidade de uma pessoa influencia inevitavelmente sua posição na vida de relações, e é expressão de sua teologia (religião) particular, pessoal, de sua reflexão individual sobre a experiência que teve de Deus.
       (Há, hoje, muitas pessoas, inclusive cientistas, praticando a meditação zen budista, que está em perfeito acordo com as teorias científicas).
       Toda e qualquer coisa que se afirme em ciência será sempre descrição aproximada e limitada da realidade. Do mesmo modo na teologia, que é a fé em busca de convencimento, não se pode abranger o significado total do mistério; seu entendimento é sempre aproximado e limitado. Mas, quando o homem está muito envolvido com a vida tanto quanto com a teologia, tende a julgar essas aproximações como sendo a verdade inteira, interpretando-as erradamente, fato que ocorre com freqüência, e que tem trazido implicações nocivas à humanidade.
       A fé religiosa é um conhecimento gerado por certo tipo de experiência individual. O cristianismo e o budismo enfatizam que a fé verdadeira vinda do conhecimento de Deus é uma dádiva de Deus. Contudo, a fé sem base, a fé transmitida pelas religiões populares, usada como sinônimo de crença, é deficiente e muitas vezes perigosa.
       A fé é uma confiança naquele supremo sentimento de pertencer que se vivencia nos momentos de pico, na experiência religiosa. É a postura pela qual você se entrega aos cuidados desse pertencer. Mesmo cientistas, em particular os mais intuitivos, possuem esse tipo de fé. A teologia é algo que vem depois da fé; está a serviço da fé e serve para tentar expandi-la.
       O sentimento de estar salvo vem da percepção de nossa ligação com o todo, da experiência de estar, com certeza inabalável, em casa.
       Hoje, entende-se a revelação como um processo histórico sempre em andamento, no qual a natureza e o propósito de Deus são revelados para ‘aqueles que o buscam’. Quando tenho uma experiência religiosa, estou explorando, conhecendo Deus; contudo a ação não é minha; é ação de Deus que se revela à minha compreensão. Quando buscamos Deus, de súbito chegamos a um ponto no qual descobrimos que Deus está se entregando a nós. Na meditação não somos nós que chegamos a ela, mas ela é que chega a nós. A revelação é sempre individual (nunca coletiva) e subjetiva (nunca exterior). É uma introvisão, uma percepção interna de nossa parte. Uma vez que Deus é o nosso ‘eu’ mais profundo, a verdade, a auto-revelação divina é sempre percebida pelo âmago de nosso ser (na nossa psique). Não é uma informação vinda de fora; é uma descoberta que vem de dentro, da nossa ligação com a fonte de todas as coisas.
       Fé é esse tipo de auto-entrega a Deus que se revela e me revela meu verdadeiro eu (que é Ele). Esta é a seqüência: experiência - revelação, resposta - fé, e, após, vem a reflexão sobre o experimentado, que resulta em entendimento-teologia, necessário para relembrar aquela experiência com a verdade, e para poder comunicá-la aos demais. Mas, tal comunicação é impossível, por muitas razões, e somente em parte, ou por metáforas, pode ser transmitida. A revelação é, assim, a base da fé. A crença nada representa, nada é. A teologia é o resultado da exploração intelectual daquilo que se entendeu acerca da experiência-revelação.
       O ascetismo é uma prática sistemática cujo objetivo é nos prepararmos para a experiência religiosa. Deus está se revelando a nós incessantemente na realidade do dia-a-dia, mas só o percebemos se nos tornarmos receptivos a isso. Esse é o objetivo do ascetismo (que procura o desenvolvimento da sensibilidade, o aguçamento dos sentidos, confiança, entrega, gratidão, persistência, atenção; não se apegar às coisas; fazer as coisas tão bem quanto se puder, mas sem se preocupar com os resultados; estar atento a tudo no momento presente. Tais objetivos somente são alcançados na experiência mística, pela meditação).
       Uma das razões, pelas quais temos de dar atenção a tudo, é que estamos por demais mergulhados nas coisas do dia-a-dia, às quais não podemos prestar a devida atenção. Por exemplo, o jejum: estamos tão empanturrados de alimentos que, de fato, não conseguimos comer um pedaço de pão com sentimento de gratidão. Nós temos coisas demais. Desse modo, para nos tornarmos atentos, temos de jejuar e depois comer um pedaço de pão e nele focalizar, de maneira efetiva, nossa atenção.
       O ascetismo é o lado de nossa vida moral voltado para a experiência mística; o outro lado está voltado para a interação social (hoje em dia, a igreja esqueceu as práticas do ascetismo e só se dedica à interação social).
       Do mesmo modo que a ciência teve, em certos momentos, necessidade de ‘presumir’ certos conceitos que depois viu que eram errados (o éter universal teve papel importante para explicar certos fenômenos, até fins do séc. XIX), certos conceitos teológicos foram ‘presumidos’ porque pareciam urgentemente necessários para a compreensão da fé, e agora deixaram de sê-lo (não são mais necessários, como o conceito geocêntrico, o inferno, o diabo, limbo, o pecado original e outros nos quais os fiéis acreditaram por muitos séculos).                              
       Não temos meios para imaginar como a luz do Sol alcança a Terra. Experimentos do séc. XX acerca do magnetismo culminaram na descoberta de que a luz consiste de campos elétricos e magnéticos que se alternam rapidamente e viajam pelo espaço na forma de ondas. Isso ultrapassou a física newtoniana e levou a ciência para a física moderna, a física quântica. Embora cada onda necessite de um meio para se propagar, uma onda de água necessita da água, que é perturbada e a seguir se move para cima e para baixo, à medida que a onda passa através dela; uma onda sonora necessita de partículas de ar, que vibram à medida que a onda passa por elas, as ondas de luz viajam através do espaço ‘vazio’, onde não há nenhum meio para transmitir as vibrações. Então, o que está vibrando numa onda de luz? Isso levou os cientistas a presumir o éter. Foi necessário Einstein para afirmar que não havia éter algum, que a luz não precisa de meio para se propagar porque ela se manifesta também sob a forma de partículas, que podem viajar num espaço vazio. Ele as chamou de quanta de luz, o que deu nome à física quântica, dos fenômenos atômicos. A luta que se travou com a questão: ‘Em que sentido, exatamente, um quantum de luz é uma partícula ou é uma onda?’ É a história da física quântica. Os físicos compreenderam, então, que as ondas de luz são ‘ondas de probabilidades’, isto é, dão a probabilidade de encontrar uma partícula de luz (fóton) num determinado lugar quando você procura por ela (observa), e o éter tornou-se desnecessário.
       Na teologia, exemplo de teoria desnecessária é o universo geocêntrico. A Bíblia afirma ‘O Sol parou’ e era necessário, para não deixar dúvida sobre a verdade da Escritura, dizer que o Sol é que se movia ao redor da Terra (afirmação contrariada por Galileu Galilei, que teve de se retratar, no tribunal da santa inquisição, senão morreria na fogueira). Depois, deixou de ser necessário esse conceito de uma Terra imóvel, centro do universo.
       Como a ciência, a Bíblia (a teologia) usa de modelos e metáforas para tentar se explicar. As metáforas apontam para a verdade, mas não são a verdade. Por exemplo, tudo que é dito a respeito de Deus é analogia; há uma diferença infinita entre Deus e tudo que dizemos a respeito dele.
       Outro conceito que se tornou desnecessário é o do limbo. Crianças que morressem sem batismo não iriam para o céu devido ao pecado original; também não poderiam ir para o inferno. Então, inventou-se o limbo, um estado intermediário, o que provocou tremenda tristeza àqueles pais cujos filhos morriam antes do batismo. O limbo foi a conclusão teológica de Santo Agostinho, que considerava o pecado original um pecado transmitido a cada um durante a concepção. Por isso, toda a humanidade era uma massa amaldiçoada. Para Agostinho, até o ato de conceber uma criança, o ato sexual, era pecaminoso (embora Deus dissesse: ‘Crescei e multiplicai-vos’). Essa visão prevaleceu devido à importância de Agostinho na teologia católica. A noção absurda de limbo insinuou-se na mentalidade católica e textos teológicos, e veio a ser considerada doutrina, quando na verdade não passava de uma idéia sem fundamento.
       O cristianismo ortodoxo oriental tinha outra visão do pecado original, não incluindo a idéia de culpa transmitida e não vendo a humanidade como massa amaldiçoada; as crianças, se morrem antes do batismo, são levadas à presença de Cristo e não ao limbo.
       O problema, porém, não está resolvido; a doutrina católica não é clara, mas reconhece que a natureza humana está profundamente ferida (doente), e que temos, por isso, necessidade de salvação. É pecado original porque, desde nosso nascimento, ‘alguma coisa está fora de ordem, errada com a existência’, tanto que as tradições religiosas partem desse reconhecimento de que há alguma coisa errada conosco, que estamos perdidos e que temos de encontrar o ‘caminho para casa’. Daí o estarmos ‘desterrados neste vale de lágrimas’, dos católicos; o planeta de expiação e provas’ dos espíritas; o ‘assédio constante de satanás sobre os homens’, dos evangélicos. E todos cremos nessa condição, pois os homens não questionam e, assim, nossa sociedade é confusa e insana.
       O desafio da heresia e o contato com outras tradições têm tido efeito benéfico na teologia; os chamados hereges, muitas vezes, contribuíram enormemente para o meticuloso exame daquilo que se considerava errado na doutrina, daí resultando conclusões que, realmente, passaram a ser a fé da comunidade.
       Nos primeiros séculos do cristianismo, considerava-se que a teologia tinha de ser fruto de profunda convicção intelectual e, acima de tudo, de intensa experiência pessoal. Quase todos os Pais da Igreja eram místicos. A crise da experiência religiosa e do misticismo, no Ocidente, coincidiu com o aparecimento do modelo escolástico, de Tomas de Aquino. A teologia sofreu tremenda fragmentação; a Igreja se separou da teologia, e surgiram, seguindo caminhos diferentes, a teologia dogmática, a teologia moral, a teologia ascética; a própria teologia dogmática dividiu-se em tratados. O resultado disso foi tremenda tensão entre o teólogo, especializado no exame do pensamento cristão, e a pessoa já espiritualizada que está tentando viver profundamente o ensinamento na prática do dia-a-dia (a fragmentação da teologia resultou em se relegar para um segundo plano a experiência mística, que deveria ser a meta principal de qualquer religião).
       No velho cristianismo, tanto os padres ortodoxos como os ‘hereges’ tinham basicamente a mesma concepção do objetivo da teologia: levar o crente a um conhecimento de Deus, pela experiência pessoal. Não um conhecimento puramente intelectual, mas um conhecimento que transforma totalmente, e que, como diziam os primeiros escritores cristãos, ‘diviniza’ o homem (mostra que o homem é divino, que somos a divindade).
       A igreja proibia o teólogo de se tornar muito místico. Ele tinha de permanecer no nível intelectual. Mas isso só ocorreu no Ocidente; a Igreja Oriental continuou na linha da teologia mística e, por isso, as duas igrejas se estranhavam mutuamente. Mesmo assim, a Igreja Ocidental teve seus místicos autênticos: Meister Eckhart, Jacob Boheme, João da Cruz, Thereza de Ávila, Maister Echkart, entre outros Muitos deles foram condenados ao silêncio por que a experiência mística tornou-se suspeita após a cisão protestante.
       Acreditava-se que a profunda comunhão com Deus era privilégio só dos ‘místicos’ e ‘santos’. Hoje, o sentido de comunhão está amplamente difundido; cada um pode ser um místico em variados graus. Mas, devido à distinção entre a teologia e as experiências espirituais, Tomas de Aquino, de profunda experiência espiritual, viveu sua vida mística num plano imensamente distante da teologia que pregava. Contudo, antes de morrer, quando a tensão entre sua experiência e sua teologia tornara-se intolerável, ele afirmou, a respeito de sua pregação teológica: ‘É tudo palha!’ (sem valor).
       Do mesmo modo que na ciência existem obstáculos impostos pelo poder que não financia projetos que não forem de seu interesse, na Igreja existe o poder de proibir os teólogos de falar, de excluí-los dos postos onde seriam ouvidos, e nem mais os denominam de teólogo católico (Giordano Bruno, Leonardo Boff, Teilhard de Chardin são exemplos).
       Clima favorável para mudança na Igreja (em grande parte devido aos mosteiros beneditinos, verdadeiros laboratórios de experiências religiosas) ocorreu após a experiência mal sucedida de silenciar alguns dos melhores teólogos, como o jesuíta Teilhard de Chardin, que foi proibido de publicar qualquer um de seus escritos teológicos ou filosóficos até o fim de sua vida. Mas, com o Concilio Vaticano II, tornou-se evidente a necessidade de nova orientação teológica da Igreja, talvez até mesmo para assegurar a sobrevivência do cristianismo (ver ‘Cristianismo Perdido’).
       Lambert, monge beneditino, foi aprisionado e silenciado pela Igreja por ser favorável ao ecumenismo e ao diálogo com a Igreja Ortodoxa oriental, anglicanos e protestantes. Antes de morrer pode ver um Concílio acatar suas idéias de atender às necessidades da Igreja. Os Cristãos não mais encontravam, na Igreja, o que os satisfizesse, isto é, uma teologia e uma prática ecumênica mais espiritualizadas, centradas na celebração do mistério do Cristo (nos ensinamentos e não na vida de Jesus).
       Não se pode dizer que uma experiência religiosa não seja cristã apenas porque ocorreu em outra religião. Específico para o cristianismo é ‘Jesus’, sua vida, morte e ressurreição; e a conseqüência nas comunidades que acreditam nele. Mas, ‘Cristo’ não pode ser monopolizado pelo cristianismo, porque é universal. Não conseguimos compreender Jesus a não ser como um místico. Misticismo é a experiência da união com a Realidade Suprema. Por isso, entendemos que o Cristo é universal (como o Buda e outros).
       Jesus nos trouxe as implicações da percepção mística em termos do Reino de Deus, isto é, o poder salvador de Deus na história. Mas, seus seguidores nos ensinam a história de Jesus, quando, na verdade, deveriam nos transmitir os ensinamentos de Jesus. O poder salvador de Deus é experimentado na experiência religiosa, a experiência de pertencer sem limites, que vivenciamos em nossos momentos de pico (momentos do Reino) e nos liberta da insanidade em que vivemos. Mas, a mensagem de Jesus vai além do Reino. Ele nos diz que já estamos salvos, que já fomos aceitos. Paulo disse: ‘Não é pelas vossas obras, mas pela graça (grátis, gratuitamente) de Deus que sois salvos’; logo, a salvação é uma ação de Deus sobre o homem. Nada precisamos fazer.
      
       JESUS E GAUTAMA.
       As mensagens de Jesus e Gautama são semelhantes: para o budismo, o caminho para a experiência mística é uma vida moral e correta. Para o cristianismo, as condições são amar, perdoar, respeitar. Não há diferença. Como Gautama, Jesus não veio ‘para destruir, mas para cumprir’ e para proclamar que o caminho para a iluminação estava aberto para todos. Buda ensinou que a iluminação é a percepção daquilo que eternamente já é. No cristianismo, Paulo disse: ‘Torne-se o que você é’ (Conhece-te a ti mesmo). Lamentavelmente, após sua morte, passamos a ter um cristianismo sobre Jesus em vez do cristianismo de Jesus. Enquanto Jesus pregou o Reino de Deus, a Igreja prega Jesus. Enquanto Jesus afirmou ‘Eu sou Deus’, ou ‘Eu e o Pai somos um’, ele está totalmente dentro do pensamento místico do ‘Tu és Isto’; mas esse não é o ensinamento da Igreja, que dá a Jesus posição especial, superior a todos os demais, como na Santíssima Trindade (que foi imposta aos fiéis cristãos por decreto do imperador Constantino, apesar do desacordo de 80, dos 320 bispos presentes, que foram, por isso, expulsos do conclave).
       Historicamente, Jesus atribuiu à mulher posição diferente daquela que a ela a sociedade dava (fato que, parece, nem os Evangelhos revelam). Isso lhe valeu inimigos, que persistem até hoje.
       O que separa Jesus de nós não é o dogma cristão da Trindade, mas uma compreensão equivocada desse dogma. A compreensão correta da Trindade inclui você e eu, pois é impossível julgar Jesus separado de nós (Paulo: ‘somos co-herdeiros’). Se Jesus não pertence à Trindade, nem nós pertencemos e, assim, não somos participantes da natureza divina.
       A afirmação de que o fato de haver ‘ressuscitado’ é a prova de que Jesus é Deus é teologia ultrapassada, do velho paradigma; hoje, nenhum teólogo responsável fará uma afirmação dessas. O pensamento do novo paradigma apresenta o problema de maneira diferente: vendo que Jesus ressuscitara, os discípulos compreenderam que, também eles, ressuscitariam, que todos o faremos um dia. Por isso Paulo disse: ‘Se nós não ressuscitarmos, nem Jesus ressuscitou’. Isto é como afirmar que todos somos Deus, pois mesmo após a morte estaremos vivos de uma maneira diferente (Krishnamurti; um novo estado de existir), mas não menos real. O importante é que as expressões mais antigas do cristianismo estavam centralizadas na ressurreição, que é a chave para se compreender o poder salvador de Deus.      

       ECOLOGIA E RELIGIÃO
       A percepção ecológica e a consciência ecológica vão muito além da ciência e, num nível mais profundo, elas se unem à percepção religiosa e à experiência mística, pois são percepção da interligação e interdependência de todos fenômenos e coisas do universo. Nessa percepção mais profunda, ecologia e religião se encontram. A visão de mundo que nasce, hoje, da ciência moderna é ecológica, e percepção ecológica em seu sentido mais profundo é percepção espiritual. É por isso que o novo paradigma, no âmbito da ciência, e mais fora dela, é acompanhado de um aumento de espiritualidade, de uma nova espécie de religiosidade.
       Onde a ciência diz ‘ecológico’, a religião diz ‘ecumênico’, o que dá a idéia de um lar ou morada que deve ser preservada a todo custo, pois é do homem, talvez para sempre. Não apenas morada do ser humano, mas de todos os seres; Deus, conforme o Velho Testamento, ‘soprou seu alento para todas as criaturas viventes’ (hoje, a filosofia da quântica tem a mesma visão).

       MISSÃO
       ‘Dar testemunho da fé’ é tornar a fé conhecida pregando-a e, acima de tudo, vivendo-a; e só pode dar esse testemunho aquele que passou pela experiência religiosa (antes disso, qualquer testemunho, virtude ou ética serão prematuros ou imitação). A missão da Igreja não deve ser converter (trazer os desgarrados para suas fileiras), mas libertar os homens, levando-os a perceber o que realmente somos.

       MUDANÇA DAS PARTES PARA O TODO
       Como vimos, não há partes (isoladas) em absoluto. O que chamamos de parte é um padrão numa teia inseparável de relações. A única maneira de entender a parte é entender sua relação com o todo, descoberta que ocorreu tanto na física, e é fundamental na ecologia, como ocorreu na teologia. Na teologia do novo paradigma, não se pode falar a respeito de qualquer proposição de fé sem implicar todas as outras. O entendimento de uma parte, de uma doutrina ou ensinamento, nunca ocorre isolado do todo, que é onde está o significado. O significado não está numa afirmação ou num dogma ou no que quer que seja. Isso lembra a teoria bootstrap, da física quântica, que afirma que cada partícula, num certo sentido, contém todas as outras (a alegoria, na qual Buda surge, após a iluminação, com um colar de gemas cujos brilhos se interpenetram mutuamente). Era esse princípio de máxima importância na teologia da Idade Média (hoje, está esquecido).
        Nessa visão, não se pode, em absoluto, afirmar que uma coisa, espécie, lei ou princípio é ‘superior’ ou ‘inferior’ a qualquer outra. Cada espécie animal tem características especiais. Se falassem, as abelhas, cães etc., diriam que eles são o ponto mais alto da criação.
       No novo paradigma, todas as coisas são criadas pelo alento de Deus, concordando com a Bíblia: ‘Dais o vosso alento a todas as criaturas e elas vêm à vida. ’, e ‘Se retirais o vosso espírito, elas morrem’. Desse modo, plantas, animais e todas as coisas, estão cheias do sopro divino. A confusão nasceu porque isso foi proclamado explicitamente (e erradamente) apenas para o caso dos seres humanos, pois a mensagem bíblica foi dirigida somente aos homens.
       A concepção de que a alma é uma característica somente dos seres humanos não é bíblica, nem o conceito de alma imortal no sentido popular aceito. Apenas um livro da Bíblia fala da imortalidade da alma, o livro da Sabedoria, de Salomão que, por sinal, não é reconhecido pelos eruditos judeus nem pelos protestantes.
       Até mesmo a ressurreição de Jesus tem pouco a ver com a imortalidade da alma, noção que penetrou na tradição cristã através da filosofia grega. A idéia de que somente os seres humanos irão para o céu não é teologia. É apenas tolice que se disseminou e fez mal às crianças porque seus animais de estimação não iriam para o céu. A ressurreição da carne, o Credo, e a vida eterna, são privilégio dos humanos somente na opinião popular. O significado correto é Renovação Cósmica (o novo estado de existir, de que falou Krishnamurti).
       Muitas coisas afirmadas sobre a imortalidade da alma não são bíblicas. Foram introduzidas posteriormente, recebidas de outras tradições e nos confundiram. Quando você morre, o tempo acabou para você; não há nada após a morte. Morte é, por definição, aquilo após o que nada mais existe. Não há um ‘depois’. Mas quando o tempo acabou, tudo que está além do tempo permanece. Não está sujeito à mudança. Fora do tempo, possuímos a vida num ‘agora que não acabará nunca’. O tempo não mais nos separará (pois tempo é ilusão, e todos somos um só) e todos os seres terão vida plena, numa plenitude que já é nossa (mas que, agora, não percebemos, como afirmam as tradições místicas ocidentais e orientais).
       A Bíblia diz que ‘toda a criação geme esperando pela revelação dos filhos de Deus, desde as angústias do nascimento’. Estamos todos presos nessa condição comum que é considerada dolorosa. Mas, Isaias afirma que, no fim dos tempos ‘o lobo se deitará junto ao cordeiro; a criancinha porá sua mão no covil das cobras’. Este é o projeto para a humanidade, uma situação onde haverá total harmonia e total ingenuidade (simplicidade, ausência de malícia), total paz (o novo estado de existir).                               
       Quanto à posição humana no universo, quando é que sentimos que somos feitos à imagem e semelhança de Deus? Nos nossos melhores momentos, pois toda noção de Deus vem desses momentos especiais de pico, quando percebemos que nosso verdadeiro eu é o próprio Deus.
       Infelizmente o Livro do Gênesis tem sido mal interpretado. Fomos colocados no Jardim (Éden)‘para o cultivar e guardar’. É aí que entra nossa responsabilidade: somos responsáveis por esse Jardim; portanto, devemos administrá-lo e não dominá-lo e explorá-lo de modo destrutivo como temos feito. O jardineiro, os homens, parece que, para cultivá-lo, estão do lado de fora do jardim, mas essa visão de separação equivale à Queda que afasta o jardineiro do jardim. Antes da Queda, o jardineiro não sabia que estava nu. Essa idéia de nudez nada tem que ver com sexualidade; é a experiência da separação (dualismo), a condição em que todos nós nos encontramos, alienados (sem percepção) do cosmos. Mas, no Paraíso, somos parte integral do todo (somos o todo; ver Schrödinger); ali, estamos em casa.
       Responsabilidade é a capacidade de dar uma resposta apropriada, é sensibilidade. A maioria das espécies tem a resposta adequada. Não há nada de não-apropriado na maneira como animais e plantas respondem ao seu meio-ambiente. Mas a resposta humana pode não estar apropriada, pois temos a capacidade para destruir a natureza e, portanto, a nós mesmos. Parece que somente os seres humanos têm o terrível poder de agir assim, de destruir sua própria casa, seu planeta.
       Daí vem a questão da liberdade. A liberdade e a responsabilidade caminham juntas. Isso é parte da nossa experiência: enquanto jardineiros nossa responsabilidade é a de nos religarmos ao jardim e não destruí-lo, nos separando dele e nos colocando, irresponsavelmente, acima da natureza, como seus donos, como se pudéssemos fazer dela o que quisermos. Esse é um aspecto da Queda, que nos toldou a visão pelas ilusões geradas (a Queda nos deu o primeiro dualismo ilusório: a divisão eu/não-eu, eu e o universo, a ilusão de que o universo é ameaçador, inimigo; por isso, sofremos).
       A noção política de liberdade, do velho paradigma clássico, contrasta surpreendentemente com a noção de liberdade dos Evangelhos. A política permite que se passe por cima dos outros, enquanto o evangelho diz, em Filip 2: ‘A si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de um servo’, e João Batista: ‘Ele deve crescer, enquanto que eu devo diminuir’. Jesus: ‘Aquele que quiser ser o maior, que se faça o menor’. Num universo totalmente inter-relacionado, o crescimento de qualquer um implica no crescimento dos demais (e não, no contrário, que o homem sempre faz).
        Nós temos capacidade e liberdade de formar conceitos (mas não de escolher) e, conforme o modo como utilizamos essa capacidade somos levados a transtornos (conflitos), pois nossos conceitos não vêm da fonte divina. Esta só é alcançada na experiência mística.
       A principal discussão do pensamento ecológico atual centraliza-se na diferença entre ecologia profunda e superficial. A superficial vê os seres humanos como situados acima da natureza, como os mais importantes e os dominadores; a ecologia profunda vê os seres humanos como apenas mais um fio dentre os muitos fios da teia da vida, todos de mesma importância.
       Deus não está lá em cima e o universo aqui em baixo. Por isso Santo Agostinho disse que a transcendência de Deus é uma transcendência para dentro: ‘Deus está mais perto de mim do que eu mesmo’. Assim, toda resposta às dúvidas que temos sobre Deus tem que ser encontradas na nossa própria experiência, dentro de nós, e não nas palavras de outrem. A experiência de Deus está além do conhecimento (da imaginação, do raciocínio, do intelecto, do ego). A experiência de Deus transcende todos os nossos conceitos, até mesmo o conceito de transcendência, de tudo a respeito do que se possa falar, e o silêncio é a postura adequada. Um axioma básico da tradição teológica afirma que tudo que a teologia diz a respeito de Deus, não importa quão correto seja, é mais falso do que verdadeiro (isto é, refere-se, apenas, aos ‘efeitos’ de Deus).
       Gregory Bateson dizia que a mente não é uma coisa, mas um processo de auto-organização, o próprio processo da vida. Logo, em todos os níveis, o processo da vida é um processo mental. Assim, (como o processo mental de cada ser é que o organiza), o processo mental da consciência coletiva do nosso planeta é o processo de auto-organização do planeta, enquanto a consciência cósmica é o processo de auto-organização de todo o cosmos (ver ‘Universo Autoconsciente’). Isso é o que entendemos por ‘Deus’: o processo cósmico de auto-organização (bootstrap).
       Pela teologia, mesmo no velho paradigma, a criação é um processo em andamento aqui e agora. Não fosse assim, tudo entraria em colapso. (A criação é um processo de sempre, sem fim, e inclui a mente senciente que completa o processo criativo, determinando, com o colapso das ondas de probabilidades, a manifestação de tudo no universo).
       Embora a tradição cristã creia que Deus é um em três pessoas, Deus não é uma ‘pessoa’ no sentido comum; significa que seu relacionamento com o homem é ‘pessoal’, e se dá por meio da compaixão e da auto-revelação (advindas da meditação).
       O uso correto do termo Deus é para indicar a direção do pertencer, à última e mais elevada realidade. Isso é misticismo, e qualquer um pode vivenciá-lo diariamente, porque Deus está relacionado conosco de maneira pessoal, e é o nosso verdadeiro eu. Os grandes teólogos sempre afirmaram que fazemos parte da (os místicos, que somos a) própria vida de Deus.
       Dizemos ‘Deus é amor’ exatamente porque ‘amor’ é precisamente o pertencer, o que se sente ao pertencer. Quando o homem rastreia até a sua fonte - o vazio - a compaixão que recebe de volta, fica sabendo o porquê da afirmativa ‘Deus nos amou em primeiro lugar’. Na meditação, podemos ter essa experiência.
       Dizer que Deus criou os seres humanos à sua imagem, ‘macho e fêmea Deus os fez’, implica o fato de que a imagem de Deus é o par, e não o indivíduo. No entanto, toda a hierarquia católica consiste de homens e Deus é sempre macho; devia ser ele e ela. É injustiça, na Igreja e na tradição cristã, manter a mulher numa posição de inferioridade. Jesus fez inimigos ao tratar as mulheres como iguais aos homens, o que não era aceito na sociedade de então e, mesmo hoje, em muitas sociedades e culturas.
       Em que sentido somos criados à imagem de Deus? Não sabemos com que Deus se parece, senão em nossos melhores momentos; nas experiências místicas sabemos que ‘tocamos’ a divindade, que nosso verdadeiro eu é o próprio Deus. É isso que é ser criado à imagem e à semelhança de Deus. Isso nos é dado com nossa própria existência e é uma realidade que podemos descobrir se nos dirigirmos às profundezas de nosso ser, pela meditação. Nossa vida tem como origem e fim a ‘vida’ de Deus. É ali que nossa vida como seres humanos começa e é ali que ela termina.
       Se desejamos amar a Deus, devemos voltar-nos para o humano e para toda a criação, pois tudo tem o sopro de Deus (mas o verdadeiro amor, como as verdadeiras virtudes, só nos vem com a experiência religiosa).
       Espírito e matéria são duas faces da mesma moeda, dois aspectos entrelaçados da realidade (não são coisas separadas).
       O invisível é o modelo do visível (Jung, os arquétipos).
       A teoria da auto-organização, como as tradições místicas, afirma que não há objetivo na criação. O que acontece é criatividade, como resposta mental contínua às influencias (causadas pelas mudanças) ambientais, a cada passo. Mas, não há plano, nem projeto ou direção. Deus simplesmente é; Deus não tem propósito.
       Antes, acreditava-se que as descrições cientificas eram objetivas, isto é, independentes do observador humano e do processo de conhecimento. No novo paradigma, o processo de conhecimento obrigatoriamente tem de ser incluído na descrição dos fenômenos naturais. Na teologia, acreditava-se que os enunciados fossem objetivos, isto é, independentes do indivíduo que observa e do processo de conhecimento. O novo paradigma afirma que a reflexão sobre os modos de conhecimento não-conceituais - intuitivos, afetivos, místicos - tem de ser obrigatoriamente incluída no discurso teológico; há um consenso emergente de que os modos de conhecimento não-conceituais (sem conceitos nem palavras, em total silêncio mental) constituem parte integrante e essencial da teologia.
       O mundo não existe objetivamente; ele é criado, gerado, no processo de conhecimento (também conforme a física quântica). Há uma realidade, mas não há coisas, árvores, pássaros. Esses padrões são criados por nós, no processo de conhecimento. À medida que observamos, ‘criamos’ um padrão e o destacamos do restante, e ele se torna um objeto. Nesse sentido, estamos continuamente criando o mundo (isto é, o ser cerebrado e senciente completa o processo criativo de Deus. Ver ‘O Universo Auto-consciente’).
       Todo conhecimento é a partir de dentro do sujeito observador. Todo conhecimento é uma espécie de participação num diálogo em andamento com a realidade. Assim, aquilo que realmente conhecemos a respeito de Deus é sempre e tão-somente a nossa experiência de Deus (Jung, Eckhart). O que não for experiência nossa será apenas projeção, recebida de outrem, coisa emprestada. Só a respeito de nossas experiências pessoais de Deus é que podemos falar com convicção. Isso implica em que, assim como Deus nos criou, nós também criamos Deus à nossa imagem e semelhança. Por isso, disse Eckhart: ‘O olho com que vejo Deus é o mesmo olho com que Deus me vê’ (ou, o meu olho é o olho de Deus, pois somos um só).  
       A definição grega de ser humano é zõon logikon, animal possuidor de logos, a palavra, que cria um cosmos a partir do nada (como, hoje, a física quântica afirma). E isso se aplica a todos os seres vivos. A diferença é que nós, e talvez os animais superiores, temos consciência reflexiva.
       A união do pequeno eu (a consciência localizada) com o grande Eu (a consciência universal) é o que denominamos re-ligação, Religião com ‘r’ maiúsculo. O demais é apenas crença, suposições, opiniões, fé sem base, raciocínio ou interpretações equivocadas, ilusões e, assim, sem valor.
       A noção de um Deus separado da criação, que fica lá fora, em algum céu, é do velho paradigma teológico. No novo paradigma, onde o universo é todo interligado, interdependente, interconexo, não mais é possível expressar isso em palavras. Deus não é mais o único que criou este mundo desta ou daquela maneira (cerebrados são necessários). Há, por exemplo, um enunciado do sufismo: ‘Eu era um tesouro escondido e, assim, para que fosse encontrado, criei o mundo. ’ É o ‘jogo divino’, dos hinduístas. Há, desse modo, um jogo em andamento, e somos convidados a entrar nele. (Krishnamurti: a mente era vazia e, por isso, o cérebro existe no espaço e no tempo. Ken Wilber: a conversa entre Deus e Abraão. Os grandes psicólogos e filósofos: a parte do universo que vê e a parte que é vista; o universo se vê a si próprio, através de nossos sentidos objetivos).
       Dogma é um enunciado sobre a realidade indizível, isto é, impossível de ser comunicada. Ele jamais retrata a realidade total, sendo sempre uma sua aproximação. A experiência individual, inexprimível, toma a forma de dogma para inspiração dos fiéis (não estamos falando dos dogmas impostos pela conveniência da igreja, mas dos oriundos de experiências verdadeiras).
       Na ciência não há verdade permanente; a questão está sempre sujeita à revisão. Mas, na religião, o dogma é tido como verdade permanente e seu significado popular é prejudicial, pois você não tem de entendê-lo; apenas tem de aceitá-lo. E a Igreja ainda hoje é rigorosa quanto a isso. No passado, os castigos foram terríveis: fogueira etc. Tiveram início com Constantino, ao ‘legalizar’ o cristianismo. A idéia da Igreja é fazer com que você chegue à profunda experiência do mistério que o dogma só expressa de maneira aproximada. Origina-se dogma do grego dokein que significa ‘opinião’, ‘ensinamento oficial’ de uma filosofia ou igreja. Tem a mesma origem de dogma a palavra doxa, glória, a manifestação das qualidades de uma pessoa. Eu formo a minha opinião com base na doxa, na glória dessa pessoa. Assim, ortodoxia significa ‘a maneira correta de glorificar a Deus’, ou a percepção correta da glória que emana de Deus. Dogma é, pois, nossa glorificação de Deus e da glória, a doxa, que emana de Deus.
       Popularmente, glória sugere o esplendor de Deus no seu trono lá no alto. Mas, essa concepção é totalmente errada. Quando o grego era a língua oficial da Igreja, a resposta para a pergunta ‘O que é a glória de Deus?’ Era um dos mais antigos enunciados teológicos da tradição cristã: ‘A glória de Deus é o ser humano plenamente vivo’ (com vida abundante).
       Do mesmo modo que Buda apresentou o Caminho Óctuplo, para a ‘cura’ dos males do homem, Jesus trouxe lições semelhantes, que servem à experiência humana universal. No entanto, ao contrário dos ensinamentos de Buda, os de Jesus são, com freqüência, confundidos com alguma espécie de verdade imutável e independente da experiência pessoal quando, na realidade, a compreensão plena dos ensinamentos depende da experiência individual de cada um.
       A razão por que não há dogmas no budismo está provavelmente além do budismo e do cristianismo, na fonte de onde emergem as duas tradições. O budismo insiste que você não pode dizer coisa alguma a respeito da realidade que você percebe na sua experiência; ela é indizível. Já no cristianismo, você tem de dizê-lo (embora Paulo dissesse; ‘vi e ouvi coisas inefáveis’). Ambos têm base em nossa experiência; quando temos experiências religiosas, sabemos que jamais poderemos traduzi-las em palavras, mas sempre tentamos fazê-lo. O dogma surge desse esforço. Por isso, seu significado é sempre aproximado. No budismo, o ensinamento último termina no silêncio. Mas, no cristianismo, o dogma surge da recusa em questionar, na aceitação pura e simples da interpretação aproximada da verdade percebida (submissão à fé sem questionamento).
Etc.,
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       Extratos de ‘Sabedoria Incomum’, de Fritjof Capra, Cultrix, 1988:
      
       Um dos primeiros contatos que tive com a espiritualidade oriental foi meu encontro com Krishnamurti, no final de 1968, quando ele proferiu uma série de palestras na Universidade da Califórnia. Estava com setenta e três anos e sua aparência era absolutamente estonteante... A dignidade do semblante, o inglês medido e perfeito e, acima de tudo, a intensidade da concentração e da sua presença deixaram-me encantado e perplexo. O impacto de seu carisma e aparência física foi intensificado e aprofundado pelas coisas que disse... A tarefa a que se propôs - usar a linguagem e o raciocínio para levar seus ouvintes além da linguagem e do raciocínio - era extremamente difícil, mas o modo como ele se desincumbia dela era impressionante... A platéia ficava arrebatada, dominada por suas palavras e totalmente atenta. Dizia: ‘Examinemos juntos a questão, sem julgarmos, sem condenarmos, sem justificarmos. ’ No final, ficava uma sensação nítida e forte de que o único meio para se resolver qualquer de nossos problemas existenciais é ir além do pensamento, além do ego, além da linguagem e do tempo; ‘libertar-se do conhecido’, do passado... (isso é meditação).
       Fiquei fascinado, mas também profundamente perturbado, com suas palestras. Após cada uma delas, Jacqueline e eu permanecíamos acordados durante várias horas, sentados junto à lareira, discutindo o que ele dissera. Era um mestre espiritual radical e me colocou frente a um grave problema: eu mal iniciara uma promissora carreira científica, com a qual estava bastante envolvido emocionalmente, e então vinha Krishnamurti, com todo seu carisma e persuasão, dizendo para eu parar de pensar, para me libertar de todo conhecimento, para deixar o raciocínio lógico para trás.          
       O que isso significava no meu caso? Deveria desistir da carreira nesse estágio inicial, ou continuá-la, abandonando toda esperança de alcançar a auto-realização espiritual?
       ... Senti-me um tanto intimidado quando finalmente vi o mestre cara a cara, mas não quis perder tempo. Eu sabia por que estava ali. ‘Como posso ser um cientista’, perguntei-lhe, ‘e ainda assim seguir seu conselho para libertar-me do pensamento e do raciocínio?’ Krishnamurti não hesitou sequer um instante. Respondeu minha pergunta em dez segundos, e de um modo que resolveu completamente o meu problema: ‘Primeiro, você é um ser humano’, disse ele, ‘e depois, um cientista. Antes, você tem de se tornar livre, e essa liberdade não pode ser atingida por meio do pensamento ou raciocínio. Ela é atingida pela meditação - a compreensão da totalidade da vida, em que cessam todas as formas de fragmentação. Uma vez que você alcance a compreensão da vida como um todo’, explicou ele, ‘pode se especializar e trabalhar como cientista sem problema algum’.
       Depois disso perdi contato com Krishnamurti, mas nunca deixei de reconhecer sua influência decisiva sobre mim...
      Em 1983, sul da Índia. Às oito horas Krishnamurti apareceu, vestido com trajes indianos, e caminhou lentamente, mas com enorme segurança, até uma plataforma que fora erguida ali. Foi maravilhoso vê-lo, aos oitenta e oito anos de idade, fazendo sua entrada como fizera por mais de meio século, subindo as escadas da plataforma sem ajuda de ninguém...
       Ele falou por setenta e cinco minutos sem nenhuma hesitação, quase com a mesma intensidade que eu presenciara quinze anos antes. Sua clareza e habilidade eram as mesmas. Sua análise do tema foi bela e cristalina: o único meio de libertar-nos do desejo (medo, violência, inveja, ambição, condicionamentos, influências da genética, cultura, sociedade, crenças, ilusões, etc.) é libertar-nos do processo que produz os pensamentos (pela meditação).
       O problema que Krishnamurti resolvera para mim, à maneira zen, de um só golpe, é o mesmo problema com que a maioria dos físicos se depara quando confrontados com as idéias das tradições místicas - como é possível transcender o pensamento sem abandonar o compromisso com a ciência? É esse o motivo pelo qual, penso eu, tantos dos meus colegas sentiram-se ameaçados por minhas comparações entre física e misticismo. Eu também sentira a mesma ameaça. Mas tive uma enorme felicidade: a pessoa que me fez perceber a ameaça foi a mesma que me ajudou a transcendê-la.   
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