(20) A IGREJA ROMANA E O CRISTIANISMO
(Baseado em ‘O PAPA E O CONCÍLIO’) (Jan 2008)
Este texto nos leva a pensar se a doutrina e ensinamentos das igrejas cristãs, em particular da católica romana, estão de acordo com a verdade, ou se fomos ‘enganados’, por todo o tempo, a partir de depois do primitivo cristianismo. Da obra, o primeiro volume é uma Introdução de Rui Barbosa, considerado um dos mais fieis historiadores, e revela a desfiguração causada à igreja cristã pelos Papas de Roma que se diziam sucessores de Deus, e abraçaram o poder temporal, iludidos pela pompa do Império Romano, esquecidos do espiritual que os evangelhos contêm. As fontes citadas são irrefutáveis, muitas da própria igreja: decretos, anais, tratados, acordos, bulas papais, cartas de bispos, padres, reis, imperadores, obras de historiadores de imparcialidade irrepreensível, atas de concílios, pastorais, sermões etc. Leva-nos a compreender que o que Jesus ensinou é idêntico àquilo que, há séculos, se ensina nas tradições místicas orientais. Se a igreja não houvesse cometido tantos erros, as religiões cristãs estariam levando o homem ocidental para o encontro com Deus; mas não é o que acontece e, por isso, um sábio persa afirmou que ‘a cultura ocidental é prostituta’. Infelizmente, as doutrinas espirita e protestante adotaram as mesmas escrituras, com certas modificações, é certo, mas com muitas das alterações introduzidas pela igreja romana.
O segundo volume, escrito por Janus, às vésperas do concílio do Vaticano, tinha, por objetivo, levar os participantes do sínodo a refletirem sobre os erros da igreja, tão absurdos que exigiam reforma completa de sua legislação e doutrina.
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RESUMO DO 1° VOLUME
1. Expansão do papado à custa do poder temporal.
Com documentos que não deixam dúvidas, a história conta que Roma sempre teve por lei escravizar os fiéis ao clero, e o poder temporal à igreja. A história da influência dos papas no mundo, desde muitos séculos, é a do nascimento de um novo paganismo, desumano e repleto de superstições, formado à custa da tradição dos Evangelhos, falsificada pela igreja romana.
A presença da igreja em todo o ocidente, inclusive no Brasil, com o clero e sua ação subterrânea, facilitou esse objetivo, pela indiferença das classes cultas, e pela ignorância e superstição das incultas. Esta afirmação só não será correta se se provar que a igreja conservou puros seu caráter e sua doutrina. A realidade, porém, é outra, porque a igreja romana, em todos os tempos, foi uma potência religiosa apenas no nome, pois foi sempre fundamentalmente política. Sua religião e sua autoridade moral são, desde muito tempo, pretexto para exercer influência na administração temporal dos Estados, fato que poderá ser demonstrado num rápido exame histórico.
Nunca, por mais que se pesquisasse, a crítica histórica encontrou na igreja as leis e os elementos que hoje são sua base. Primitivamente, a unidade vinha do acordo de todos; a cristandade era pura democracia espiritual, sem centro oficial, sem meios de coação externa, sem qualquer relação temporal com o Estado. A idéia de um pontífice máximo era total absurdo. (São Firmiliano: ‘Indigna-me a absurda presunção do bispo de Roma, de que seu bispado é herança do apóstolo Pedro’). As boas obras eram o sinal da fé, e esta não implicava em fórmulas oficiais, mas na comunhão em espírito e verdade entre o crente e Deus (sem intermediários, portanto). Os conflitos doutrinários eram solucionados em comum, o que evitava os cismas. A ausência de rituais teatrais e de dogmas, a pureza do ensino, a proibição de imagens, o martírio dos defensores da fé, a submissão a todos os governos humanos e a suas leis, a aspiração a uma vida além deste mundo, eram a mais vigorosa antítese, entre os cristãos primitivos, ligados entre si somente por laços morais, e o catolicismo de hoje fundado na ampliação arbitrária dos artigos da fé, nas pompas de um culto faustoso, na exploração da superstição dos povos, na intolerância, não só nas coisas da doutrina, mas nas coisas temporais, na insubordinação ao poder civil, na tendência de estabelecer neste mundo um reino seu.
Antes, padres, bispos e diáconos eram eleitos pelos leigos que também participavam do julgamento das questões relativas à fé. A igreja era o povo, não submetido aos padres, mas a eles livremente unido. Com o imperador romano Constantino, começou o imperialismo religioso, que vem até nossos dias, e que tem sua expressão máxima na ‘infalibilidade papal’. A soberba grandeza da Roma Imperial inspirou, à nascente hierarquia católica, a tendência da imitação, seduzida pela veloz propagação da nova doutrina, que trocou a democracia dos primeiros tempos pelo governo despótico do papa que, por autoridade própria, se constituiu em representante exclusivo do Cristo. (Arnauld, historiador: ‘Começava a heresia da dominação, a maior das heresias contra a cruz, porque transformava em discórdia as palavras de amor daquele que, para trazer a paz, foi crucificado por nos prometer um mundo melhor’).
Toda religião, que se associa aos governos da terra, é religião morta, pois o resultado é sempre a submissão da doutrina ao interesse político. É serva da ambição, ou para não perder o poder temporal, ou para não perder as vantagens materiais recebidas. Com Constantino teve inicio o sacrifício do cristianismo ao engrandecimento da hierarquia. Esse imperador, mesmo não sendo batizado, recebe título de bispo; julga e depõe bispos; convoca e preside concílios; decreta dogmas. Esta não é mais a igreja dos primeiros cristãos. Estes recusariam as monstruosas concessões feitas ao absolutismo dos imperadores, as homenagens ao déspota, marcado pelo assassinato da mulher, filho, dois sobrinhos e cunhado, e que, enquanto era reverenciado nas igrejas cristãs, era adorado como um deus nos templos pagãos. Na proporção em que a igreja subia no poder temporal, caía sua autoridade moral. De perseguida, fez-se perseguidora; buscou riquezas e corrompeu-se; derramou sangue para impor silêncio aos discordantes; e, sujeitando o espírito à letra, se encheu de formalidades e cerimoniais, primeiro sintoma de sua decadência.
O clero, malicioso e esperto, entrou em tudo: na magistratura, cargos públicos, prefeituras; fiscalizou os funcionários do império; penetrou no íntimo das famílias sob o pretexto de curatelas e tutelas. A religião se prostituiu em favor do poder temporal. Insensível aos meios e só visando os fins, via apenas dois obstáculos a sua ânsia de poder: a resistência dos imperadores gregos e a tentativa de independência nos territórios italianos. Por isso, os papas, ora perturbavam os gregos por meio dos bárbaros, ora provocavam, contra os que desejavam uma Itália independente, conflitos com imperadores do Oriente. Lograram, assim, exterminar os discordantes. Disse um historiador: ‘Para que os papas prosperassem, cumpria que, em volta deles, tudo se amesquinhasse’.
Na historia das crueldades da igreja, as maiores foram as infligidas ao povo lombardo, de disposições humanas e civilizadoras sem igual. Os duzentos anos em que tentaram fundar uma Itália livre, despertaram nos papas um ódio implacável, cujas maldições tremendas estão ainda hoje na memória dos povos.
Um papa deu a França de presente aos Carlovingianos, para ter destes, em troca, território pertencente por direito aos gregos. Para dar aparência de legitimidade ao ato, inventou-se uma restituição escandalosa, com falsificação de idéias pelos papas, que alegavam superioridade sobre os direitos dos povos e a jurisdição dos príncipes: ‘A nós convém levar nosso domínio para as províncias, pois não é racional que, onde o rei celeste instituiu a soberania da religião cristã, outro rei mantenha seu terrestre domínio’.
Enquanto na origem de todas as usurpações costuma estar à violência, na historia da igreja, a falsificação e a fraude têm sempre papel preponderante. Falsificou-se até mesmo uma epístola em que S.Pedro, em pessoa, intimava o imperador Pepino a aniquilar os lombardos. Os embustes históricos da igreja foram tantos que o século VIII mereceu o nome de idade da impostura. Todos esses crimes contra a verdade tiveram sempre um fim único: a dominação do estado pela igreja, e a dominação desta pelo papa.
O imperador romano Carlos Magno, que teve nove esposas e se amasiou até com filhas, teve ascendência sobre a igreja, chegando ao absurdo de fixar o número de anjos do céu. Após sua morte, a igreja retomou seu domínio, tendo o papa Gregório IV proclamado o princípio, a que a igreja ainda não renunciou, de que o papa é senhor das coroas, e tem poder para desobrigar os súditos do juramento de fidelidade aos reis.
A igreja primitiva era dividida em numerosos feudos que muitas vezes se opunham em matéria doutrinária, ou contra as autoridades religiosas do feudo, em questões temporais; esse feudalismo era semelhante ao civil. A descentralização era total, mas, devido às pretensões temporais que absorviam o clero, a igreja só se manteve em pé em face da existência de ordens monásticas e dos princípios democráticos de sua organização. Esquecendo essa tradição, nunca o papado deixou seu objetivo de tentar conquistar o poder temporal. Sua política era implacável. A decadência da igreja tornou-se imensurável; os papas, exemplos vivos dos vícios mais baixos; a própria coroa papal ficou, mais de meio século, nas mãos de mulheres perdidas. Por seus crimes, o papa João XII é deposto por um concílio; o papa Óton I estimula a invasão da Alemanha. Sob os papas Clemente II, Leão IX, Vitor II, Silvestre II, Estevão IX e Hildebrando, cresce a dominação dos sacerdotes. A igreja se avilta a tal ponto que se dizia, popularmente, que ‘os papas de Roma só conquistam o trono vendendo a alma ao diabo’. O bispo de Orléans disse, num sínodo: ‘É sabido não existir em Roma um homem capaz de ser porteiro; com que autoridade, pois, esse bispo que nada sabe tem a presunção de nos ensinar?’ E mais: ‘Ó Roma, quão digna és de dó e que densas trevas sucederam à claridade que derramavas sobre nós! Mas hoje, porque hão de bispos ilustres na ciência e na virtude submeter-se aos monstros que te desonram? Se o homem que se assenta nesse trono não tem caridade, é um Anticristo; se não tem sabedoria, é apenas um ídolo de pedra. Quando necessitamos nos aconselhar sobre coisas divinas, voltamo-nos para a igreja da Bélgica ou da Germânia onde muitos bispos brilham e lhes pedimos o parecer porque o de Roma vende-se a peso de ouro, e é por quem dá mais’.
Pela astúcia do papa Gregório VII, todas as soberanias temporais na Europa são abaladas, invadidas ou usurpadas. À Espanha, declara que seu território é ‘propriedade de S.Pedro’; ao rei de França, ameaça com a desobediência dos súditos; à Hungria afirma que ‘aquele reino pertence à igreja romana’; em pouco tempo reparte as coroas da Alemanha, Hungria e Polônia; faz da Boêmia seu tributário; apóia todas as usurpações na intenção de obter um aliado em cada usurpador; contra Henrique IV trava tenaz guerra, envenenada pela recente imposição do celibato sacerdotal; por bula papal humilhou e depôs o rei da Alemanha etc. Esse papa, mesmo vencido, deixou à Roma uma tradição que ainda hoje é alma de sua igreja: ‘Mesmo que se prove que excomungamos um príncipe sem motivos suficientes, nem por isso é de se rejeitar nossa sentença. Se a Santa Sé recebeu de Deus o poder de sentenciar coisas espirituais, porque não há de sentenciar também coisas temporais? Quando Cristo disse a S.Pedro: Apascenta minhas ovelhas, abriu exceção para os reis? O papa está tão acima dos reis, quanto o ouro do chumbo. Deus, dando a S.Pedro o supremo direito de ligar e desligar no céu e na terra, a ninguém eximiu da sua autoridade: todos os principados, todas as potências do orbe lhe submeteu. Desse modo Cristo fez o bispo romano senhor de todos os reinos do mundo, e herege é quem não obedece à Sé Apostólica e, os soberanos, que tenham a audácia de desprezar os decretos da Santa Sé, decaem da dignidade real. Reis e príncipes são homens que, desconhecendo a Deus e movidos apenas pelo diabo, querem dominar os semelhantes. Entretanto o papado foi instituído por Deus que, por ato de misericórdia, o deu ao mundo.’
Com os sucessores de Hildebrando, que adquirira, com a primeira cruzada e as ordens de cavalaria, novos e poderosos meios de oprimir os povos, o nível moral do papado baixou infinitamente. O rei Henrique IV, muito melhor em geral que seus contemporâneos, foi tão caluniado pelo clero, que de rei desceu a mendigar um emprego de servente no coro de uma igreja, que lhe foi negado, e, morto, foi exumado a mando do papa Pascoal, que o deixou insepulto por cinco anos, para maior humilhação. O sistema papal sempre foi: difamar sem escrúpulos, espoliar desumanamente o adversário vivo e, se morto, persegui-lo ainda, negando-lhe sepultura, difamando-lhe a memória, eternizando nos seus anais o ódio e a mentira contra a vitima.
Na Itália, o movimento republicano dos lombardos, contrariado pelos papas, trouxe a estes mais uma ocasião de mostrar o caráter essencialmente político e inexorável de suas aspirações. Ninguém, com espírito de justiça, deixará de tremer ante o suplicio de Arnaldo de Bréscia, cujo sangue, diz sério historiador, ‘clama ainda hoje por vingança contra o papado’. Seu crime foi afirmar que o clero não devia possuir feudos, nem mordomias temporais, nem propriedades territoriais, o que implicava em afastar a igreja de qualquer participação no poder civil, e isso era totalmente contra as idéias de Roma.
O papa Adriano IV, por ridícula questão de precedência, ameaçou o rei Frederico Barbarroxa de lhe tirar o trono, lembrando-lhe ‘que a coroa que ele ostenta não é mais que um presente do papa’. Em toda a Europa, crescia a soberania universal do papa, que inventa, a favor dessa intenção, títulos absurdos. Adriano IV, ao fazer presente da Irlanda a Henrique II, da Inglaterra, escreveu-lhe: “Bem sabeis, como sabem todos, que a Irlanda, e, bem assim todas as ilhas convertidas à fé cristã, pertencem à Sé romana’.
A doutrina da onipotência teve início com Hildebrando, que possuía supersticiosa fé na divindade de seu poder. No seu pontificado, a soberania dos estados foi profundamente ferida em todo o Ocidente. Os artigos de fé foram reunidos numa série de constituições publicadas pelo papa Gregório: ‘Só o pontífice romano pode chamar-se universal; só a ele pertence o direito de nomear bispos; os seus legados têm precedência sobre todos os bispos nos concílios gerais; ele pode destituir os prelados; o uso de ornamentos imperiais só a ele pertence; os príncipes e reis são obrigados a beijar-lhe os pés; ele tem o direito de depor imperadores; não terá validade qualquer concílio havido sem seu consentimento; a ninguém cabe anular-lhe as sentenças, mas ele pode anular os decretos de quem quer que seja; a igreja romana é, foi e há de ser infalível; cessam de ser católicos todos que como ela não pensarem; é lícito ao papa desobrigar os súditos do juramento de fidelidade aos maus príncipes’.
Mais temidos do que os desastres naturais que assolam o mundo, os mensageiros dos papas levavam o terror a todos os povos. A cólera caía sem pena sobre os príncipes pouco dóceis à igreja. Fechavam os templos, deixavam os mortos sem sepultura, populações inteiras sem sacramentos, proibiam festas e alegrias ao povo, até que os reis, desesperados, humilhavam-se com retratações, como as de João-sem-terra. O rei Felipe Augusto lamentava não ser muçulmano e invejava o emir Saladino, que não tinha acima dele o papa; o rei da Inglaterra pensou em adotar o islamismo. Roma era claramente contra a razão e a liberdade. Anatematiza a Magna Carta inglesa, primeira constituição escrita de todos os estados modernos, amaldiçoada pelo papa Inocêncio III como infame e herética, por dar liberdades ao povo; realiza a cruzada contra os albigensis, cujo crime era a liberdade de pensamento, a não sujeição ao papado e a critica aos vícios da tirania papal, numa época em que era de todos conhecida a expressão ‘vil como um padre’. Para punir esse crime, o Langdoc, a mais próspera região da Europa ocidental, foi entregue a uma cruzada, isto é, a uma legião de arruaceiros, assassinos e salteadores que, sob o comando de monges e bispos, exerciam enormes abominações, para proveito da Santa Sé.
Por trinta anos, os papas Gregório IX e Inocêncio IV fizeram tremenda luta contra Frederico II, no dizer de São Luiz, ‘príncipe tão nobre que não havia igual entre os cristãos’. Esse rei foi excomungado três vezes como traidor, perjuro, sacrílego e herege, posto fora dos direitos das gentes, perseguido com o interdito para que todos os lugares se manchassem com sua presença, atingido sem descanso por conspirações eclesiásticas, e, quando morreu, pela arma de um assassino a mando do papa, o ‘interprete infalível do Evangelho’ escreveu aos cristãos: ‘Terra e céus, rejubilai! O opressor já não existe!’ ‘Não somos um simples mortal; ocupamos na terra o lugar de Deus’.
Com o papa Rodolfo, os estados cristãos receberam sua constituição definitiva e as necessidades da nova situação abriram ao papado o seu período mais cínico. Diz conceituado historiador: ‘Os legados papais eram coletores; os anátemas, intimações; os benefícios espirituais, negócios; e Roma caia sem dó sobre os devedores teimosos’. Necessitando de dinheiro, com estratagemas fiscais escorchantes, empobreceu a França e a Inglaterra, tanto que o papa Bonifácio VIII era chamado de ‘anticristo e homem do pecado’. Esse papa, a cuja vida se atribuem ‘imoralidades e infâmias que fariam corar os mais desavergonhados’, foi autor da bula que vedava aos reis, sob pena de excomunhão, impor tributos ao clero, e da bula que declarava ‘sujeito ao pontífice todo o homem que existe’. Puniu o rei Felipe, o Belo, com anátema, e excomungou seus descendentes até a quarta geração, punição tradicional na igreja romana.
Em Avinhão, onde a corte da igreja era chamada de ‘Babilônia desavergonhada’, dizia-se que ‘o ouro abria o céu e comprava até Jesus Cristo’.
A intervenção do papado na soberania temporal teve ponto alto com o papa Clemente V, que afirmou ser ‘indubitável sua supremacia sobre o império romano e o poder, que Cristo lhe dera, de prover à sucessão na vacância do trono’.
O papa João XIII, chamado ‘o diabo em carne e osso’, fez crescer os tributos escorchantes da igreja, aumentando as rendas papais, multiplicando os corretores eclesiásticos, e lançando impostos até aos prostíbulos, casas de jogo e à usura. Na Inglaterra, a receita que o chefe da igreja arrecadava era cinco vezes maior que a do rei, e maior que a de qualquer príncipe cristão. E apesar de tudo isso e dos crimes abomináveis imputados aos papas Bonifácio IX, Baltasar e Bórgia, continuaram os papas a ser, ‘por direito’, a fonte divina do poder temporal, os juízes infalíveis dos reis, os supremos distribuidores de todos os tronos. Por isso uma cláusula, a mais importante no libelo contra João Huss e Jerônimo de Praga, foi a que os acusava de pregar que a soberania das nações é superior à dos reis, idéia intolerável às inclinações absolutistas de Roma que subjugava os povos aos reis, para subjugar os reis ao papa. Maior culpa foi atribuída a Wiclef que negava à igreja romana qualquer domínio sobre outras dioceses. Mas a igreja forçava sua doutrina dominadora e decreta que o príncipe ou governo que incorrer em heresia decai de todo o poder, caso em que, os súditos devem rebelar-se contra ele; esta teoria era ponto de fé admitido por todos os teólogos de bom conceito em Roma; e a destituição do rei infiel efetivava-se mesmo antes da sentença papal. Desse modo, pode o papa, por suas bulas, para as quais não admitia oposição, pregar impunemente a rebelião em qualquer nação; e, como a deposição da autoridade infiel resulta do próprio fato da heresia, tem qualquer bispo, na nação onde está sua igreja, nos seus sermões, o direito de recomendar aos cidadãos que desobedeçam ao rei.
Por todos esses desmandos da igreja dos papas, sua tendência invasora, a confusão entre a influência temporal e a autoridade religiosa, o sacrifício da fé à política, a intervenção opressiva nos estados, lentamente cresceram entre os povos as idéias da grande reforma protestante. Tributos triplicados pelo papa Benedito IX, a extorsão e a jurisdição sem limites sobre questões temporais praticadas pelos tribunais eclesiásticos de Roma, o vergonhoso comércio de indulgências (Com promessas blasfemas, os traficantes de indulgências não respeitavam nem decência, nem pontos mais melindrosos da fé. Apregoavam: ‘Asseguramos a salvação de sua alma a quem quer que compre bulas e indulgências. É só soar o dinheiro na caixa e, no mesmo instante, suas almas escaparão do purgatório e voarão aos céus. Tão grande é a força destas indulgências que chegam a expiar os maiores pecados, ainda o daquele que, por impossível, violasse a mãe de Deus. São mercês inefáveis do Senhor, empenhado em reconciliar consigo os homens, retirando-lhes pena e culpa. A cruz que levantamos tem tanta força quanto a cruz de Cristo. Os céus estão abertos; se agora não entrais, quando entrareis? Por algumas moedas resgatareis, também, do purgatório a alma de vossos progenitores; tão ingratos sois, que não tendes empenho em livrá-los dos tormentos? Ainda que tivésseis uma veste só, devê-la-íeis despir já para comprar tamanhos benefícios.’ Tais absurdos, mais a tirania com que a igreja romana tratava os povos, eram considerados pelos povos devotos do norte (da Alemanha e França, principalmente) ‘um sistema de aviltante servidão’.
O papa Pio II oferece um império, a troco do batismo, a Maomé II: ‘Nós te nomearemos imperador dos gregos e de todo o Oriente’; lança o interdito aos florentinos por terem punido os mandatários do papa no assassínio de Juliano Médicis; provoca contra Milão e Florença uma guerra invasora e as entrega ao exército de Fernando de Aragão; a Luiz XII, em troca de um principado para César Bórgia, o papa Alexandre VI doa o trono de Nápoles; lança Gênova contra Bolonha; provoca guerra contra os franceses, até há pouco tempo seus aliados etc.
Com a atenção toda voltada para o poder temporal, a religião declina, surgindo práticas supersticiosas e materializando-se. A intromissão do clero no governo das nações e nas suas relações internacionais, mantém a Europa em permanente agitação, alterando o direito dos povos à conveniência da igreja. Com isso, Roma preparou o cisma protestante. Quando lhe faltou força para sujeitar os reis, aproveitou-se da superstição das gentes para empobrecer os povos. ‘A ficção histórica do direito de ligar e desligar, dado aos papas por Deus, tornou-se produtiva de bens terrestres, com o significado de ocupar e possuir.’ As imposições da igreja romana eram ‘humilhantes e arruinadoras’.
A revolução religiosa do séc. XIV já era pressentida séculos antes pelos explorados e foi dirigida quase somente contra a ânsia de domínio temporal do papado. Uma das maiores queixas contra a igreja era a de que cabia aos papas o direito de nomear e demitir reis. Protestos começaram a surgir contra a necessidade de obedecer a um pontífice injusto e indigno. Começou a resistência, chamada de heresia pelos papas, contra a abusiva dominação. A igreja respondeu aos protestos com a criação da Ordem dos Jesuítas, cuja missão era tão desumana que foram chamados de ‘os mais mortais inimigos da liberdade intelectual e moral’. Na ‘Historia do Papado’ está: ‘Se seus planos vingassem, os papas teriam para sempre o domínio sobre o poder temporal. Os jesuítas levantaram pretensões e direitos que trouxeram subversões internas aos impérios. Foi principalmente essa ordem que defendeu essas doutrinas, reclamando uma ilimitada soberania da igreja sobre os estados. Em face da nova postura dos reis, que negavam essa autoridade, tinha a igreja de usar novas armas. Daí em diante havia de ser verdadeira batalha a hostilidade romana contra a independência dos governos; os povos não eram mais tão dóceis e o papa precisava de um exército presente em toda parte contra o mundo que se insubordinava. Assim, o papa Paulo II, na bula que instituiu a Ordem, chamou-a de ‘regimento da igreja combatente’. E dizia: ‘Nossas casas são verdadeiros acampamentos’. Estabelecida a Companhia, que exigia a renúncia do livre-arbítrio, afirmava Inácio de Loiola: ‘renunciar à vontade tem mais valor do que ressuscitar um morto; mesmo que Deus nos dê por senhor um animal sem inteligência, não podemos hesitar em obedecer-lhe, não por sua sabedoria, mas pelo fato de que representa Deus; e que a beleza da obediência cega desaparece assim que, em nosso íntimo, indagamos se é bom ou mal o que nos determinam’.
Essa redução da alma a autômato está consagrada claramente nesta regra da Ordem dos Jesuítas. ‘Os que vivem sob obediência cumpre que se deixem guiar, como cadáveres, pela divina providência representada nos superiores. Nenhuma constituição, declaração ou regra de vida podem se estabelecer, sob pena de pecado mortal, senão quando o superior da Ordem, em nome de Nosso Senhor, ou do preceito de obediência, as promulgar’. ‘Quem lê isto custa acreditar no que lê’, exclamou um dos mais sábios historiadores da igreja, e ‘alguém afirmar que aquele estado cruel a que a ordem de Loiola degrada o homem, que esse regime contraria de modo abominável os desígnios da Providência, é terrível heresia por desafiar o representante vivo do Senhor Deus. Ora, diante de tais monstruosidades, como há de alguém hoje defender a igreja romana?’
Essa ordem, cuja suprema regra era ‘não possuir ninguém consciência própria’ e ‘consagrar a vida a serviço de Cristo e dos pontífices romanos’, era a protegida dos papas. Assim, tinham os jesuítas, com imunidades e prerrogativas imensas, um poder muitíssimo superior ao dos bispos, sempre em proveito da dominação papal. A causa pela qual eles lutavam tinha por fim trocar a liberdade pela obediência, e sua disciplina era mais rígida que a militar. Nesse sentido, a organização de Loiola foi a mais perversa obra de trevas que a deturpada moral cristã pode criar. Esse exército encheu a terra, por três séculos, com suas obras a favor da supremacia teocrática de Roma, instigando o massacre dos valdenses; influenciando o imperador da Áustria, para dominar a corte e a universidade de Viena; aniquilando, na Boêmia, os direitos dos protestantes; influenciando decisivamente para a devastadora guerra dos trinta anos; aprovando e glorificando a carnificina da noite de S.Bartolomeu, a que a Ordem denominou noite imortal; abençoando, como confessaram, o punhal de um mandatário assassino; pregando em várias nações, com conceitos de sua falsa moral, como direito dos católicos, a deslealdade aos pactos mais solenes contraídos com estados não católicos; conspirando, na Inglaterra, Portugal e Hungria para obter vantagens da parte vencedora etc. (O massacre dos protestantes na França e nos Países Baixos, promovido pelo papa Pio V, fez o papa seguinte, Gregório XIII, que assistiu, naquela noite de sangue, à sinistra vitória dos católicos, derramar lágrimas de júbilo, fazendo celebrar um Te-Deum e cunhar medalha comemorativa da matança. Ainda hoje existe no Vaticano a sala régia, onde um pintor, logo inspirado pelo papa, perpetuou o massacre, retratando, em três quadros, o assassinato dos huguenotes na noite de 24 de agosto. ‘O palácio do papa’, diz Stendhal, ‘é o único lugar no mundo onde o assassinato é glorificado publicamente’.
É certo que houve papas que, discordando, condenaram a Ordem, mas suas condenações resultaram em humilhantes retratações feitas por papas posteriores que devolveram aos discípulos de Loiola títulos e privilégios. Para os jesuítas, a religião toda está resumida na autoridade do papado, tanto que a Ordem olhou sempre com ódio, ao longo da história, aqueles poucos que têm preservado o espírito do primitivo cristianismo. Exemplo disso as injúrias e difamações até nos púlpitos e a perseguição que fez a certos bispos inclinados à doutrina antiga. Um destes, escreveu ao papa: ‘Fujo para as montanhas; busco entre serpentes e escorpiões, lá abundantes, a segurança e paz que não encontro junto a inimigos irreconciliáveis, como os jesuítas, que têm na igreja um domínio tão grande que está acima de toda autoridade e da lei.’
A Ordem justificou suas crueldades mais selvagens; louvou, como penalidades caridosas para os hereges, a espoliação de sua descendência; aos filhos dos infiéis aconselhou que denunciassem os pais e os matassem à fome; e aos noviços da Ordem, a quem se proibiam teatros, recomendava assistissem ao espetáculo santo dos queimados vivos nas fogueiras. Jamais a igreja refutou as palavras de Doellinger: ‘Onde os jesuítas pisam, a erva não cresce mais’.
A ‘obra-prima’ dos jesuítas foi no Paraguai. ‘O Paraguai apresenta maravilhas como as dos primeiros séculos cristãos; em alguns anos, as tribos mais selvagens formaram, sob nossa influência de apóstolos cristãos, sociedades modelos, perfeita reprodução do paraíso.’ Entretanto, o que os brasileiros viram, na guerra em que nosso exército penetrou até o interior do país vizinho, habilita-nos a julgar a obra dos jesuítas: uma nação de criaturas aviltadas até abaixo do cativeiro, sem lei, nem direitos, sem tribunais, nem governo, sem moralidade social ou doméstica, sem família, sem instrução, sem indústria, sem comércio - uma tribo de fanáticos, pobres até a penúria, selvagens até a ferocidade.
A Ordem ensinava que os papas têm o direito de depor reis infiéis; que a insurreição de um padre contra um rei não é crime de lesa-majestade, porque os sacerdotes só são súditos dos papas; que os povos católicos têm por dever de fé, assassinar o príncipe que não exterminar os hereges; que deve ser glorificado aquele que, como Clément, matar seu rei (Clément, instruído por teólogos romanos que é lícito matar o tirano infiel à igreja, conseguiu respeitado nome, tirando a vida ao seu rei). Entre muitas adulterações, falsificaram o texto de S.Paulo, que ensinava ser a meta da religião a educação e não o extermínio dos crentes: ad aedificationem, non ad destructionem (para edificação e não para destruição). Santarelli, chefe dos jesuitas, eliminou o non e, assim, inverteu a lição do apóstolo.
Falando ao Czar, a respeito dos jesuítas, escreveu Maistre: ‘Nada é mais útil aos interesses de Vossa Majestade, do que essa sociedade de homens essencialmente inimigos daquela donde V.M. tem tudo a temer. Nas doutrinas da Ordem, como na da igreja, tirano não é o opressor do povo, mas o insubmisso ao papa, e tiranos dessa espécie incorrem numa sentença cuja execução torna sagrados todos os crimes e até o punhal assassino’.
Iniciou-se, no fim do séc. XVII, o culto do Sagrado Coração de Jesus e, após, o do Sagrado Coração de Maria (o culto a Jesus só se iniciou 125 anos após a crucificação), superstições com que a igreja tem paganizado o catolicismo em prejuízo do culto a Deus; e a mariolatria e a adoração abusiva de imagens contradizendo a Bíblia Sagrada. E a igreja ensina que o Cristo elogiou Maria Alacoque: ‘Alegra-me que prefiras a vontade de teus superiores à minha’. É, pelo que se vê, a hierarquia sacerdotal acima do próprio Deus; este é o espírito da igreja romana em todos os séculos.
2. Desenvolvimento do papado à custa da igreja.
Entre o primitivo cristianismo e o atual, a igreja dos papas cavou enorme abismo. A infalibilidade, base do catolicismo romano, é a negação daquele cristianismo. Compreendendo o valor da tradição no espírito dos homens, a igreja se esforçou em provar que, apesar da escandalosa deturpação de sua doutrina, é a mesma dos tempos primitivos. O que a história conta, porém, é uma realidade totalmente oposta. Doellinger: ‘Então, meu livro sobre a igreja primitiva, que os católicos da Alemanha têm como quadro fiel da época na qual se firmaram todos os fundamentos da doutrina, ao qual nem os jesuítas fizeram críticas de peso e que V.Exa. (o arcebispo de Munique) aprovou, é falso. Se nos recentes decretos papais é que jaz a verdade, hão de, com justiça, argüir-me de haver relatado falsamente a história dos apóstolos, a constituição da antiga igreja, o relacionamento entre os apóstolos e S.Pedro; em suma, tudo errado fundamentalmente, e eu seria forçado a confessar não haver entendido nem os atos, nem as epístolas, conforme as narrativas evangélicas’.
Os que querem vincular a soberania dos papas ao fato de S.Pedro ter sido, dizem, o primeiro papa, esquecem o primeiro ato coletivo da igreja, o concílio de Jerusalém, no qual a solução das questões coube, não a Pedro, mas a Tiago, bispo da cidade. Mas, não é esse o único ponto em que os evangelhos testemunham contra a pretensão de ter sido Pedro o primeiro papa. As epístolas de Paulo mostram que esse primado nunca foi real entre os primeiros cristãos, e que a fé desse apóstolo era tão frágil como a dos demais. Nesse primeiro concílio, o nome de Pedro sequer foi mencionado. Os que colocam esse discípulo acima dos outros, precisam ler as epístolas de Paulo: ‘Em nada tenho sido inferior aos maiores dos apóstolos.’ ‘O Evangelho, não o aprendi de homem nenhum, mas de Jesus Cristo, que mo ensinou’. A história não mostra que Pedro fosse um apóstolo maior que os outros. O papado, para levar avante seus planos temporais, não hesitou em alterar a verdade histórica dos evangelhos.
Roma não foi a mais antiga das igrejas. Mais antigas as de Jerusalém, Éfeso, Antioquia e Corinto. O título de apostólica, hoje exclusivo de Roma, se aplicava a todas as igrejas instituídas pelos apóstolos, e chegou a ligar-se a todas as igrejas episcopais. Até o séc. IV, a de Jerusalém era a ‘mãe de todas’. Essa forma de ‘saudação e benção apostólica’, de que hoje Roma atribui a si o privilégio, só nasceu no séc. XI, com o papa Leão IX, desmentindo absolutamente afirmações de que já existia no séc. I.
As igrejas eram totalmente independentes e autônomas. Não havia qualquer subordinação à de Roma, que era igual a qualquer outra. O título de papa, simples honraria, aplicava-se a todos os bispos. ‘Nossas numerosas igrejas reputam-se todas a mesma igreja, sendo a de Jerusalém, a primeira fundada pelos apóstolos, a mãe de todas. Juntas, são uma só, pela harmonia, pelo mútuo tratamento de irmãos, pelos laços de hospitalidade entre todos.’ Esta condição, aceita e aprovada por todos os bispos, inclusive o de Roma, foi totalmente esquecida.
Os cargos da igreja eram preenchidos por eleição, votando padres e leigos, em verdadeira democracia, até o séc. XII. Morrendo Tiago, bispo de Jerusalém, ‘apóstolos, discípulos e parentes de Jesus, reuniram-se para dar-lhe sucessor’. No concílio de Elvira, o mais antigo, reuniram-se bispos e padres, homens e mulheres do povo; o mesmo ocorreu noutros concílios. ‘Todos agiam sem discriminação e o voto dos leigos tinha o mesmo valor do voto do clero, condição hoje destruída pelo papa infalível.’
O concilio de Cartago ‘proibia que os bispos ordenassem clérigos sem a aprovação do clero e dos leigos’. No séc. V, o papa Leão decretou que ‘aquele a quem compete mandar em todos, por todos há de ser eleito’ e o papa Hormísdas, séc.VI, ‘reconhece, na aclamação do povo, o juízo de Deus’. Até no início da Idade Média, os prelados na França eram nomeados pelo povo em ‘votação na cidade e no campo, do clero, nobres e leigos, e mulheres’. Não havia interferência do clero romano, que era notificado do fato, como as outras igrejas, por simples carta. Roma não tinha liderança alguma; muitas vezes a vimos em situação de inferioridade para com as outras igrejas, particularmente a da África. Na disputa, entre Cornélio e Novaciano, séc. III, ambos papas de Roma, que dividiu os cristãos entre os dois, a solução do sínodo romano, a favor de um e excomungando o outro, não foi aceita na cristandade, e sínodo africano deu solução diferente. A deposição de bispos espanhóis, cancelada pelo papa de Roma, teve o ato deste anulado em sínodo de Cartago que apoiou o sínodo espanhol; a sentença da África prevaleceu sobre a romana. Em muitos casos foi evidente a incompetência do papa romano em solucionar questões da igreja; as decisões eram do episcopado inteiro, o que mostra a igualdade de todas as igrejas e de seus líderes. Dar a supremacia à igreja de Roma é esquecer essa igualdade dos primeiros séculos, e a história mostra, muitas vezes, a igreja romana se submetendo às demais, não por imposição, mas por sua igualdade. O bispo de Roma era, como os das outras igrejas, sujeito às assembléias dos bispos, e estas aconteciam, por vezes, sem que o papa romano tivesse notícia. Só a partir do séc. VI, os patriarcas, como cortesia, comunicaram a Roma as ordenações. Mesmo quando heresias ocorriam em todo império romano, os pretensos sucessores de Pedro não erguiam a voz para condená-las. Outro fato, que mostra a não preponderância do papa romano, refere-se à celebração da Páscoa. O uso foi estabelecido sem que constasse, nas atas do sínodo, referência a esse papa, que, aliás, chegou a ser repreendido pelo sínodo de Éfeso por desrespeito à independência das igrejas irmãs.
Sobre o batismo de hereges, é a igreja africana que decide, apesar da reprovação do papa romano, a quem, o bispo de Cesaréia afirma ‘faltar corpo e alma e sobrar orgulho, cinismo e heresia’. ‘Não julguemos a irmãos por serem contra nosso parecer. Nenhum de nós quer elevar-se a bispo dos bispos, nem levar seus colegas a obedecer-lhe por terror tirânico; porque qualquer bispo é plenamente senhor de sua vontade e de seu poder e, assim como por nenhum outro pode ser julgado, não pode julgar nenhum.’
Aqueles que contestavam a doutrina da criação, a redenção pela cruz, a divindade de Cristo, sua filiação divina, a ressurreição da carne, nem eram perturbados pelo papa romano. No caso da negação da divindade de Jesus, o Oriente julga e depõe o bispo negador, sem ouvir o de Roma. Quanto ao dogma da Santíssima Trindade, numerosos bispos o reprovaram e, por isso, foram excomungados pelo imperador Constantino; os que aprovaram eram tão poucos, que o imperador convocou, e ele mesmo presidiu, o primeiro concilio geral, com o fim de ratificar seu decreto sobre a Trindade. Mesmo sendo pontífice pagão, fez-se chefe da igreja que nascia, restaurou templos do paganismo, gravou em monumentos a afirmação de sua divindade lado a lado com a cristã, e colocou na estátua de Apolo relíquias da crucificação de Jesus. Esse déspota sanguinário, supersticioso, algoz de cristãos, foi que presidiu esse concilio onde se regulou a unidade da igreja, a administração dos sacramentos, a excomunhão, a penitência, o culto e a hierarquia, não havendo lugar especial para os bispos de Roma, que se confundiam com os demais. Constantino, pagão, presidia, ‘representando a majestade de Deus’.
Mais tarde, quando o bispo de Roma declarou seu o direito de julgar as causas maiores, os outros ‘o advertiram de que, além de ser estranho ao assunto em questão, não era superior em dignidade aos demais pelo fato de ser bispo de uma cidade maior’.
Libério, o antecessor dos papas infalíveis, traiu, duas vezes, o credo cristão, negando a divindade de Jesus. Não foi convidado para o concílio sobre as duas primeiras pessoas da Trindade, e no concílio sobre o mistério da Trindade, nem foi notificado do resultado.
No antigo cristianismo, papas e bispos se chamavam, indistintamente, de irmãos; o tratamento de santidade era para líderes como S. Agostinho, e S. Crisóstomo. Quando foi julgado por heresia sobre a preexistência das almas, Orígenes não apelou ao papa de Roma, mas ao de Alexandria. Sete concílios, convocados pelo bispo de Hipona, aconteceram sem notificação ao bispo de Roma. Em 411, sob a presidência de leigo nomeado pelo imperador romano, 530 bispos reuniram-se em concílio, do qual o bispo de Roma nem participou.
Vários papas de igrejas ocidentais colocaram-se contra a doutrina do pecado original, do batismo, da graça, exigindo decisão urgente, e mesmo assim, Roma nem chegou a ser consultada sobre essas questões.
O segundo concílio geral de Constantinopla, reunido pelo imperador, foi uma manifestação geral contra as tendências usurpadoras de Roma e declarou a igualdade das igrejas, sem qualquer desaprovação do papa romano. Os concílios trouxeram dogmas sobre sacramentos, a natureza de Deus, de Cristo, do Espírito Santo, da Trindade, a criação do universo, a encarnação do Verbo, a salvação das almas. Nessas assembléias, clero e leigos decidiam sobre tão importantes assuntos. E considerava-se enorme absurdo qualquer supremacia do papa romano sobre os demais patriarcas.
Houve excomunhões de bispos de outras igrejas, os quais, apelando ao de Roma, este os reintegrava. A reação a isso mostra bem que o bispo romano não tinha qualquer precedência: ‘Não podeis reintegrar aqueles que foram excomungados em suas províncias; melhor seria repreendêsseis os que, por erro, para vós apelaram. Não há concílio que nos obrigue a atender vossas ordens. Não tendes, recebida dos céus, graça particular para tal.’
A igreja era superior aos papas. Um papa, condenado no concílio de Constantinopla, apela para as igrejas de Alexandria, Roma, Tessalônica e Jerusalém, simultaneamente, mostrando não ser ele superior à igreja, pois por ela fora condenado, e que a de Roma não era superior às outras. Porém, graças a múltiplos acontecimentos, ao caráter invasor dos bispos de Roma, às concessões graduais das outras igrejas, no meio de conflitos teológicos e disciplinares que dividiam os cristãos, e aos negócios oportunistas entre a igreja romana e imperadores, aos poucos cresceu a autoridade do bispo romano. Os quatorze séculos seguintes assinalam o desenvolvimento dessa autoridade que, em nome de Cristo, só desejou dominar as consciências e os Estados. Porém, houve quem não aprovasse o que acontecia. No séc. VII, o papa Gregório Magno considerou tão absurdo o título de bispo universal, que o chamou de invenção do diabo: ‘Quem quer que se chame de bispo universal é precursor do Anticristo, porque isso é pretender pôr-se acima dos outros.’
A condenação de um papa, no séc.VII, como herege, é fato histórico indiscutível. Roma, sem êxito, tentou ocultar o fato que provava a não-infalibilidade. ‘Condenamos e segregamos da santa igreja o papa Honório, que, por traição, subverteu a fé.’ A fraude, tão usada em Roma, foi usada novamente: depois de novecentos anos, no séc. XVI portanto, o nome desse pontífice é retirado da relação de hereges, por ordem papal, para defesa do dogma da infalibilidade.
Mesmo muito após a promulgação da infalibilidade do bispo de Roma, que buscava se alçar acima dos demais, continuou a igreja dividida entre as cinco grandes sés, e a sentença final nas causas eclesiásticas cabia, em cada uma, ao patriarca respectivo. E, queixa freqüente era: ‘É tempo de recusar as mutilações da fé, que entre nós colocaram os mentirosos e falsificadores. Necessitará Deus dessas fraudes?’
O concílio de Constança condenou com energia a supremacia e a infalibilidade papal. Mas, a igreja romana usava de todos os artifícios para vencer. Assim é que, nos sínodos, o episcopado romano, mais ignorante, mas mais numeroso, conseguia sempre dar vitória aos desejos dos papas. Apesar disso, houve vários papas que anularam bulas de seus antecessores, concorrendo para o descrédito da infalibilidade. ‘Afirmam os papas que têm a assistência infalível do Espírito Santo, mas esquecem, com a prática dessas imoralidades, de S.Paulo que disse: ‘Confessam a Deus, mas negam-no com as obras, porque são abomináveis e rebeldes para qualquer boa ação.’ Assim, Inocêncio IV admitia poder o papa errar como qualquer homem, e aconselhava ‘desobediência a decretos papais manchados de heresia, pois cumpre aos fiéis crer no que a igreja crê; não no que o pontífice ensina’. De 1560 até 1826, em numerosos sínodos, a igreja francesa colocou-se contra a tirania de Roma, tachando-a de falsa e cruel, e suas bulas, de inadmissíveis.
Embora a independência dos bispos e de suas igrejas tenha origem no primitivo cristianismo, e seja a igreja de Jerusalém o berço do Evangelho e da literatura cristã, sede dos mais importantes concílios, através da historia, nunca, em dezenove séculos, surgiu ali a idéia da infalibilidade. Entretanto, Roma, depois de 1900 anos, introduziu esse dogma. E os bispos franceses protestaram ao papa Carlos X: ‘Senhor, as decisões adotadas na igreja são denunciadas como atentatórias à divina constituição do catolicismo, como manchadas de cisma e heresia, e profissão de ateísmo’. Enquanto protestam contra as absurdas decisões da igreja romana, esta alega que a igreja francesa tem ‘sua fonte na onipotência do poder real, ao passo que a de Roma a tem na onipotência divina’. Isso, porque a igreja de França resistiu mais aos absurdos de Roma do que as outras, que desamparadas, sob príncipes fracos, cederam muito antes.
A igreja da Inglaterra, Irlanda e América recusaram aceitar o dogma. Um protesto inglês, em 1789, assinado por todo o clero e leigos de nome, afirmava ‘não admitir a infalibilidade’. Em 1810, a igreja irlandesa em manifesto público confessa que retirara, do juramento dos sacerdotes, a doutrina da infalibilidade e que no Reino Unido não havia católicos que a aceitassem. Em 1823, um dos bispos mais conceituados da Grã-Bretanha afirmava que ‘nenhum decreto papal obriga os fiéis sem o assentimento do concílio’. Protestava-se contra a infalibilidade papal em todas as igrejas da Europa. Afirmava o bispo de Orléans: ‘Gravíssima é a questão porque trata de proclamar um novo dogma, o da infalibilidade pessoal do papa, e os fiéis nunca, em dezoito séculos, foram obrigados a crer nisso apesar da ameaça de excomunhão’. E o maior teólogo inglês: ‘Graças à igreja de Roma, o simples nome de concílio traz sobressalto e terror. Até hoje convocaram-se concílios para livrar a igreja de graves perigos. Mas esse aí que se celebra no Vaticano, ao invés de livrá-la de perigos, mergulha-a profundamente neles’.
O episcopado, afinal, colocou a consciência e o dever aos pés do bispo romano, com sacrifício da dignidade católica e tristes pressentimentos contra o dogma, denunciado pelos teólogos mais cultos como ‘obra de fraude, paixão e mentira, resultado de lastimável vitória dos jesuítas contra a igreja, desastre para a religião e para a humanidade’. Pediam-se sérias reflexões aos bispos do concílio, advertindo-os de que o novo dogma traria irreparável dano ao catolicismo.
O bispo de Augsburgo, grande teólogo, escrevia, em 1870, aos padres romanos assinantes da petição ao papa Pio IX para que se declarasse infalível: ‘Trouxestes com essa petição que a infalibilidade papal seja promovida a dogma. De agora em diante, sob pena de excomunhão e perdição eterna, 180 milhões de homens têm de crer naquilo que, até hoje, a igreja não creu nem ensinou. O católico só pode crer naquilo que a igreja lhe impuser como verdade revelada por Deus, naquilo cujo contrário não admite e condena como heresia. Ninguém, desde que a igreja existe, creu na infalibilidade papal. O dogma que querem adotar é fato inaudito na história da igreja; não houve, em dezoito séculos, coisa semelhante. Isso que fazem é uma revolução na fé e na doutrina, porque se trata do fundamento onde vai, de agora em diante, assentar a religião de todos, e vai-se trocar toda a igreja universal, por um indivíduo só, o papa. O fiel que cria nos dogmas porque a igreja assim ensinara, agora tem de crer porque o papa, que se pretende infalível, manda que se creia. Esquecida ficou a lição de Jesus: ‘O que a si mesmo se exalta, será humilhado’ (Os primeiros serão os últimos).
Os bispos da França afirmaram ‘ser absoluto despropósito impor aos católicos, já vítimas de tantas conjurações, encargos ainda mais gravosos como o de crer no novo dogma; e que isso despertaria nos homens mais honestos sérias desconfianças contra a fé cristã’. A Áustria e a Alemanha, afirmaram que a igreja não podia impor aos cristãos o novo dogma como revelação divina. Na América do Norte, que o escândalo mostra a todos a discórdia dentro da igreja. As igrejas orientais, que traria riscos à religião. Na Itália, que o dogma dá armas aos inimigos da igreja e ofende os homens de bem. Contudo, os protestos nem tiveram resposta de Roma. ‘Nada mais resta senão protestar em face aos funestos sucessos que já estão surgindo; eximimo-nos de qualquer responsabilidade perante os homens e perante o juízo de Deus. Que repudiamos o dogma, seja este escrito eterna testemunha. Algum dia, hão de se dar contas de seu erro aqueles que se valeram do concílio para atender ao desejo do papa romano. Triunfam, não dos inimigos da fé, mas dos próprios irmãos, causando à igreja o mais sério prejuízo, para fazer valer opiniões que são para nós vivos temores’, ou. ‘Antes a morte do que aprovar semelhante dogma’, ou ainda ‘Muitos rejeitarão o decreto como inaudita inovação; crer-se-á mudada e, portanto, falsa, a doutrina. A autoridade dos concílios e dos papas desabará, e incredulidade horrenda se espalhará pelo mundo todo’.
‘Se aprovada tal definição, nenhuma resposta mais teremos quando protestantes nos censurarem a fé. Até hoje, vós mesmo ensináveis ser essa doutrina opinião livre, e hoje a impondes por dogma de fé. Logo, ou antes mentíeis, ou inverteu-se a doutrina da igreja’; ou ‘Tal tradição não existe na minha igreja; essa definição vem trazer a deserção de grande número dos melhores católicos’; ‘Esse dogma é o suicídio da igreja’; ou ‘Esse incrível absurdo é uma declaração de guerra a todo o passado da igreja’; e ‘A tradição dos concílios foi violada’.
Esses protestos eram os últimos suspiros de fé na hierarquia romana. A divinização do bispo de Roma, sob pressão direta do próprio, consumou-se mesmo sem unanimidade, meia-cristandade não estando a favor e, na outra metade havendo enorme desproporção entre a importância das províncias representadas e o numero de legados no concílio. ‘A adoção desse dogma constitui flagrante contradição com a antiga igreja, que não mais poderá apelar para o que, em tempos de turbação, a salvou. Doravante, a Santa Sé jamais obterá o apoio de uma assembléia de bispos.’
A adesão à infalibilidade papal era considerada, por partidários do papa, dever de gratidão e de subalternidade hierárquica: ‘Quando vigários apostólicos, cujo salário é pago pelo papa, assinam protesto contra o dogma, é geral, na igreja e em todo o mundo, a indignação.’
A unanimidade moral era requisito essencial nas definições conciliares, tendo cem bispos, de eminente sabedoria e virtude indiscutível, no concílio Vaticano, declarado que, se violado esse princípio, sua consciência sofreria pressão intolerável e se cometeria o mais grave dos crimes. Mas, embora se exigisse liberdade plena nas reuniões, os adeptos do papa se utilizavam de artifícios que tiravam toda liberdade aos opositores; uma verdadeira lei da mordaça. Bastava assinatura de dez padres para propor-se o encerramento, quando encerrar era vencer. ‘Que dignidade tem essa assembléia? Haverá coisa igual, na América ou na Europa? Alguém que leve a sério suas deliberações? Isso é escândalo para o mundo. O impossível sucedeu.’ O sínodo de 1870 teve imoralidades sem conta: expulsão da tribuna daquele que apresentasse objeções à infalibilidade; ameaças aos bispos orientais; desprezo à igreja caldaica; violências aos patriarcas da Babilônia e da Antioquia; falsificação de documentos oficiais; ‘Como esquecer esse terror exercido aos opositores, que não mais ousavam assinar protestos, pois eram comparados aos que crucificaram o Cristo? Essa assembléia não se respeita a si mesma. E animam-se, ainda, a falar de liberdade!’
Esse concílio foi chamado de Farsa do Vaticano, ‘principiou por uma cilada e terminou com um golpe de estado, mas haverá quem, no futuro, arrependido, soluçará no travesseiro da morte’.
A falsificação, exercida desde muitos anos sobre as fontes da literatura eclesiástica, foi usada nas atas: a infalibilidade, não claramente definida na ata final, foi estabelecida em plenitude absoluta com um adendo no dia da proclamação solene. De ‘as decisões do papa romano são de si mesmas irreformáveis’, passou para ‘irreformáveis por si mesmas, e não pelo consenso da igreja’, que os romanos não haviam ousado colocar em discussão. Um oposicionista inquirira várias vezes: ‘Excluis, ou não, o concurso dos bispos? Dizei-o se sois capazes?’, porém os infalibilistas respondiam com evasivas deixando não resolvida a questão. Essa dúvida o adendo cortou pela raiz, depois de já encerrado o concílio. Semelhante ardil seria difícil de crer, se o fato não fosse testemunhado por muitos, tendo um escrito ao arcebispo de Munique: ‘Há no decreto um adendo não discutido, que, após encerrado o concílio, quando muitos e vós vos havíeis retirado, foi intercalado. Aquilo que na essência não significava nada mais que um ato de respeito ao pontífice de Roma, inesperadamente transformou-se num dogma terrível que só o futuro ajuizará. A posteridade poderá verificar esses vícios radicais nos registros da própria igreja. A fé cristã não é, nem será nunca, a ditada por essa ignóbil e cega ‘divindade’ assentada no trono de S.Pedro’.
Houve lances de coragem de bispos contra a autocracia papal, trazendo perigo iminente aos reclamantes, que se retratavam rapidamente, sinal de que a igreja estava se degenerando. Os nomes de bispos e leigos que não aprovaram, foram eliminados do rol dos ilustres da igreja cristã.
A história não deixa dúvidas de que os interesses temporais invadiram inteiramente a igreja romana, enorme associação política de disciplina e organização maravilhosas, mas dominada por absolutismo terrível. De origem divina que se reputava em seu início, a infalibilidade a transformou em simples instituição humana, cuja política se modifica conforme suas conveniências. Mil e novecentos anos viveram os cristãos sem suspeitarem esse dogma que veio a ser ‘o princípio fundamental da fé cristã’. Dezenove séculos depois de Cristo, inventaram isso que veio sujeitar a doutrina e a igreja à vontade do pontífice romano, a igreja que, no começo, deveu a existência a uma democracia religiosa, que do IV ao IX século foi obra quase exclusiva do Oriente, onde, nesse período, houve todos os concílios gerais, a cujas decisões o Ocidente curvou-se, embora sua participação fosse quase nula, e nem era conhecido o pontífice romano, ao qual, durante os primeiros seiscentos anos, nenhuma igreja se filiou. ‘As igrejas da Itália, Espanha, Gálias se tornaram cristãs sem o concurso de Roma, com quem não guardavam nenhuma dependência; eram irmãs dela, não filhas.’
‘A infalibilidade do papa é uma instituição que lhe dá um poder bem maior que o poder da igreja inteira. Porque há de ser esse imenso privilégio agora feito dogma, se dele a igreja não necessitou em dezenove séculos, pois que sempre foi menos aceito do que a infalibilidade da igreja inteira? O governo da igreja sempre foram os concílios, que decidiam nas questões de disciplina e fé e em todos os interesses da igreja.’ Com o novo dogma, os bispos são rebaixados de irmãos a servos do papa; os féis, levados a uma idolatria perigosa por estar ornada com hipócritas exterioridades e dogmas inventados. Quem investigar, na história, a doutrina da primitiva igreja, verá que a de hoje é puro paganismo. Graças ao papado, a religião de Cristo desapareceu, permanecendo à superfície, adulterados, apenas os símbolos sagrados. Diz-se libertadora, mas o que deseja é o domínio da hierarquia papal; diz-se amiga dos povos, mas é apenas amiga dos tiranos abomináveis e retrógrados, quando a favorecem. Destrói o governo temporal de Juarez, excomunga a Itália, arrasa o progresso constitucional da Bélgica, abençoa o regime cruel de Portugal, Espanha, Nápoles, Inglaterra; prejudica a França; institui a obrigatoriedade perpétua do dízimo, a garantia do direito de asilo, o cristão como culto oficial e único.
As pessoas não dadas a estes estudos são levadas a freqüentes enganos ou à indiferença acerca da teologia cristã atual. O rótulo que traz faz crer seja ainda a doutrina revelada por Jesus. Mas uma pesquisa maior sobre a doutrina evidenciará que a infalibilidade nada mais é que criação terrena, invento de uma política tendente à exploração da sociedade inteira, e que se diz de origem divina. Toda as soluções, que antes eram obra dos concílios, isto é, da palavra da igreja inteira, agora são substituídas pela palavra do papa. O legislador do dogma é o papa; a assembléia simplesmente ouve e aceita.
Os bispos perceberam o que se aproximava: ‘Desejam que o próximo concílio’, bradava o bispo de Orleans, ‘pronuncie decreto que suprima os concílios? Que os bispos decretem sua própria renúncia?’ Mas, todos os protestos foram em vão. E o bispo de Roma promovido a bispo único da cristandade inteira, pode, ele mesmo, definir sua supremacia infalível. Rebaixados, bispos não mais tinham o direito de se imporem como órgãos reveladores da fé. ‘Por que o papa há de consultar bispos que estão, individualmente, sujeitos a erros? Não é isto razão para o papa se consultar a si mesmo, pois só a ele Cristo prometeu infalibilidade? O concílio é que deve sujeitar-se às decisões do papa. Que razão há para julgar o concílio como um novo Messias? O que está escrito é que a fé de Pedro não falhará’. Para qualificar de herética qualquer doutrina, basta, agora, que o papa infalível a condene.
O Arcebispo de Reims afirmou que os bispos assistentes, mudos, que só foram convidados para uma cerimônia de beatificação, serviram apenas para decorar a cena. O bispo de Chartres escreveu um memorial logo abafado pela cúria romana: ‘O neocatolicismo, ou marianismo, tornou-se incompatível com o progresso científico, político e social. Afastando-se das classes cultas, virá a ser a religião do campo, onde, como o paganismo, irá morrer. Para o comum dos homens está estancada a vida intelectual e moral. O reinado do papa Pio IX iniciou a suprema decadência da igreja católica’. O papado absorveu a igreja, que agora lhe pertence. De ora em diante, a religião não tem mais existência própria. Cardeal Manning: ‘Não é a doutrina da igreja que vai determinar a do papa, mas a doutrina deste é que determinará a da igreja.’ Não há mais limites à autoridade papal; os bispos, aceitando-a, não podem mais julgá-la. O que o papa decretar tem de ser aceito, obrigatoriamente, por todos como artigo de fé. O contrário importa em, no mínimo, excomunhão.
Mansi, papista, protestou: ‘Que sínodos examinaram a questão? Que doutores o papa convocou a si? Onde as preces solenes para invocar o Espírito Santo? Se não efetuou todos esses preliminares, então não ensinou em caráter de mestre e doutor de todos os fiéis. Assim, fique ciente o papa, que não o reconhecemos por infalível.’
Phillips dizia: ‘O pontífice fala ex-catedra toda vez que do alto de sua cadeira, fala ou escreve, como órgão de Jesus Cristo, cujo lugar ocupa, em nome dos apóstolos S.Pedro e S.Paulo.’ Os maiores teólogos defensores da infalibilidade não conseguiram explicar nem assegurar que não há erros humanos na fala papal. De Maistre: ‘A partir de agora, a obrigação imposta ao papa de só sentenciar conforme os cânones é passatempo de crianças. Não havendo juízos sem juizes, se o papa errar, quem o julgará? Quem nos assegurará que ele obedeceu aos cânones ou quem o forçará a guardá-los?’ P.Jacinto: ‘Tão aderente vai ficar, daqui em diante, a infalibilidade do papa, que nas suas mãos está solucionar as mais graves questões sem o juízo do episcopado.’
Os papistas: ‘O tribunal de Deus e o do papa são uma mesma coisa’. E, mais: ‘O novo dogma subordina o poder civil à autoridade religiosa: os príncipes são obrigados a apoiar a igreja, até com a espada, quando ela o exija. Os direitos dos reis e dos povos lhe estão subordinados’; ‘O papa é infalível; não pode errar, mesmo que o queira’; e ainda ‘Os limites da soberania papal não lhe vêm de fora, mas da sua própria vontade.’
Ao mesmo tempo, dizia no concílio Vaticano, um dos prelados: ‘Na definição desse novo dogma há evidentíssimos erros e conseqüências tremendamente perigosas, quando fixa em quem, em assuntos de fé e de costumes, deve crer a igreja toda.’ E mais: ‘Todas as questões humanas, sejam quais forem, recaem, por direito divino, na jurisdição do papa. A ninguém é lícito suspeitar da sua competência, sem que se rebele contra Jesus Cristo.’ ‘S.Pedro reina sobre tudo e todos, como o Cristo. Em tudo o que toca aos direitos de Deus e da igreja, são-lhe subordinados os reis, seus súditos, as leis e as pessoas. É seu direito ensinar ao universo, à família e à igreja.’ E esquecem as Escrituras que dizem: ‘Tudo quanto fizerdes, em palavras ou obras, fazei-o em nome de Jesus Cristo’ ou ‘Qualquer coisa que façais, fazei-o para glória de Deus.’
Ecclesia Christi: ‘Os pastores e fiéis, de que dignidade ou rito forem, estão individual e conjuntamente, por dever, subordinados ao pontífice romano, nas coisas dos costumes e da fé, e às igrejas espalhadas pelo orbe inteiro. Esta é a doutrina da verdade, da qual ninguém, sem perdição de sua alma, pode afastar-se. O papa é o único juiz dos fiéis, não cabendo a ninguém reformar suas sentenças, nem existe juiz que o julgue.’ ‘Mesmo em simples questões de procedimento, não admitimos que seja permitido a um católico negar obediência àquele que Jesus investiu na sua suprema autoridade.’
Os efeitos dessa onipotência papal viam-se por toda parte. O reino dos Paises Baixos, que consagrou a liberdade de culto e aboliu as incapacidades políticas fundadas em motivo religioso, conseguiu o rancor de Roma. Todos que votaram a favor dessas leis tiveram negada, mesmo na morte, a absolvição. Exigiu-se, na França, que parlamentares submetessem seus votos ao crivo dos confessores; e que não se lesse jornais que tivessem idéias não ortodoxas. A autoridade papal foi afirmada, entre outros, pelos seguintes cânones:
1.° Nos pontos controversos, cabe à igreja definir o que pertence à religião. Na dúvida, decidirá o poder de ordem mais elevada, a igreja. Sua divina missão seria ilusão se não fosse assistida por Deus. Em tudo quanto ensina, o papa é infalível, assim de fato como de direito.’
2.° No conflito legal entre o estado e o papa, o árbitro é o próprio papa, autor e réu, mas sempre juiz supremo do litígio.
3.° Nas matérias temporais que toquem, ainda que levemente, o fim espiritual do homem, o poder civil tem o dever de submeter-se à igreja romana.
4.° Uma lei civil que contrarie, de que modo for, um cânon papal, cessa de ser lei. Lei oposta à lei da igreja não é lei.
5.° As sentenças, doutrinas, atos, decisões do papa, que é o juiz de todas as igrejas, todos os tribunais, todos os poderes terrestres, não podem ser recusados, modificados nem condenados por ninguém.
6.° O papa é Cristo na Terra. É, em relação ao Cristo, quanto à autoridade, o que o Cristo é para com Deus, seu pai.’
Essa idolatria levou a igreja romana a desatinos. Há 4 anos, o sacerdote de Kinzelmann afirmava, nos seus sermões: ‘Estamos os padres tão acima dos governos, imperadores e reis do mundo, quanto o céu acima da terra. Os reis e príncipes diferenciam-se dos padres quanto o chumbo do ouro mais fino. Muito abaixo dos padres estão os anjos e arcanjos, porque o padre pode, em nome de Deus, perdoar os pecados, e os anjos não podem. Nós somos até superiores à mãe de Deus, porque ela o deu à luz só uma só vez, e nós o fazemos todo dia. Sim, os sacerdotes estão até, de certo modo, acima do próprio Deus, pois que ele deve achar-se, a todo tempo e em toda parte, à nossa disposição, e por ordem nossa baixar do céu para a consagração da missa. Deus criou o mundo; mas nós, padres, criamos o próprio Deus todos os dias. Aí está porque, ao tempo em que ainda era verdadeira a fé, os padres eram tão venerados; reis e imperadores se prostravam aos seus pés e, hoje, ao invés, ousam perseguir e prender os sacerdotes zelosos da fé’. Essas palavras não eram sinal de loucura. Prendem-se a tradições doutrinais, famosas na história do jesuitismo. Em 1718, foi publicado o Ato de fé dos novos católicos que contém, entre outras, as declarações abaixo:
‘3.° Confessamos e cremos que o pontífice romano é o vigário de Jesus Cristo; que pode, à sua vontade, absolver os homens do pecado, preservá-los do inferno, ou enviá-los para lá.
4.°... que todas as novas instituições criadas pelo papa, alheias ou não à Escritura, e tudo quanto ele tem determinado é verdadeiro, divino e santo, devendo o comum dos homens prezá-lo mais que aos mandamentos do Deus vivo.
5.°... que o Santíssimo Padre deve receber honras divinas com as genuflexões mais profundas como se fosse o próprio Cristo.
6.°... que todo e qualquer padre é maior que a mãe de Deus, Maria, que apenas deu à luz Nosso Senhor uma vez, enquanto um padre romano cria e sacrifica Jesus Cristo, não só em intenção, mas em realidade, onde quer que lhe pareça e, depois, ingere-o inteiro.
11.°... que o pontífice romano tem o poder de alterar as Escrituras, acrescentá-las ou diminuí-las, segundo sua conveniência.
19.°... que a Santa Virgem deve ser tida em mais apreço pelos anjos e pelos homens que o próprio Cristo, filho de Deus.
20.°...que a fé romana é universal, imaculada, divina, santificante, antiga e verdadeira... e por conseguinte, a religião romana é absolutamente perfeita, em todas suas definições; amaldiçoamos todos que ensinaram essa heresia repulsiva (a fé evangélica), bem como a nossos antepassados que nos educaram nessa crença herética, aos que nos têm feito duvidar da fé católica; amaldiçoamos a nós mesmos por bebermos dessa heresia da qual não nos convinha beber.
21.°... que a Sagrada Escritura é imperfeita e não passa de letra morta se não for explicada pelo pontífice romano, ou enquanto não for permitida sua leitura ao comum dos homens.
Levado o pontífice a essa perfeição, onipotente, onisciente e divina, a ninguém mais é lícito desobedecê-lo. Estavam os fiéis entregues à tirania insaciável de um homem endeusado. Essa idolatria, segundo historiadores, ‘transformou o cristianismo em puro paganismo’, e as lições do Evangelho se apagaram. E ai daqueles que não se submeterem! Do púlpito, das sacristias, da imprensa, das pastorais, o clero os perseguirá sem piedade, lhes colocará o nome no lodo, transformará em escândalos suas obras mais puras; e os ferirá na memória e até nos descendentes. Entre inúmeros exemplos, vemos o de Montalembert, devotado ao serviço dos papas nas lutas políticas. Contudo, publicou protestos ao dogma, sendo por isso condenado pelo papa Pio IX, que lhe proibiu funeral cristão e, esquecendo-se de quanto já o elogiara pelo trabalho em favor da igreja, lançou contra ele, do púlpito, terrível oratória.
Conforme Rui Barbosa ‘essa usurpação tenebrosa porém há de passar. Negreja, na fronte dos papas, na púrpura de sua realeza, nos blasfemos dogmas e obras de iniqüidade, podridão e morte, o sinal da besta’. ‘Vide, a besta se levanta; e sobre as cabeças de todos blasfema’.
3. Incompatibilidade entre o papado e as constituições modernas.
Com o advento das constituições que admitiam liberdades como a de pensamento e de culto, ‘Tendo o papa condenado esse liberalismo, causou profundo espanto entre os católicos liberais, que supunham que ele errava; é que não compreendiam essa nobre audácia do depositário da verdade, esqueciam-se de que o papa é o mestre da doutrina, e que devem todos a ele sujeitar-se por ser o centro infalível da verdade.’ O grande físico Tyndall foi condenado como blasfemo por afirmar: ‘Confio em que a ciência, atuando nos católicos, eliminará gravíssimos excessos e, entre eles, esses processos da Idade Média, que, com grande escândalo dos homens inteligentes do séc. XIX, têm sido novamente postos em uso.’
Mas, os romanistas afirmavam: ‘Santíssimo Padre, nossa dedicação por vós é ilimitada. O que credes, nós cremos; o que quereis, queremos. Estamos determinados a ser sempre defensores de todas as doutrinas, de todas as declarações e recomendações do infalível sucessor de Pedro.’ E Pio IX, numa encíclica que condenava as heresias dos estados liberais, recomendava aos católicos que ‘fugissem do contágio de tão tremenda peste’. Havia absoluta incompatibilidade entre a doutrina da igreja romana e as constituições modernas, inclusive a do Brasil, por defenderem os direitos civis, a paz, a liberdade e o progresso.
4. Concordatas
O catolicismo subverteu o papel do estado, suas funções, direitos e deveres. ‘Em conseqüência da sublime superioridade da ordem espiritual sobre a temporal, a igreja não pode sujeitar-se ao fim do Estado, nem pode ser sua igual; é o Estado que, pelo contrário, deve se sujeitar aos fins da igreja.’ E ‘A igreja é a lei inalterável da justiça e da verdade, a base e regra dos deveres e direitos. O poder temporal, que detém a força, deve com a força obrigar os rebeldes a submeter-se a essa lei, pois o Estado é, necessariamente, subordinado à igreja.’ Heresia monstruosa, incompatível com a doutrina do Cristo: a igreja é a cabeça infalível, o estado, o braço cego, seu servo. ‘Daí a obrigação rigorosa que tem o Estado, de cooperar com a igreja. Não há relações sociais que não reclamem a intervenção legítima da igreja, único juiz por direito divino. Se o poder civil não é competente para decidir os limites do espiritual, e a este cabe, com certeza divina, definir seus próprios limites, evidentemente este é o poder supremo. Por conseguinte, a igreja tem competência para fixar os limites de todas as demais jurisdições.’
Para o papado, a independência do Estado é um absurdo, como se pode verificar destas palavras do clero: ‘Príncipes e povos, de joelhos perante o Santo Papa! Eis aí a vossa independência!’ e Pio IX: ‘Em relação à causa de Deus, a vontade dos reis deve-se dobrar aos sacerdotes.’ ‘É evidente que incide em traição, quem erguer como princípio a completa independência do Estado. A autonomia absoluta do Estado é puro ateísmo. Nas relações com a sociedade civil, a autoridade da igreja tem o direito de reger a fé e os costumes, na ordem privada e na ordem pública.’
‘É dogma de fé que o Cristo, pelo seu representante, o papa, possui autoridade suprema sobre todos, e, assim, sociedades e indivíduos, são obrigados a submeter-se à Santa Sé e suas leis. Confiamos que a sociedade inteira, horrorizada com o abismo a que sua rebeldia a arrastou, reconheça por salvador e rei a Jesus Cristo; declare inimigos públicos os que prefiram a escuridão e a infâmia ao esplendor e glória que esse divino rei assegura; e encarregue o poder temporal, ao qual obedece, de defender sua realeza com a mesma energia que todo poder emprega para resguardar a si mesmo.’ E o bispo de Olinda: ‘Jesus Cristo, tendo falado em pessoa, mandando e legislando, no Monte Sião, continua a falar, mandar e legislar, no Vaticano, na pessoa visível do seu glorioso representante, o sumo pontífice.’ E o papa Gregório VII, no 7.° concílio romano: ‘Entenda o mundo inteiro que, se podemos obrigar e desobrigar no céu, podemos, na terra também, tirar e conceder impérios, reinos, principados, ducados e outros quaisquer senhorios dos homens, quem quer que sejam’.
O papa Inocêncio IV ensinava que as chaves entregues ao pontífice significam que Cristo constituiu Pedro e seus sucessores num principado múltiplo e eterno, sob cuja autoridade estão os impérios do céu e da terra. E o papa Bonifácio VIII: ‘Decretamos ser necessário à salvação crer que ao pontífice de Roma está sujeita a humanidade inteira.’
O papa Paulo IV: ‘Considerando que o pontífice romano possui sobre todos os reinos a plenitude do poder e que, da terra inteira, é o único juiz, sem que haja quem o julgue, pelo presente decreto, que vigorará para todo o sempre, determinamos que quaisquer pessoas, sejam quem forem, reis, príncipes ou imperadores, condenadas de heresia, além das penas de excomunhão, incorrerão, de imediato e sem processo, na privação de todo o poder, de toda autoridade, de todo e qualquer principado, reino, ducado ou império, e ficarão para sempre incapazes de os recuperar. Serão entregues ao braço secular, que os punirá com as penas de direito... Quanto aos que ousem defender, favorecer ou privar com esses condenados, serão declarados infames e destituídos de todos os direitos... Nem ouse ninguém se opor ao presente decreto sob pena de incorrer na indignação do Deus onipotente e dos apóstolos S.Pedro e S.Paulo.’
Tomás de Aquino afirmava ‘ser direito inegável de a igreja impedir que infiéis tenham autoridade sobre fiéis, pois os infiéis perdem os títulos de soberania que passarão para os fiéis. Se um rei afrouxar a fé empenhada a Deus, é dever conferido ao povo, quando ordenar o pastor supremo do gênero humano, cessar todas as obrigações de vassalagem’. Até mesmo um papa, Belarmino, por discordar e não usar desse poder, incorreu na pena de heresia.
Armados desse poder arbitrário, muitos reis foram depostos por papas, fatos para sempre registrados na história. Inglaterra, Portugal, Alemanha, Itália, França, e outras nações foram suas vítimas. Se caíssem no desagrado do clero, até aqueles que combateram os inimigos da fé eram punidos com a perda da coroa. A. Herculano, fiel historiador português, escreveu: ‘Dir-se-ia que a nenhum rei de Portugal era lícito repousar no túmulo, sem antes pelejar renhida batalha com a ordem sacerdotal.’
Vezes sem conta, o vigário de Cristo comandou guerras civis contra reinados, e sua afeição a príncipes e dinastias dependia sempre dos favores que destes recebia. A política dos papas retalhou territórios, anexou e escravizou estados, invadiu e alterou governos, depôs reis, ofereceu coroas como presente a príncipes dedicados à igreja, ateou lutas civis, fatos esses históricos impossíveis de refutar.
Cânones do 4°.Concílio de Latrão: ‘Notificar-se-ão os depositários do poder político a que jurem expulsar de suas terras os hereges notados pela igreja. Se, depois da advertência, nada fizer o senhor temporal, será, pelos prelados da província, excomungado, e, se ainda não se submeter, será denunciado ao sumo pontífice a fim de que este lhe declare os vassalos desobrigados de fidelidade e que se ofereça suas terras aos católicos, que delas se apossarão. Excomungamos, também, os encobridores dos hereges, que ficarão infames e excluídos de todos os direitos públicos, como o de receber sucessões e heranças. Se juízes, suas sentenças serão nulas; se réus, não será lícito a ninguém testemunhar em sua defesa; se advogados, não serão admitidos nos pleitos, etc’.
Contudo, Pio IX afirmava: ‘Os pontífices romanos nunca ultrapassaram os limites de seu legítimo poder, nem usurparam direitos de príncipes. O fim da igreja, nas lutas contra essas potências, sempre foi um só: evitar que elas se perdessem olvidando os interesses que lhes cumpria zelar. O papa é juiz absoluto das leis civis. Nele juntam-se, em plenitude, a autoridade espiritual e a temporal, porque é vigário de Cristo, que não era somente sacerdote, mas também rei dos reis e senhor de todos os senhores. Argüir semelhante culpa equivale a acusar todo o clero, a igreja inteira e, por conseqüência, o próprio Espírito Santo que a dirige’.
‘O papa é o ponto culminante dos poderes espiritual e temporal. O príncipe temporal, mesmo sendo príncipe, não deixa de ser súdito do papa. Pode o papa emendar, anular as leis civis, as sentenças dos tribunais temporais, como tem feito diversas vezes com leis votadas pelos modernos parlamentos. Cabe-lhe preceituar e proibir aos príncipes temporais certas ações, o abuso do poder executivo, tolher o emprego das armas, ou decretá-lo, se a defesa da religião o exige. Nos conflitos entre igreja e estado, pertence ao papa a decisão suprema. Se, porém, algum pontífice proferir um julgamento menos justo, essa lesão de direito não autorizará jamais resistência à igreja. Ainda que seja, pelo sumo pontífice, imposto um jugo quase insuportável, cumpre não desobedecer, mas sofrê-lo com paciência.’
Um notável estadista inglês: ‘Por mais terrível que seja a escravidão do indivíduo, nem isso satisfaz a igreja romana: também o Estado tem de ser seu escravo.’
Por haver, a revolução francesa, libertado as instituições da França da ação da igreja, o papa a denominou de ‘obra prima da tática infernal’. Seus princípios, que também constam da constituição brasileira e de outras, são para o papa, ‘absurdo, asneira, extravagância, estupidez, falsidade, ímpios e infantilmente presunçosos. É imperioso que a igreja faça guerra a essas ímpias instituições políticas que investem contra Deus e não cessam de fazer perversa hostilidade à igreja de Cristo.’
E o bispo de Olinda, evocando a Idade Média: ‘Os reis daquele tempo, por uma política infelizmente não usada em nossos dias, se julgavam mais independentes quando submissos à igreja romana do que quando senhores absolutos, e por isso ofereciam suas coroas aos sumos pontífices, para depois recebê-las mais santificadas e respeitadas aos olhos do mundo.’
Em 1875, um jornal católico dizia: ‘Cumpre reconciliar a França com Deus, isto é, reintegrar Deus nos seus direitos e a França nos seus deveres. Para isso importa: 1. Retirar para sempre da constituição o que nesciamente denominam princípios de 1789 (advindos da revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade), falsificação revolucionária dos princípios sociais do cristianismo, porque encerram o aniquilamento de toda a hierarquia e a subversão total da sociedade; 2. Trocá-los incontinente pelos princípios católicos, conservadores de toda a hierarquia social e única origem da liberdade, igualdade e fraternidade genuínas; 3. Restabelecer integralmente as sólidas bases da monarquia francesa, a fim de termos a verdadeira representação de todas as forças vivas do país e, assim, suprimir o sufrágio universal que jamais será senão mentira em proveito da cabala; 4. Eliminar do código o ateísmo, acabando com essa igualdade das diversas religiões; 5. Abolir o casamento civil; 7. Deixar, à igreja romana, liberdade plena de ação; 13. Reprimir, sem piedade, a liberdade da imprensa.’
As constituições de numerosas nações são excomungadas, pois criam liberdade de culto, pensamento, imprensa, e casamento civil. O papado as denomina ‘abomináveis agressões contra os direitos da igreja’, e as decreta ‘de passado e de futuro nulas’. Pio IX, lamenta: ‘Esses católicos liberais não me entram no coração!’ E o jornal do Vaticano: ‘O mundo só terá paz quando os supostos direitos do homem forem destruídos e os direitos de Deus e da igreja se tornarem a lei fundamental dos Estados’.
Jornal inglês: ‘É impossível conciliar o sistema de teologia cristã com o que chamamos civilização e progresso. Ninguém pode sequer imaginar uma tentativa nesse sentido. É como casar a luz com as trevas.’ E a igreja ameaça os recalcitrantes: ‘não se pode servir a dois senhores; ou se serve a Deus, ou ao Diabo.’
‘A igreja não fez as constituições e os costumes modernos: tudo isso foi feito a despeito dela e contra ela. O Santo Padre reprova as doutrinas relativas à liberdade política e civil, que por si tendem a fomentar, por toda parte, a revolta dos súditos contra seus soberanos. Essa rebeldia está em declarada oposição aos princípios do Evangelho e da santa igreja’. Essa afirmação, de que a igreja pregasse obediência aos príncipes, é total hipocrisia pois o que se vê, na história, é que a tiara sempre abençoou os príncipes mais sórdidos e cruéis opressores das nações modernas, toda vez que se prestassem a instrumento das pretensões da igreja. Quando as leis, no séc. XVIII, trouxeram a liberdade de culto, a igualdade dos cidadãos, o casamento civil, a justiça civil para julgar as questões matrimoniais, a oposição da igreja foi tremenda. Do púlpito, a igreja condenou essas leis; provocou insurreição do povo contra os governos; ameaçou os governantes; incitou o povo ao saque, para colocar a igreja no seu anterior domínio sobre o Estado. E o papa era chamado de ‘tutor fiel e anjo vingador da liberdade política’. ‘Nós’, dizia um bispo, ‘não podemos ceder. Só a guerra pode desfazer o que está feito, pois qualquer negociação política é inexeqüível. Não respeitamos as falsas leis temporais, senão porque a força as ampara. As verdadeiras leis vêm de Deus.’
Porém, com as constituições modernas, os governos católicos deixaram de ser submissos como antes. A declaração de 1791 constituiu, para Roma, o mais perigoso instrumento do princípio satânico entre os homens: ‘1791, data fatal. O que hoje se intitula regime parlamentar é a pedra angular desse detestável edifício que nos cabe destruir.’ O concílio do Vaticano afirmou que ‘o princípio que reconhece o direito de soberania das nações não se origina de Deus’ e que, ‘sem fazer conta dos mais certos princípios da sã razão, atrevem-se a alegar que a vontade do povo constitui a lei suprema. O direito da soberania do povo é inimigo do direito cristão.’
O sínodo tridentino decretou: ‘A dízima é devida a Deus; os que não a querem dar invadem bens alheios e serão excomungados sem esperança de absolvição enquanto não for quitado o débito’. Explica-se que, mesmo todos reconhecendo a igreja profundamente daninha, esta continuasse seu domínio, porque, naqueles tempos, era grande a ignorância, o atraso da ciência, da liberdade dos povos, do direito civil. Quando, na Itália, uma lei extinguiu a obrigação do dízimo, a igreja declarou: ‘Vossa lei é de pleno direito nula, porque infringe a constituição que Deus deu à sua igreja. Ou ignorais que foi o Senhor quem instituiu os dízimos?’ Na América, a extinção foi anulada por Pio IX como ‘oposta à divina instituição da igreja, aos seus divinos direitos e à sua autoridade suprema’.
O direito de asilo, ainda vigente no séc. XIX, implicava na impunidade oferecida pela igreja ao crime. Centenas de clérigos assassinos enchiam conventos e templos, fugidos de sentenças civis; dizia-se que ‘homens de má vida erguem tendas no pátio dos templos, lugar seguros para eles, onde guardam todo gênero de armas e furtos; acompanham-se de mulheres perdidas e saem dali para praticar seus crimes’. A polícia via, impotente, criminosos procurados serem acolhidos nas igrejas e propriedades clericais, e ali rirem dos tribunais civis. ‘Se o papa dissesse uma palavra, o abuso do asilo, insulto à autoridade civil, estaria reprimido. Mas, não diz, talvez para mostrar que os privilégios da igreja são superiores aos da humanidade. A casa de Deus dando agasalho ao crime impune e triunfante é, com certeza, enorme blasfêmia contra a divindade’.
Outra instituição absurda foi o foro especial ao clero: ‘O ministro de Deus é inviolável. O respeito a Deus não permite que ele seja confundido com os demais. A autoridade do papa está acima de todas as autoridades. Os eclesiásticos transgressores das leis civis não podem ser levados aos tribunais civis, mas ao da igreja, e o juiz temporal só pode puni-los se a igreja assim decidir.’ A igreja declara que as leis que extinguem o foro especial não são obrigatórias ao clero; proíbe obedecer à intimação da justiça civil e comparecer frente a juízes seculares, e determina que não se entregue à justiça temporal os criminosos refugiados nas igrejas. ‘Seja qual for sua moral e ainda que pareça, pelos hábitos profanos, demasiado com o vulgo, o sacerdote é pessoa sagrada e assim devemos considerá-lo.’
No séc. XVIII, Pio VI excomungava os que negavam à igreja católica o monopólio do Estado e os governos que permitiam a imigrantes a prática de seus cultos de origem. Enquanto Tiago e Paulo afirmam que a Boa Nova é a lei perfeita da liberdade e que o evangelho fez a todos os irmãos, o direito canônico reza que a mais nobre das liberdades, que é a de pensamento, é incompatível com a fé cristã. ‘A lei de Deus e da igreja, constituição suprema de todos os Estados e única infalível, condena essa liberdade abusiva, e proclama que todas as leis humanas juntas não conseguem enfraquecer a força da lei do legislador supremo, o papa. ’
‘Tem a igreja católica o direito de impor aos cristãos, desde penas leves, como jejuns, até severos castigos corporais, quando infrinjam suas leis, prisão por tempo ou por toda a vida, açoites paternais, principalmente aos cismáticos e heréticos. A igreja usou sempre desse direito, toda vez que o pode, nos limites de uma discreta moderação (veja-se a ‘moderação’ na inquisição, no extermínio dos protestantes, nos processos de feitiçaria, na lei da mordaça etc.) e, se não tem podido agora usá-lo, é efeito destes tristes tempos. Recentemente, o monge que se tornou protestante foi preso e enclausurado, por caridade, para expiação de sua falta, com outro monge acusado de heresia (privados de livros e quase sem nutrição). É a igreja um reino espiritual, considerando-se seu fim. Mas, vista segundo as pessoas que a compõem é, também, reino temporal e os atos pelos quais ela as governa são exteriores e visíveis. Num reino assim, é mister um poder supremo, habilitado a dirigir os membros de modo tangível, não sendo possível prescindir de penas exteriores, já que os homens podem desprezar punições apenas espirituais, como a excomunhão’ (1871).
Liberdades de pensamento, imprensa, culto, ensino, são, para Roma ‘perniciosíssimas e jamais assaz amaldiçoadas’. A constituição brasileira é, pois, uma série de atentados contra a igreja cristã. Entre outras coisas, só à igreja pertence o direito de ensinar; escola leiga é proibida. Ao cristão não é permitido trabalhar para não-cristãos, e, se filhos de pais não-cristãos são batizados, os pais perdem a autoridade sobre eles.
‘Os legisladores pecam fazendo leis contrárias às da igreja. Arcebispos e bispos e todos os demais exercerão pleno direito de estigmatizar os livros contrários à religião e afastar deles os fiéis. O governo temporal, por sua vez, deverá prover, convenientemente, a não divulgação de tais livros.’
Os sacramentos eram obrigatórios; a omissão relativa à fé, convertida em delito civil. A polícia exercia contínua perseguição aos acusados de heresia, cujo número aumentava cada vez mais. ‘Em Roma, impera Deus. Se alguém se abstém da comunhão pascal implica em crime contra a igreja.’ O sino da Ave Maria marcava a hora de recolher-se ao lar, convertido em prisão; o domicílio particular, violado noite e dia, à vontade da polícia; passaportes de suspeitos, recolhidos por anos e anos; as portas das cidades fechadas. Os processos, reduzidos a farsas, a defesa entregue a advogados desconhecidos do réu; os nomes dos acusadores ocultos aos acusados; a pena de morte liberada em profusão (pelo representante de Jesus, que disse: ‘Pedro, embainha tua espada!’). Em sete anos, Ancona teve 60 execuções capitais, e Bolonha 180, por delitos contra a Sé. Os números, nas nações cristãs, eram tão grandes que a igreja os ocultava. Aos criminosos clérigos e fidalgos servis, a mais absurda clemência, a par da severidade desumana com os mais insignificantes delitos contra clérigos; imprensa independente sufocada; no tribunal da inquisição, intolerância total e tortura; o culto oficial anulando a cidadania aos judeus, proibindo-lhes as carreiras administrativas, o direito de propriedade, o trabalho na agricultura; as escolas regidas pela pedagogia jesuítica; a loteria elevada à santa instituição do estado, presidida pelo sumo pontífice mesmo, e aberta até nos dias santos; as verbas públicas consumidas em construções de mais e mais igrejas; colheitas e tributos quase todos para o luxo das igrejas e do Vaticano.
‘Protestamos contra a lei que aboliu o tribunal da santa inquisição, negando suas sentenças e ameaçando com graves penas aqueles que as pronunciam. A uma sociedade perfeita como a igreja, é direito inato empregar os meios que lhe pareçam apropriados a seu fim que é a salvação das almas. Um desses meios é o tribunal da santa inquisição que, por sua natureza, apenas tem intuito de velar pela segurança e integridade da doutrina ensinada por Deus, preservar os fiéis do erro, evitar corrupções e escândalos que possam prejudicar a propagação da fé católica. Sentimos um misto de horror e dó ao ver tais leis tentarem suprimir, da legislação de povos ditos civilizados, a igreja perfeita. Se interrogassem as miríades de gerações que, há dezenove séculos, têm abraçado o catolicismo, elas responderiam, indignadas, que os caridosos processos da santa inquisição, mero tribunal de penitência, tendem, sinceramente, à maior felicidade dos pobres desgarrados, e limitam-se a emendá-los por advertências e penas medicinais. Será isso tão contrário aos princípios da civilização, que se necessite eliminar da legislação dos povos tão excelente tribunal?’
O cristianismo transformou-se em veneno contra a sociedade. Do Deus, que é conhecido pelo espírito de amor, só restam vestígios profanados, destinados à dominação política. O marianismo, exploração da credulidade feminina; a adoração de imagens; a beatice das relíquias; as romarias, peregrinações, novenas, jubileus, procissões, herdadas dos costumes pagãos e criminosamente santificadas; a impostura das aparições sobrenaturais; a fraude dos milagres multiplicados com freqüência, em desafio à ciência e aproveitando-se das crendices e superstições do povo, como retorno à idade média; o esquecimento total da Bíblia, trocada por catecismos e livros de devoção idolátrica; o ritual pontifício com pompas orientais em fragrante desrespeito à história sagrada; a substituição da primitiva literatura cristã por um dilúvio de falsificações produzidas pela igreja romana. Todas essas corrupções da igreja mataram as lições do Evangelho, disfarçando, com seus títulos cristãos, uma poderosa conspiração contra o direito, a razão e a consciência do ser humano.
Bênçãos de imagens, santinhos, terços, água, alianças, navios, canhões, objetos os mais variados, doentes, escolas, fábricas, repartições públicas, inaugurações; um monte de histórias de endemoninhados e exorcismos; indulgências vendidas à mão cheia; abuso de cerimônias exteriores, de sacramentos, música, fogos ruidosos, luzes, aparato militar, luxo, tudo combinado para tornar a devoção imaterial do homem para Deus, numa festa ruidosa, para atrair as pessoas, incompatível com a união silenciosa e íntima da alma com o Criador, na experiência mística. Diante desses mitos blasfemos, os fiéis se ajoelham e oram, acreditando, inocentes. Veja esta declaração da igreja romana: ‘Creio na subordinação do poder temporal ao poder espiritual e ao papa infalível; creio na liturgia romana, nas imunidades do clero, na dízima obrigatória, nos malefícios (bruxaria), e nesse piedoso mover de olhos das madonas cuja festa a igreja celebra. Creio em tudo quanto tem feito o papado, como útil, verdadeiro e santo’. ‘Em menos de três séculos, os papas produziram essa Roma tão rica onde a religião é uma festa perene.’
E a igreja enche-se com doações a troco de indulgências, venda de imagens, custódias para água benta (na forma do Sagrado Coração de Jesus ou de Maria, em cristal ou metais preciosos, a preços exorbitantes, mas cuja posse traria benesses dos céus). A exploração da credulidade é intensa: ‘A ponte de Santo Ângelo, onde estão as estátuas de S.Pedro e S.Paulo, é o limiar do Vaticano. Ali, uma breve oração lhe dará indulgências’.
Tudo que no cristianismo era puro e sublime e tendia a estabelecer uma união interior do homem com Deus, que é a razão do culto cristão, apagou-se. O que sobrou é algo sem alma e sem verdade, pasto para a credulidade supersticiosa dos ignorantes, e que se aproveita dessa ignorância para obter vantagens temporais.
Na Inglaterra, a igreja ignora os benefícios de um governo protestante, mas esclarecido, liberal e generoso, e provoca o ódio entre os de crenças diferentes; na Irlanda, provoca distúrbios, convencendo o parlamento de que o regime constitucional naquela parte católica do país não passa de utopia; na Bélgica, destrona duas dinastias, pregando desobediência à constituição; na Espanha, põe-se contra a constituinte e alimenta a guerra civil; na Alemanha, violando compromissos assumidos, promove, nos estados católicos, a tendência separatista; na Baviera, brada no parlamento: ‘Debalde formastes regimentos e regimentos; se forem católicos, passar-se-ão para nós’; em Baden e Wrtenberg, prega o conflito religioso; na Itália, excomunga o rei, que há pouco fizera a mais generosa lei a favor da igreja, dando ao papa honras, poderes e imunidades reais, privilégios de príncipes aos cardeais, ao papado, ricos palácios, declarados impenetráveis aos oficiais judiciários; franqueia-lhe correio e telégrafo, permite-lhe polícia especial, e assegura-lhe renda liberalíssima. Mas, tudo em vão. O pontífice agride o rei publicamente, excomunga professores da universidade leiga, seus estudantes e os militares que não desertam do exército do Estado.
No Brasil, acirrado antagonismo entre governo e os bispos de Olinda e Belém, que se rebelam contra a constituição do império; são presos mas o imperador, fraquejando ante ameaças da igreja, os liberta, colocando a constituição aos pés de Roma. Na Venezuela, Chile, México, o legislativo é atacado pela cúria, por suas tentativas de livrar o país da usurpação da igreja. E assim por diante. Mas, a igreja perde terreno ante os Estados liberais, tanto que um clérigo de alto conceito no papado declara: ‘Só há uma solução: uma guerra continental mais violenta que todas as guerras, para que se recoloque o vigário de Cristo na sua legítima posição. Rebelar-se é dever obrigatório de todos os católicos’.
No Brasil, são excomungados os que advogam o casamento civil; os que desejam autorizar cidadãos leigos a abrirem colégios e que admitem, como iguais, todos os cultos. ‘Pela autoridade que nos cabe, declaramos nulos e sem efeito, no presente e no futuro, todos esses decretos. Que os autores dessas leis não se esqueçam das penas espirituais às quais, pela constituição da santa igreja, estão incorrendo. Contrariam os princípios fundamentais da religião e os mais santos direitos da igreja, fato pelo qual esta tem o direito de se insurgir. São eles: a lei do casamento; a das escolas; a da igualdade de cultos, leis anti-cristãs que a igreja repelirá eternamente. O matrimônio não pode prescindir do santo nome de Deus. O ensino pertence aos sacerdotes por direito divino. A igreja não é simplesmente um culto organizado; é também um verdadeiro poder.’
‘Um acordo entre a igreja e o governo temporal é impossível, porque é inconcebível um acordo entre uma potência soberana e seus subalternos. O poder do estado é subalterno e dependente do poder eclesiástico.’
Afinal, o regime liberal trouxe liberdade às religiões, e igualdade de todos perante a lei. Passou essa época tenebrosa, embora de vez em quando seu espírito pareça querer voltar. Já não se vêem, nas praças, fogueiras e carrascos encapuzados; os tribunais da igreja não mais agem à vontade; não estão mais na lei penal a quebra do jejum, a não observância do domingo, a leitura de livros heterodoxos, a execução e confisco de bens dos apóstatas; judeus e islâmicos não são mais segregados para junto dos leprosos. Mas, ainda os atos mais graves da vida social, o nascimento, casamento, óbito, estão sob a autoridade imediata do padre; ainda se paga à igreja dízimo e laudêmio, e se lhe perdoam tributos que todos pagam. Antes, o herege era mensageiro do inferno, e executavam-no. Entre muitos outros, Giordano Bruno, João Huss, Joana d’Arc, e os protestantes que foram varridos da Espanha, França, Itália, Áustria.
Hoje se compreende que ‘a verdadeira virtude é independente de qualquer religião, e incompatível com a religião imposta’. Mas resta, ainda, a ignorância, o fanatismo, a superstição, a crença sem base em obediência a dogmas também sem base, o medo de incorrer nas penas impostas pela igreja, as romarias, procissões, as festas ditas religiosas, a pompa exterior, a idolatria dos papas, adoração de imagens, o ritual, as orações pronunciadas mecanicamente, coisas que nenhuma relação têm com a primitiva igreja, usos herdados do paganismo e, depois, santificados pelos papas.
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RESUMO DO 2.° VOLUME
Este volume é ato de legítima defesa, ante a ameaça de terrível futuro caso a igreja não passe por rigorosa reforma que lhe retire prerrogativas absurdas e lhe dê orientação para, retornando ao cristianismo primitivo, ensinar aos fiéis aquilo que Jesus e os apóstolos ensinaram. A igreja primitiva foi instituída numa ordem democrática e correta. Mas, quando o bispo da igreja de Roma se fez imperador, sua ruína começou.
Uma das declarações do pontífice romano termina assim: ‘Estão em erro condenável os que têm por exeqüível e desejável a reconciliação do papa com a civilização moderna. Cessaram de existir os Estados cristãos, pois volveram ao paganismo. Mas, para Deus nada é impossível, pois se ele anima até esqueletos descarnados, o que não fará aos poderes temporais e aos parlamentos. As universidades são ossadas nuas e fétidas com seu ensino corruptor. Mas essas ossadas podem voltar à vida quando ouvirem a palavra de Deus, anunciada pelo infalível e sublime papa. Em nome da nossa autoridade apostólica, condenamos todas essas leis instituídas contra a igreja. Declaramos absolutamente nulos elas e seus efeitos’.
A frase de Paulo ‘cumpre obedecer primeiro a Deus, que aos homens’, a igreja interpretou: ‘cumpre obedecer primeiro ao papa, o representante de Deus na terra, que a qualquer autoridade ou lei de estado’.
O novo dogma de Maria. Após o dogma da Imaculada Conceição, que Pio IX afirmou ser revelação divina, e desprezando a tradição da antiga igreja, pois nem o Novo Testamento, nem os escritos dos antigos doutores da igreja têm uma só palavra sobre a morte de Maria e o destino de seu corpo, recentemente, muitos séculos (nove) após a crucificação de Jesus, quer a igreja editar o dogma da Assunção de Maria, sem qualquer base.
Infalibilidade. Em defesa do dogma da infalibilidade, asseguravam os jesuítas que ‘um papa, mesmo totalmente ignorante, pode muito bem ser infalível, pois que Deus, como se lê na santa escritura, fez até um jumento falar’.
Erros e contradições dos papas infalíveis. Para provar que os papas são infalíveis é preciso falsificar a história de ponta a ponta. Inocêncio I e Gelásio I, declararam ser, a comunhão, tão indispensável que, crianças que morrem sem ela, irão direto para o inferno, doutrina essa que o concílio de Trento cobriu de condenações e revogou. É doutrina que a ordenação de padres é irrevogável para sempre, pouco importando que o consagrante seja digno ou não, sendo uma reordenação verdadeira afronta ao sacramento. Contudo, a partir do séc. VIII, cassaram-se inúmeras ordenações feitas por certos papas, e se reordenaram padres e bispos cassados. O papa Constantino II, no séc. VIII, à mão armada, se apossou do trono papal, ocupando-o por três meses; foi deposto por um sínodo que anulou todas suas ordenações. O mais grave, porém, ocorreu em fins do séc. IX, ao morrer o papa Formoso. Foram anuladas tantas ordenações suas que a igreja romana se viu em completa desordem, na incerteza sobre se havia ainda sacramentos válidos. ‘Tantas ordenações e reordenações se tem feito, que há vinte anos está interrompida, na Itália, a religião cristã.’
Enquanto o papa Pelágio afirmou ser absolutamente necessária, no batismo, a invocação da Trindade, Nicolau I ensinou que só bastava a invocação de Cristo, expondo os católicos ao risco de um sacramento inválido. Nicolau I declarou nulas as confirmações (crismas) por padres, segundo a tradição da antiga igreja grega, mandando que todos fossem novamente confirmados por um bispo. Anulou, portanto, todas as confirmações da igreja grega, semeando o germe de uma revolta que, mais tarde, se concretizou, com o cisma.
A igreja afirmava indissolúveis casamentos entre livres e escravos. O papa Estevão III autorizou que se anulasse matrimônio com escrava e receber outra mulher como esposa. O papa Celestino III tentou afrouxar o vínculo do casamento se um dos cônjuges caísse em heresia. O papa Inocêncio III rejeitou essa decisão, motivo pelo qual Celestino foi declarado herege. Esse decreto foi, mais tarde, retirado dos livros de decretos papais, e destruído, pois era prova de que papas também erram, mas em vão, porque o fato já era conhecido dos teólogos.
Nicolau II, num sínodo, repetiu um erro, recusado por toda a igreja, de que na comunhão pomos mão no corpo de Cristo e o trituramos com os dentes. Depois, tentou lançar a culpa do erro num bispo e num cardeal.
Os franciscanos sofreram severas perseguições dos papas. A ordem pregava renúncia à fortuna individual e à propriedade e Nicolau III decretou ser essa renúncia santa e meritória, pois o próprio Cristo a havia ensinado com seu exemplo, e que, tudo que possuíssem os franciscanos, reverteria para o Vaticano. Clemente V confirmou o direito de propriedade sobre os bens dos franciscanos. O mesmo fez João XXII, mas este entrou em conflito com a ordem, por considerar ridículo seu exagero de pobreza, e pelas violentas acusações que ela fazia contra a corrupção da igreja romana.
João XXII suprimiu a excomunhão para certas heresias; condenou decisões de antecessores e declarou herética a doutrina de antecessor que declarara terem sido, Cristo e os apóstolos, modelos da pobreza que os franciscanos imitavam. As acusações feitas pelos franciscanos resultaram na entrega de toda ordem à Inquisição, por João XXII. Em 35 anos, 114 franciscanos morreram na fogueira.
Eugênio IV decreta o uso de certas regras, sem as quais os sacramentos não têm valor, regras que nunca foram usadas numa das metades da igreja e, na outra metade, só a partir do séc. X. Logo, ou não vieram de Cristo e dos apóstolos, e não seriam imprescindíveis, ou teriam sido inválidos todos os sacramentos celebrados sem tais regras. Em relação à penitência, que a igreja grega nunca conheceu e que a ocidental ignorou durante mil e cem anos, decretou ser essencial, para sua eficácia, que fosse celebrada por padres ou bispos. Como, por mil anos, a igreja latina, como a grega, não teve padres nem bispos, em conseqüência, só teriam valor batismos e casamentos, pois os demais sacramentos não teriam qualquer valia. A infalibilidade papal onde estaria se tantos papas não tiveram conhecimento dessas regras? Um papa infalível acusa outro papa infalível de heresia; o que um louva como puro e santo, outro condena como impuro e herético.
Declarara, o sínodo de Trento, que a única versão da Bíblia admitida pela igreja é a de S.Jerônimo; mesmo assim, o papa Sixto V escreveu, de próprio punho, nova versão, decretando que só essa era verdadeira, e que seriam excomungados os que lhe alterassem uma só palavra. Contudo, a nova versão tinha cerca de duas mil incorreções, em pontos importantes. O papa Belarmino aconselhou abafar o perigo a que Sixto levara a igreja: recolher e destruir todos os exemplares; depois de corrigida, reimprimi-la afirmando-se, no prefácio, serem os erros culpa dos impressores. Belarmino assinou o prefácio com essa mentira e, em sua biografia, gabou-se de ter ‘pago o mal com o bem’, pois Sixto colocara sua principal obra no Índice. A biografia extravasou dos arquivos. Um cardeal sugeriu imediata queima da biografia e se fizesse profundo segredo porque, nela, Belarmino chamava três papas de mentirosos. ‘Como explicar, aos inimigos, os erros do papa? Como fazer crer que Cristo instituiu cada papa como depositário da inspiração divina?’
Por treze séculos, nenhum escrito ou o que quer que fosse, da igreja, teve uma palavra acerca de que só as sentenças do papa são válidas em assunto de fé e doutrina. Nunca o papa foi necessário para o governo da igreja. ‘Papa’ era o tratamento dado ao bispo chefe de uma das igrejas cristãs, e muitas vezes, houve concílios sem a participação deles. A igreja romana nunca impôs sua vontade, e não há vestígios de que alguma vez o tentasse. Freqüentemente, as igrejas da África, Antioquia ou Ásia lideravam os debates e mesmo repreenderam a de Roma por intervenções descabidas. ‘Anátema (maldição) a ti, Libério’ clamaram os bispos em ocasião em que o papa romano foi condenado por subscrever confissão de fé estranha, o que prova que um papa é tão suscetível de cair em heresia quanto qualquer outra pessoa. No sínodo em que se formulou o dogma do Espírito Santo, nem estava representada a igreja romana. As questões importantes eram resolvidas nos sínodos, e muitos papas, quando consultados, se recusavam a dar decisões suas, alegando que só o sínodo poderia decidir.
Outros papas, confirmando o absurdo da infalibilidade, contestaram doutrinas de antecessores. Assim ocorreu com a do batismo, da Encarnação de Jesus, da constituição da Trindade, da Assunção de Maria etc. Outras vezes, o mesmo que aprovara um assunto, posteriormente o condenava contradizendo-se. Conseqüência dessas incoerências foi um cisma no qual igrejas inteiras se afastaram dos papas. Noutras ocasiões, declarava-se herege um papa, que um outro, após, reabilitava. Concílios decretavam errada uma sentença do papa e lhe davam estigma de herege, mostrando que a igreja era totalmente alheia à idéia de serem os papas especialmente inspirados e infalíveis, e nem senhores do clero e dos fiéis.
A história mostra que, na igreja antiga, os chefes não possuíam nenhum dos poderes, hoje exercidos pelos papas com autoridade de imperadores. Não tinham poder para excluir da comunhão cristã qualquer um. Durante séculos ignorou-se que Pedro houvesse legado certos direitos aos sucessores. Só no concílio de Éfeso, no séc. V, os legados romanos tiveram coragem de declarar que ‘Pedro, a quem Cristo dera o poder de atar e desatar, continua a viver e a julgar em seus sucessores’. O papa Leão I pretendeu esse direito, mas foi refutado pelos padres no sínodo de Calcedônia. Quando o sistema papal principiou a se manifestar, foi rejeitado com horror pelo maior dos papas, Gregório Magno. Nesse sistema, o papa teria plena autoridade e todos os bispos seriam seus subordinados. Muitas igrejas cristãs nunca se submeteram à de Roma e jamais tiveram relações com ela. Foi Tomás de Aquino o primeiro teólogo a admitir o dogma da onipotência do papa, em 1274. Antes disso, o papa era igual a qualquer bispo ou patriarca. Basílio Magno escreveu: ‘pouca importância dou aos escritos dos papas, esses insolentes e presunçosos ocidentais, que só sabem cometer heresias’.
Entre as muitas obras de S. Agostinho, que escreveu mais que todos os outros Padres juntos acerca da doutrina da igreja, não há uma só palavra a respeito do poder papal, ou de que Roma fosse o centro da igreja cristã. Ao contrário, Agostinho louvou o papa Pelágio I ‘por ter aprendido a lição divina que põe nas sés apostólicas o fundamento da igreja’. Há irrefutáveis documentos sobre a hierarquia da antiga igreja, nos quais nem é mencionado o título de papa; só existiam bispos e sacerdotes. A imensa literatura deixada pelos Padres dos primeiros séculos, sobre as seitas cristãs, mostra que nem uma única vez foi consultado um papa para sentenciar em matéria da igreja; nem mesmo o episcopado tinha autoridade para esses assuntos. Nenhum dos teólogos e doutores da primitiva igreja interpretou a pedra como referente a Pedro, nem que, pela morte deste, a chefia da igreja se tornaria hereditária, e somente dos bispos de Roma. Entendiam que Pedro era tanto fundamento da igreja quanto os demais apóstolos que, juntos, formavam as doze pedras fundamentais da igreja, como cita o Apocalipse, XXI, 14.
Quanto à infalibilidade, valeu-se o papado do que disse Jesus a Pedro: ‘Orei para que não te faleça a fé; quando converso, força a teus irmãos’; aí querem encontrar promessas da futura infalibilidade de toda a sucessão de papas.Até o séc. VIII, nenhum dos dezoito doutores da igreja, sem exceção, teve tal interpretação, vendo aí apenas uma exortação a Pedro para que não perdesse a fé, e para que, convertendo-se após haver negado o Cristo, convertesse seus irmãos. Esqueceu-se o juramento imposto por Pio IX, de só interpretar as Escrituras conforme o unânime consenso dos doutores da igreja dos seis primeiros séculos.
Só nove séculos depois de Cristo, teve inicio alteração total dos poderes do papa. Cerca de cem decretos dos mais antigos Padres, foram falsificados e apresentados como autênticos. Mesmo revelada a fraude, a denúncia não foi considerada. Eles dão, ao papa, imunidade absoluta; sobre ele não há poder temporal; é o juiz supremo de todas as causas; bispos e clérigos do mundo inteiro devem-lhe total obediência. Por isso, a igreja grega levantou terríveis censuras contra a de Roma, o que resultou, mais tarde, na separação das igrejas. Contudo, Roma não pode valer-se desses poderes por quase duzentos anos, pois foi vítima de grupos rivais da nobreza, e viu-se em desordem e sem poder. Chegou a cair nas mãos de mulheres ambiciosas e devassas. Com o papa Benedito IX, a coroa dos papas se desonrou mais ainda. O trono de S.Pedro foi vendido e comprado a quem dava mais, havendo, uma vez, três papas disputando a sua posse. (‘A História Secreta dos Conclaves’ mostra a indecência política dominando as eleições papais, cardeais, envergonhados por tanta corrupção, se retirando). A ruína total do papado só foi evitada por Henrique III, que trouxe a Roma bispos alemães. E, novamente, Roma cresceu em poder temporal.
‘A autoridade mais fraca há de ceder à mais forte, isto é, a autoridade de um concílio ou de um doutor da igreja há de ceder à do papa.’ A igreja romana, teve por inimigos, por muito tempo, a grande maioria dos bispos, pois iniciou um estado de cousas em que os papas e seus legados podiam, por processo sumário, depor bispos ou constrangê-los à submissão total aos papas. A isso acresciam doutrinas, inventadas, sobre o poder temporal e a faculdade de depor monarcas. Foi necessário tecer uma nova história e um novo direito. Alterou-se a história na Alemanha e Itália e adaptaram fatos à conveniência da igreja. Por vezes, era tão bem feita a adulteração que se fazia crer que um papa dissera justamente o contrário do que havia falado. Exemplo: o papa Gelásio declarara serem os reis absolutamente sujeitos às leis papais, quando foi exatamente o contrário que ele afirmara. Outras vezes, falsificações eram falsificadas novamente. A expressão ‘decisões dos concílios’ foi substituída por ‘decretos do papa’. Gregório VII criou decretos falsos como ‘Tem a igreja romana, em virtude de um privilégio divino, o poder de abrir e fechar as portas do céu a quem entender.’ Nisso o papado fundou suas pretensões à onipotência, colocando essa mentira como decreto nos livros de direito canônico. Os gregorianos empregaram-na como tática para colocar a igreja na posse de tudo quanto cobiçavam. ‘Foi-me conferido o poder de atar e desatar tanto na terra como no céu.’. ‘Apraz-nos mostrar ao mundo o poder, que temos, de retirar de cada um e dar a quem quisermos os reinos, ducados e condados, numa palavra, o que cada homem possui, porque somos autorizados por Deus a atar e a desatar.’
S.Agostinho ensinara: ‘São dignos de toda fé e autênticos os escritos bíblicos que as primitivas igrejas apostólicas adotaram’. Isso foi adulterado para que significasse que ‘os escritos dos papas se equiparavam aos escritos bíblicos’. À afirmação de um diácono, de Roma: ‘Devemos reconhecer nos papas a inocência e a santidade herdadas de S.Pedro.’, o papa acrescentou que dois sínodos romanos, nunca realizados, haviam referendado essa afirmação unanimemente, asseverando ainda que, todo príncipe ou rei, mesmo que antes tenha sido bom e humilde, vem a depravar-se assim que se investe no poder, mas, ao contrário, qualquer papa, uma vez coroado, torna-se de imediato santo, por graça de S.Pedro. Que o menor clérigo, que apenas exorciza, é mais poderoso que qualquer soberano da terra, pois afugenta os demônios dos quais os maus príncipes são escravos.
A doutrina da santidade foi inserida nos livros da igreja, na tentativa de fazer que se respeitassem os papas cujo procedimento público, os crimes impossíveis de contestar e as devassidões, estavam em tremendo contraste com essa teoria. Foram obrigados a acrescentar outra, sugerida por um cardeal, publicando-a como se fosse da autoria de S.Bonifácio, o apóstolo dos germanos: ‘Mesmo que um papa seja abominável a ponto de levar com ele ao inferno povos inteiros, ninguém lhe deve impor censura, porquanto ele, que julga todos os homens, por homem nenhum pode ser julgado’. Logo, assim que é coroado, o papa torna-se santo e infalível.
Outra invenção dos gregorianos (cuja especial ocupação era acertar a história dos papas), para cuja refutação basta ler-se o Livro dos Papas, foi que, dos 30 papas anteriores ao imperador Constantino, 29 foram mártires. Outra: Libério fora acusado de heresia, quando papa; retificaram a história afirmando que, exilado pelo imperador, Libério ordenara Félix como seu sucessor, pelo que abdicara, não havendo prejudicado a igreja sua heresia subseqüente.
Como os reis, nos séc. XVI e XVII, tornando-se absolutos, não mais admitiram assembléias nos estados, assim os papas, que se inclinavam ao absolutismo, não mais quiseram que houvesse sínodos provinciais. Inventou-se então haver um papa anterior decretado que ‘nunca foi lícito a ninguém, nem de futuro o será, convocar um sínodo particular’.
De norma anterior que, a excomungados não era licito falar, o papa Gregório deduziu que se imperadores e reis fossem excomungados, ninguém mais lhes poderia falar mesmo sobre assuntos do interesse de seus reinados; isso os inabilitava para o governo, e obrigava que fossem depostos.
Desde o nascimento, todas as igrejas eram consideradas iguais; mas, após o concílio de Nicéia, embora no manuscrito original não houvesse uma palavra sobre o primado romano, o de Roma trazia este acréscimo: ‘À igreja de Roma pertenceu em todos os tempos o primado’, falsidade que foi denunciada no sínodo de Calcedônia.
Tais invenções, que a moderna crítica romana reconhece, continuaram por séculos, como a do batismo e conversão de Constantino (adorado nos templos pagãos) forjada como fato destinado a glorificar a igreja de Roma. Nessa época, aí por 514, por 4 anos, foi Roma palco de sangrenta batalha pela coroa papal. Nas ruas, matavam-se os partidários do papa Símaco e os do papa Lourenço, que não aceitavam ninguém por juiz. Inventou-se, também, que, um concílio de 284 bispos, convocado por Silvestre, em 321, decidira que a ninguém cabe julgar a suprema sé (i.é, o papa). Forjou-se, também, que o papa Libério, condenado por heresia, fora perdoado por um prodígio divino.
As palavras de Cipriano, que sempre foi contra as pretensões de Roma: ‘O mesmo poder e a mesma autoridade que Pedro, todos os apóstolos receberam de Cristo’, foram adulteradas para significar que ‘a Pedro conferiu o Cristo a superioridade, para que a transfira à igreja romana’. Como os escritos de Cipriano, que sempre despertavam o ódio de Roma, já eram por demais conhecidos dos teólogos, não houve jeito de inserir, nos livros da igreja, a adulteração. Contudo, mais tarde, em 1562, sendo as obras reeditadas, o editor foi obrigado pelos censores romanos a manter as interpolações.
Quanto ao denominado Livro dos Papas, está cheio de fraudes, pois é totalmente contra a história. Primeiramente, a história dos mártires romanos é toda artificial; na realidade, os papas, fizeram numerosos escribas redigirem-na sob fiscalização de diáconos fiéis. Em segundo lugar, havia necessidade de dar nova força a fábulas divulgadas sobre vários papas. Em terceiro, desejavam dar dignidade maior a certos usos adotados. Era necessário fazer crer que os papas são os reais legisladores de toda a igreja, tanto que tentaram colocar os papas romanos como professores da fé e juízes supremos, particularmente em relação aos papas orientais que eram os mais resistentes à Roma. Os investigadores encontraram erros fabulosos em relação à história real. Essas invenções são responsáveis por, ainda hoje, se acreditar serem os papas, desde o antigo cristianismo, os legisladores da igreja. Todas as vezes que se apoderavam de terras, como as da Itália e províncias ocidentais, os papas falavam ser restituição de territórios que desde passado remoto lhes pertenciam, fatos esquecidos com o passar do tempo. Assim, a doação do rei Pepino que, ameaçado com a cólera do pontífice, restituiu ao papado um exarcado (domínio de exarca) e vinte cidades que nunca lhe haviam pertencido, e despertou o ódio do legítimo dono, o império grego. O papado se encheu de muitas terras, ora prometendo vitórias, ora ameaçando com os horrores do inferno. Até hoje não se compreende a doação que, à igreja, fez Carlos Magno, tão vasta que o privava quase inteiramente de seu império italiano.
Luís, o Bonachão, conta a história adulterada, doou ao papa Paschalis as ilhas Córsega, Sardenha, Sicília e as costas circunvizinhas, quase todo o território da Itália, mas os papas, pela história verdadeira, nunca tiveram pretensões sobre elas senão séculos depois, quando a antiga doação foi divulgada.
‘Todos têm por dever sofrer, submissos, o jugo que Roma lhes impõe, ainda que se torne intolerável’ ou ‘Tolerar o intolerável, sempre que o papa o exija.’, são declarações de papas. ‘Não é assassino o que, por amor à igreja, mata um excomungado.’, ou ‘Não se deve só punir, mas matar aqueles que a igreja julgar sejam perversos.’
O papa Eugênio IV, 1439, em carta ao rei Carlos VII, que invocara as leis da igreja, respondeu que era profundamente ridículo opor leis da igreja ao papa que, a sua vontade, as podia fazer, suspender, alterar ou derrogar. A idéia de ser representante de Deus na terra, impregnou os papas, que se julgavam guardas supremos da fé e da humanidade e como sendo seu dever aniquilar todas as resistências. Essa impregnação foi tanta que se declarava que qualquer dignidade ou poder terreno, que não fosse exercido por padres, era uma infração aos desígnios divinos, e que, daí, provinham toda a loucura e pecados dos homens; que o poder real tinha sido criado por homens carregados de todos os vícios, que, por desconhecerem a Deus, e, aconselhados por Satã, tinham criado essa instituição entre os homens, até então iguais, trazendo-lhes profundas desigualdades.
No séc. XIII, caíram como enxames sobre a cristandade poderosas ordens mendicantes, os dominicanos, carmelitas, agostinhos, a mando do papa, todos totalmente independentes dos bispos, e que só se preocupavam em fazer crescer o poder do papa e de suas seitas. Correram o mundo a mendigar dinheiro e a vender indulgências, em nome do papa, autorizados até a excomungar. Os provinciais, fracos, solitários e sem organização, não podiam resistir a esses monges que coagiam padres e povos, sob pena de excomunhão, a escutar suas prédicas, nas quais faziam ver a necessidade das indulgências, cuja compra trazia a absolvição dos piores pecados.
A simonia, tráfico de benefícios eclesiásticos na Sé romana, ficou de todos conhecida. Entre cardeais e papas era comum a compra de benefícios e o suborno nos processos. Tornou-se impossível negar essa heresia, pois era praticada sob os olhos do papa, com seu consentimento, tanto que um canonista imaginou o artifício de declarar que ‘perde nos papas o caráter de simonia aquilo que nos homens o é, pois, sendo soberano da fé e da igreja, tudo pode fazer à sua vontade’.
‘Os eclesiásticos devem reconhecer um só soberano e senhor, o papa. Estão desobrigados das obrigações de súdito, onde estejam. São instituição divina e, logo, não sujeitos às instituições civis. Nenhum sacerdote pode renunciar a esse direito, por ser propriedade da igreja inteira.’
Desejava o papa Inocêncio III tornar o Deuteronômio base para leis da igreja, pois seu texto parecia favorável à teoria de que os papas têm poder de vida e morte. Para isso, o texto que rezava que cada judeu, em caso de apelação, recorreria ao grande sacerdote e, não se dando por satisfeito com a sentença, padeceria morte, foi alterado para ‘o que não se submeter à sentença do grande sacerdote, sofrerá morte’. Essa alteração foi introduzida numa bula do papa Leão X, para provar que aquele que desobedece ao papa deve morrer. Dizia ainda que o papa está para os reis como o sol está para a lua, que só daquele recebe luz; que ambos os poderes, espiritual e temporal, pertencem ao papa, só que, o primeiro, o papa o exerce em pessoa, e, o outro, os reis, mas pelo bem da igreja e sob a direção do papa.
O papa Inocêncio III criou a teoria, repetida por seus sucessores, que, em todo crime importante, lhe cabia o direito de juiz, impondo penas e anulando sentenças civis. Isso gerou para os papas um direito novo sobre príncipes, povos e tribunais civis, e lhes dava um poder que nenhum mortal tivera. O direito da igreja predominaria sobre todos os demais, e ficaria sendo o papa a única fonte do direito, submetendo a ele toda a civilização.
De ‘vigário de Pedro’, como chamavam o papa e bispos até fim do séc. XII, o papa designa ‘vigário de Cristo’ a ele só. Antes, todos os bispos eram representantes de Cristo. Agora, só o papa o é. Inocêncio IV instituiu o princípio de que todo clérigo deve obediência ao papa, ainda que este ordene alguma injustiça, pois ninguém tem o direito de julgar seus atos. Decretou que todo o clero deve conhecer os artigos do credo apostólico; os leigos, que há um Deus que premia os bons e pune os maus, e que Cristo está no sacramento. Aos leigos, a leitura da Bíblia, e falar ou pensar sobre assuntos de fé, é proibido. Aos infratores, excomunhão, e até entrega à inquisição; e que está excluído da salvação eterna quem não crer que toda criatura humana está submetida ao papa.
Para justificar as origens de suas decisões, o papa Bonifácio VIII torceu tanto os textos da Bíblia que chegou a ser objeto de zombarias e do espanto de teólogos e jurisconsultos de seu tempo.
O papa Clemente V decreta que todo rei tem de jurar obediência ao papa. O objetivo era evitar que algum se aliasse a príncipes suspeitos à igreja. E o papa Inocêncio III afirma: ‘Cristo transferiu aos papas a missão de reger a terra.’
Uma das doutrinas da igreja de maior alcance é que, o que for batizado torna-se desde logo súdito do papa e, quer o deseje, quer não, continua a sê-lo por toda a vida, podendo, por seus pecados contra a igreja, ser punido até com a pena de morte e o confisco de seus bens e de seus herdeiros.
O materialismo pagão (supersticioso) herdado pela igreja revela-se na feitura do pálio de cada papa e bispo: todo ano, no dia de Santa Inês, benzem-se dois cordeiros brancos, mantidos, após, num convento até a tosquia. Da lã são feitos os mantos que são colocados sobre o túmulo de S.Pedro e S.Paulo, da véspera até o dia da festa. Essa exterioridade sem significado é essencial a tão altas prerrogativas, não podendo nenhum papa ou bispo exercer suas funções antes de receber o manto. O resultado foi acreditar-se que nele havia uma força mística oculta, tanto que se afirmava que ‘no pálio está, inseparável, a plenitude da autoridade divina’.
Enquanto na antiga igreja, os bispos eram eleitos democraticamente pelo clero e povo da província, e podiam renunciar se para o cargo não se sentissem capazes, depois de Inocêncio III não houve mais eleição; só os papas poderiam designá-los como, também, autorizar a renúncia.
A história da igreja está cheia de calamidades geradas pela intervenção da Santa Sé nas dioceses, com os chamados benefícios. Lamentava o bispo Bartolomeu, num concílio: ‘Quem poderá ouvir sem mágoa e sem horror essa pestilencial afirmação que o papa é senhor que pode tudo dar como quiser e a quem quiser? Declaro perante a igreja de Deus, que se a isso não se puser fim, não poderei com proveito chefiar minha igreja, e ser-me-á necessário voltar para o canto de minha cela. No conclave passado, provi de pastor uma igreja de muitas ovelhas, mas um lobo foi colocado no trono de Roma e até hoje choro a destruição que ele tem feito’.
Roma desmoralizou a igreja e as dioceses com processos intermináveis contra todos e contra tudo, e com isso se enchia de dinheiro. Lamentava um clérigo: ‘Já não há mais um bispado, nem sacerdote, nem um simples cura, que não se converta em objeto de processo em Roma. Mas tu, ó Roma, exulta porque disso só te vem proveito, pois o ouro de toda terra jorra para teus cofres. Não é pela piedade, mas pela perversão, que consegues submeter o mundo’. A Alemanha muito sofreu despojada pelos papas, não tendo mais com que prover os bispados. Dos processos submetidos a Roma, esta logo obtinha lucro. As partes, obrigadas a cuidar dos processos por longos anos, morriam por lá, ou voltavam às províncias cheias de dívidas, de doenças e da terrível lembrança da corrupção que lá imperava. Convocava-se a Roma grande número de prelados, processando-os, com o que os detinham por muito tempo. E, lá, eles morriam em multidão porque, conta Pedro Damião, a cidade era um ninho de febres. E, aproveitando tantas mortes, criou-se mais um direito papal: o de anexar à Santa Sé todos os benefícios vagos por morte do titular, e anunciou-se ao mundo que o papa tem o direito absoluto de prover a todos os cargos da igreja (acabando a eleição nas províncias).
Em parte nenhuma houve tanta contradição entre a teoria e a prática. Os papas condenavam qualquer exigência de juros, mas existiam ali bancos bem organizados, operando com dinheiro exigido de negociantes italianos. Enquanto, por toda parte os banqueiros eram excomungados, os do papa eram privilegiados; autorizados a aplicar censuras papais, implacavelmente exigiam os créditos da igreja com os respectivos juros. A igreja percebera ser vantajoso ter por devedores, em toda a Europa, bispos possuidores de dioceses. Era simples coagi-los a pagar, com a ameaça de excomunhão, o principal acrescido de juros extorsivos. Célebre papista afirmou: ‘Tão exorbitantes são os impostos sobre as dignidades das igrejas que, ou ficam endividadas eternamente, ou não conseguem pagar as mais insignificantes despesas’. Um cardeal afirmou: ‘Desse modo, subtraiu o papa todos os direitos às pequenas igrejas, a tal ponto que os chefes delas não valem nada hoje. Destruída está de todo, pela avareza, avidez e ambição dos papas, a autoridade dos bispos e dos chefes menores, que fazem, hoje, simples papel decorativo’.
Assim, por culpa dos papas, o mundo se enchia de ódio contra a igreja. Historiadores sérios escreviam que ela se assemelhava a masmorras e enchia a todos de hipocrisia e simulação. Estimava-se, em 1327, que metade dos cristãos estava excomungada, inclusive os mais fiéis servidores da igreja. Autorizados, bispos e padres excomungavam, afirmando que, por instruções do papa, não deveriam economizar nessas penalidades. Até bispos e padres eram excomungados pelo simples fato de não poderem pagar, ao legado papal, o dinheiro que este requisitava para despesas de viagem.
Mostra a história que, em cada reunião episcopal, chegavam a lançar ao inferno milhares de almas. Na menor paróquia havia trinta, quarenta e mais excomungados por ninharias. Verdade é que todos podiam resgatar-se da excomunhão, mas muitos não tinham com que pagar o perdão. Os papas punham fora da lei famílias, cidades, estados, e os entregavam ao primeiro que os quisesse explorar como escravos, como fez o papa Clemente V com os venezianos; Gregório IX excomungava até a sétima geração; e Bonifácio excomungou cidades inteiras e fez arrastar seus habitantes ao cativeiro.
Roma, corrupta ao extremo, tinha a máquina administrativa composta de padres parasitas. Assim se queixava o papa Nicolau V: ‘Não há na terra maior desventurado que eu: nenhum dos que me cercam me diz a verdade e são todos insaciáveis’. Pelo mesmo motivo, dizia o papa Marcelo II: ‘Não consigo entender como um papa consiga evitar a condenação eterna.’
Usando a fórmula ‘não obstante etc.’ os papas se habilitaram a não dar importância a decretos de antecessores, sempre que lhes conviesse. Assim, toda a legislação anterior foi aos poucos revogada ou transformada em disposições opostas. ‘É evidentíssimo’, disse conceituado teólogo papista, ‘que a avidez cada vez maior dos papas, cardeais e bispos, entregou ao desprezo as resoluções dos primeiros concílios gerais; e a culpa cabe às censuráveis criações do papado, ordenações, dispensas, absolvições e indulgências, praticadas por uma desmedida ambição de poder’.
A Santa Sé, esquecendo a recomendação da igreja primitiva de não sentenciar de longe, pela possibilidade de erros, enchia-se do dinheiro das partes que recorriam das sentenças erradas. Narra o bispo Pelayo que nem uma só vez coincidira entrar nas ante-salas do papa, que não visse os cortesãos contando moedas de ouro, que tinham em pilhas diante de si.
Tudo era motivo para que se vendessem isenções e privilégios: um bispo precisava se precaver contra inimigos assistidos por indulgências; um auxiliar de bispo se armava de privilégios contra o bispo e este, por sua vez, tinha de se armar contra o auxiliar, tudo a troco de dinheiro que enchia os cofres da igreja romana. Para tudo era preciso comprar permissão: para um frade falar com outro, à mesa; para levar alimentos a um doente; para visitar um no claustro.
O concílio, único meio de salvar a igreja desses absurdos, foi destruído pelos papas. A aprovação das questões conciliares era pelo voto e eram os papistas sempre maioria, pois o papa selecionava os seus representantes; além disso, as reuniões eram na própria Roma e, se fora de Roma, a riqueza da igreja romana pagava a viagem do número de bispos necessários. Logo, os papistas ganhavam. Ao final, os participantes apenas tinham liberdade para, passivos, aprovar as decisões papais. Num sínodo, o papa mandou, por um padre, proclamar que ‘se algum bispo dissesse uma palavra sem autorização do papa, incorreria em excomunhão maior’. Por vezes, quando, de Roma iam regressar às origens, o papa não o permitia se não pagassem à cúria consideráveis quantias, emprestadas do banco papal, com juros de agiota. Igrejas e mosteiros, por isso, estavam esmagados por dívidas.
‘Nem se pode denominar concílio a esta assembléia, já que o papa fez tudo e o concílio nem respondeu, nem aprovou nada’, lamentava um bispo. Mas a servidão do episcopado e a aniquilação dos concílios chegaram a tal extremo, que resultaram na reação do grande cisma protestante.
No séc. XIII, italianos e franceses disputavam a coroa papal que, ora estava com uns, ora com outros. Nessa disputa, o papado enfraqueceu; as nações se reergueram; os sínodos se assemelharam à primitiva igreja, com livres discussões e condenação de decretos promulgados por ordem dos papas. Mas, pelas razões já vistas, ameaças e intimidações, o poder dos papas se refez, chegando um prior alemão a escrever ‘Pasmo que chamem concílio geral a esse ajuntamento, do qual quase ninguém participou senão os cortesãos do pontífice’. As lamentações são em vão. A bula Pastor aeternus proclama como dogma novo que ‘O papa tem autoridade e poder sem limites nos concílios, podendo, se lhe convier, convocá-los ou dissolvê-los’. Para provar ser legítima essa afirmação, falsificaram-se antigos anais no desejo de mostrar que os primitivos concílios tinham estado sob domínio absoluto dos papas.
Era conhecida a ignorância do clero romano com relação à teologia. Nas escolas romanas, a teologia nunca foi benquista. Os italianos deixavam aos franceses, alemães e ingleses o estudo da teologia, ficando eles com o direito. ‘Não estudam senão as decretais’, escreve Dante, ‘descuidando dos evangelhos e dos ensinamentos da igreja primitiva’. Os juristas romanos rebaixaram sua ciência a instrumento de adulação e apoio aos papas, e os teólogos, a partir do séc. XIII, os imitaram. Se algum monge, a cuja ordem pertencia a maioria dos teólogos, se atrevesse a escrever em sentido diverso, rapidamente sumiam com ele nos cárceres do claustro. ‘Hoje, os juristas governam a igreja, confundindo e vexando os cristãos com seus longos processos’, afiançava Roger Bacon, afirmando que a decadência em relação aos estudos da teologia se devia à corrupção, pois ‘Todo clero é dado à soberba, à luxúria, à avareza’.
O papa Paulo II prestou juramento de que reformaria a Santa Sé, principalmente em face dos atos arbitrários dos papas; que os cardeais haviam de se reunir duas vezes por ano para deliberar acerca do cumprimento desse juramento. Mas, percebendo que sua autoridade seria assim diminuída, quebrou a jura e obrigou os cardeais, sob ameaça de excomunhão, a assinarem deliberação totalmente diversa. Em troca, deu aos cardeais um novo ornamento para a cabeça, um barrete vermelho, que, até então, só os papas podiam usar.
Muitos cardeais conseguiam o cargo através de pagamento de elevada quantia à cúria, e bispos foram excomungados por não terem pago as taxas do decreto de sua nomeação. Vitry, antes de ser cardeal, escrevera, depois de uma estada na cúria, que o verdadeiro espírito do cristianismo era absolutamente alheio a essa instituição, onde ninguém tratava senão de política, desavenças e processos, e mal se podia falar de cousas espirituais. Gerboch, em seu livro Investigationi Antichristi, mostra a confusão que produziam as isenções e indulgências compradas, a avareza e cobiça do clero de Roma. O monge João de Parma, beatificado em 1777, nomeado cardeal pelo papa Nicolau III, recusou dizendo: ‘A cúria romana, entregue à charlatanice, só se ocupa de guerras e imposturas, sem nenhuma atenção à salvação das almas’, ao que o papa respondeu: ‘Tão acostumados estamos a essas coisas, que acabamos tendo como benéfico tudo quanto dizemos e fazemos’.
Com tantos desacertos, a partir do séc. XII, toda literatura profana e religiosa da Europa era hostil ao papado e à cúria. De todo lado amargas queixas acerca da decadência da igreja por culpa dos papas; da corrupção do clero; penas e despachos pagos a peso de ouro; venda de indulgências, absolvições e privilégios como no balcão de qualquer negociante.
Profetizava Santa Hildegarda: ‘Com seu poder de ligar e desligar, os papas nos subjugam como a animais. Difamada e sem vida, a igreja inteira jaz nas suas mãos. Querem conquistar os impérios da terra, mas os povos se levantarão contra esse clero ébrio de riqueza e luxúria, que já não tem nas veias uma gota sequer de religião. Ao papa só restará Roma, com um minúsculo território em derredor. Isso há de resultar, em parte, de guerras, e em parte, de ajuste de contas dos Estados’. E Santa Brígida, dois séculos após, tacha o papa de ‘o pior dos piores’, de assassino de almas confiadas à sua cura; de pôr a perder os inocentes e de vender os eleitos a troco de um lucro indecente.
Tudo em vão. Bispos e abades empobrecem igrejas e conventos para satisfazer a voracidade dos cardeais ou vencer nos processos. A todos se devia pagar, do porteiro ao papa, dar a cada um presente, senão estava perdido o negócio. E não se pagava uma só vez; as dádivas se repetiam até o fim de cada processo. Os cardeais e sobrinhos do papa eram insaciáveis. O jurisconsulto Dubois disse que era uma calamidade, para a cristandade inteira, terem os cardeais que viver de roubo, sem que nunca se fartassem. Os pobres, como conseqüência, nada conseguiam da igreja, a não ser perder o pouco que tinham. Já ao iniciar o exercício, achavam-se os bispos com pesadas dívidas a que tinham sido forçados para alcançar promoção.
O papa Urbano V reconheceu que a corrupção em que mergulhara a igreja devia-se, principalmente, à falta de concílios. A igreja romana estava desacreditada em todos os países; todos a insultavam e acusavam de ter corrompido o clero que, por isso, era objeto de ódio universal. Teólogos chamavam a igreja de ‘prostituta subornável’, cujos pecados Deus estava mostrando ao mundo. Cardeais e bispos usavam expressões semelhantes e muitos sugeriam que se abandonasse instituição tão corrompida. Quem ler os documentos de testemunhas oculares relatando os fatos monstruosos da corte papal, compreenderá porque os povos pensavam que chegara o fim do mundo.
A mudança da cúria para Avinhão trouxe série de papas franceses. Os romanos viram que o papado lhes estava fugindo e com ele a fonte inesgotável que havia enriquecido tantas famílias italianas. S.Boaventura, ligado à santa sé por fortes vínculos, chama Roma de prostituta que embriaga os príncipes e povos com o vinho de sua devassidão; dizia que em Roma se compram e se vendem os cargos da igreja; que ali, os príncipes da igreja, desprezando Deus, mergulham na devassidão, aderem a Satanás, e saqueiam o tesouro de Cristo; que sob esse amontoado de imoralidades, corrupção, e vícios de toda espécie, a religião cristã perecerá miseravelmente, envenenada pelo clero que se contagiara sob a direção de Roma. A igreja era ‘a igreja da carne e da corrupção’, e muitos suspiravam por um papa que a viesse salvar.
Dante escrevia que se cumpriam as profecias do apocalipse, em Roma, a prostituta das Sete Colinas que, inebriada de ambição, turvava a razão dos monarcas e povos. No Paraíso, execra a corte papal, e aponta o papa como o próprio Anticristo anunciando a chegada de Satã. Pelayo confessa que o papado envenenou a igreja; que é sua culpa haver-se tornado o clero odiado mortalmente em todo mundo: ‘Dizem os prelados de si para si: Se o padre santo assim faz, porque nós não havemos de fazer também? Estamos da cabeça aos pés envoltos em trevas.’ Contudo, se alguém pensar que Pelayo tenha aconselhado a pôr limites a esse absolutismo sem freios errou. Ele terminava assim: ‘Mas como a ninguém é lícito pôr limites à onipotência divina, a ninguém é lícito o simples pensamento de pôr limites ao poder dos papas’.
O frade Agostinho Trionfo, em seu livro Suma da Igreja, incumbido pelo papa João XXII de expor os direitos do papa, afirmava haver, além do celeste e do terrestre, um novo reino sujeito ao papa, o purgatório. Que sendo o papa dispensador das promessas de Cristo, pode libertar, se lhe aprouver, mediante indulgências, todas as almas que penam no fogo do purgatório.
Petrarca, como Dante e Boaventura, chama a igreja romana ‘dissoluta do apocalipse, flagelo do gênero humano’, e, afirma que o papa Luigi já não domina o mundo pela hipocrisia, pois que mostra seus crimes a todos, mas pelo terror dos seus anátemas e maldições. Milhares de vozes, em todos os idiomas, se ouviram de todas as nações, por quatro séculos, contra a tirania papal, que maculava as coisas santas e dilapidava a cristandade inteira. Apesar disso, Roma sempre teve defensores de seus pretensos direitos, pois remunerava muito bem seus aduladores. De 1230 até 1530, os parasitas da igreja romana, arvorados em intérpretes do direito canônico ao gosto dos papas, criaram novos direitos. Segundo documento assinado por cardeais, em 1538, os papas amontoavam doutores sobre doutores, para tramar como dispor as regras de modo a colher delas as maiores vantagens.
A defesa maior do sistema pontifício esteve entregue, por muito tempo, à inquisição, poderoso organismo cujo fim era acabar com qualquer resistência ao sistema e elevar ao máximo a infalibilidade papal; os que discordassem de qualquer artigo de fé, eram punidos com a morte no fogo. O papa Inocêncio III decretou que o simples fato de se negar a jurar era heresia digna de morte, e que fossem tratados como hereges todos que divergissem, fosse no que fosse, do gênero de vida habitual do povo. Só mais tarde, os teóricos se preocupavam em achar justificativas aos excessos praticados. Tomás de Aquino ensinava, então, que, como a escritura chama os hereges de lobos e salteadores, e sendo costume enforcar salteadores e matar lobos, é isso que deve ser feito com os hereges. Mas, as vozes mais conceituadas da igreja protestavam contra a matança dos hereges. S.Bernardo e outros lembravam haver o Cristo proibido atos como esses praticados pelos papas, e que isso somente geraria horror e ódio contra a igreja. Mas os papas, garantidos pelo princípio da infalibilidade, continuavam o mesmo caminho. Quanto aos inquisidores, armados de poderes dados pelo papa, aproveitavam-se do cargo para extorquir dinheiro, transformando o tribunal da fé em posto de arrecadações fiscais.
Roma vivia cheia de queixas de vítimas pedindo socorro. Os hereges eram executados e seus protetores e amigos sujeitos a penas severas. Na França, a inquisição foi iniciada pelo cardeal Santo Ângelo, quando, à frente de um exército, invadiu Tolosa. Toda autoridade civil era obrigada a executar à risca as sentenças dos inquisidores, senão também incorria em, primeiro, excomunhão; depois, a cidade sofria o interdito; depois, as autoridades eram destituídas. Se frustrados esses meios, privava-se a cidade do bispado e do comércio com as demais. Ainda no séc. XVII era esse o uso. Com o tempo, a inquisição, com o poder aumentado pelos papas, esqueceu qualquer princípio de justiça. Uma suspeita, e vinha a tortura e a prisão emparedada, a pão e água. Nesse tempo, impunha-se aos filhos, por dever de consciência, denunciar os próprios pais para tortura, prisão eterna, ou para a fogueira.
Ocultavam ao acusado os nomes das testemunhas, negavam-lhe defesa, apelação e defensor. O jurista que ousasse defendê-lo era imediatamente excomungado. Para condenar alguém, bastavam duas pessoas, que podiam ser inimigos pessoais do réu, ou de má fama, cujo testemunho não seria aceito em qualquer tribunal. A tortura era o meio de obter confissões e proibia-se ao inquisidor usar de brandura. Nem a retratação salvava o acusado, cuja família era extorquida de todos os bens, metade para o inquisidor, metade para a câmara do papa. Dizia o papa Inocêncio III que, aos filhos de hereges, não se devia deixar mais que a vida, e isso por simples misericórdia.
À autoridade temporal cabia construir cárceres, preparar as fogueiras, e executar as sentenças. Se recusava, ou inquiria dos motivos da condenação, era excomungada e, não se retratando, era suspeita de heresia podendo acabar na fogueira. O papa Bonifácio VIII ordenava tratar como herege e queimar viva a autoridade que recusasse servir de carrasco. Todo poder da inquisição emanava do papa e ninguém foi à tortura ou à fogueira senão por ordem do Santo Padre. Durante séculos continuou essa matança, donde resulta que, em nome de nenhum soberano temporal se efetuou mais execuções do que em nome do papa. A submissão a este era o sinal mais seguro de se possuir verdadeira fé. Disse o papa Pascoal II: ‘O que discordar do papa é, sem dúvida, herege’. Quando um arcebispo queixou-se da violação de um compromisso, ao papa Calisto III, este respondeu ser ‘dever do prelado não ignorar que, com aquele passo, atenta contra a autoridade do papa, incorre no crime de heresia e cai ao alcance das penas da inquisição impostas pelo direito divino’.
Os que, seguindo S.Francisco, viviam em pobreza, eram condenados, pois isso configurava heresia por ser oposição ao papado. ‘Quem não cumpre decreto do papa é herege; quem não obedece à santa sé, volta ao paganismo.’ Muitos dos que foram contra o papa João XXII ter anulado a ordem franciscana e a bula papal que a aprovara, pagaram com a vida. Cornélio Agrippa, em 1530: ‘Sua jurisdição exercem-na os inquisidores conforme os decretos, como se fosse impossível a um papa errar. Não admitem nem as escrituras, nem a tradição dos Padres da primitiva igreja. Podem todos errar, menos o papa da igreja romana’.
A doutrina papal era que ‘Herege é todo indivíduo que despreza as decretais’ e, com isso se condenava. Desse recurso usou o papa João XXII, para justificar suas pretensões territoriais e para apoiar ou prejudicar autoridades temporais. Muitas vezes fervorosos católicos, em geral bem dotados, foram vítimas dessa norma e tiveram sua casa, súditos e partidários condenados á escravidão. Os inquisidores trocaram suas funções habituais pela pilhagem; assim, o papa Nicolau III enriqueceu sua família. O papa Clemente V decretou: ‘Como um inquisidor só se deve levar pela própria consciência, lhe são plenos os poderes de prender e meter a ferros qualquer pessoa’.
Toda feitiçaria dos séc. XIII a XVII se deveu à crença na autoridade absoluta dos papas. Essa afirmação não é absurda. Por muitos séculos, a igreja foi contrária às superstições pagãs, como as crenças nos malefícios e assembléias do demônio, encantamentos e feitiços, e mandava punir, por heresia, os que acreditavam nisso. Era impossível imaginar que viria tempo em que os papas, nas suas bulas, confessassem essa crença, e mandassem matar milhares de pessoas suspeitas da prática de feitiçaria. No séc. XII, João de Salisbury afirmava serem essas crenças apenas superstições. Mas, rapidamente se espalharam os escritos de monges dominicanos, sobre visões e prodígios, e que, entre os hereges, havia milagres que só podiam ser obra de Satanás. Isso trouxe, ao Ocidente inteiro, em face da ignorância popular, a idéia de que o homem podia pactuar com o diabo para obter poderes naturais. Os próprios historiadores oficiais dos papas proclamaram que o papa Silvestre II conseguira o trono por um pacto com Satanás. Assim que teve início a inquisição, os feitiços e o culto ao diabo foram declarados heresia e punidos como se fossem reais. A igreja teceu completa teoria sobre amores de homens e demônios e sobre filhos dessas relações, e era perigoso negar tais crendices, pois à sua frente estava Tomás de Aquino. Assim, puniam-se os suspeitos de acreditar e os que não acreditavam. O papa Gregório IX ordenou que o poder temporal punisse com violência tais heresias, e inquisidores relatavam haver descoberto horrores praticados nas reuniões noturnas onde estava presente o diabo sob forma de sapo ou gato negro. Todos os suspeitos de terem beijado o sapo ou o gato, ou tido relações com demônios, eram queimados vivos. Pela tortura arrancava-se facilmente confissão de qualquer um, fosse inocente ou culpado.
Do séc. XV para cá, com a bula de Inocêncio VIII contra os feiticeiros, os processos ficaram mais numerosos, terminando sempre na fogueira. Na bula, ele interpreta a frase de S.Paulo: ‘O homem espiritual é senhor de tudo neste mundo’, como ‘o papa é senhor de tudo neste mundo’. Quando o profeta Jeremias disse que sua missão de anunciar os castigos celestes era de assolação e ruína, na versão papal ele se referia ao papa, a quem Deus autorizara assolar e arruinar tudo quanto lhe aprouvesse. E no salmo que canta que o Messias domaria com energia os povos pagãos, estava o direito que os papas têm de autorizar a santa inquisição e suas sentenças de morte. Era assim que os jurisconsultos papais alteravam a teologia, e os teólogos alteravam a jurisprudência, na tentativa de justificar os excessos papais. As feiticeiras, que fossem queimadas, pois o Cristo dissera: ‘Aquele que não estiver em comunhão comigo, repeli-o como ao galho seco que se lança ao fogo’.
Embora a igreja negasse a crença em sortilégios, bula de Sisto IV, em 1471, declarava que só os papas podiam, de direito, fabricar cordeirinhos de Deus, de cera, e enterrá-los em cerimônia que livraria de bruxarias, incêndios, naufrágios, tempestades etc., e traria absolvição de pecados, mediante pagamento. Inocêncio VIII, em bula de 1484, contribuindo para maior superstição do povo, confessa sua crença na feitiçaria; que é possível ter relações impudicas com íncubos e súcubus; causar danos a mulheres e animais prenhes, a frutos, vinhedos e campos, atormentar animais e seres humanos, impedir mulheres e homens de terem filhos etc. E lamenta certos eclesiásticos, que se julgam sapientes, se oporem à punição desses crimes. Os papas Alexandre VI, Leão X, Júlio II, Adriano VI e outros, séculos depois, dão mais poderes à inquisição para o combate à feitiçaria.
Como Tomás de Aquino, a teologia afirmava ser real a bruxaria e obra de Satã, esquecendo cânon anterior que assegurava ser isso ‘superstição de ignorantes’. O problema, já que papas assumiam a crença, era esquecer o cânon que, por antecipação, os marcava como hereges. E afirmou-se então ser a autoridade do papa superior à do cânon, ou que este se referia a feiticeiros de outra seita. Enquanto isso, conceituados teólogos diziam ser verdadeira loucura crer em feitiços, e justificavam a queima dos feiticeiros por suas idéias heréticas e não mais por seus pactos com o diabo. Assim, séc. XIV e XV, estavam em conflito as teses mais contraditórias, muitos tendo sido queimados, na Espanha, por crerem em bruxaria e, na Itália, por não crerem. A autoridade de Tomás, do papa e dos inquisidores sufocou as contradições mesmo que os jurisconsultos invocassem o antigo cânon. Contudo, a santa sé declarou que, em face da autoridade papal, desaparecia a do concílio que se atrevera a negar a feitiçaria. Conclui-se, portanto, que os papas tinham como reais a existência e os pactos com o diabo. Toda literatura que surgia, de médicos, jurisconsultos, cientistas e teólogos, visando explicar por causas naturais os fenômenos atribuídos ao demônio, era esmagada pela censura pontifícia. Por um século o Índice se encheu de obras escritas com essa intenção, e continuou em vigor o Manual da Feitiçaria, código dos jesuítas para uma justiça criminal de influência supersticiosa e devastadora.
Se alguém mostrava dúvidas nesse assunto, ou tentasse mostrar o erro, era forçado a desdizer-se e a afirmar que falara por sugestão do diabo, e podia ser encarcerado pelo resto da vida. Cem anos após, um clérigo de nome sustentava que numerosas mulheres inocentes foram queimadas, e que só confessaram seus crimes mediante tortura. O papa mandou encarcerá-lo; solto, tornou a afirmar o que dissera e foi queimado vivo. Ainda em 1623, o papa Gregório XV decretava ‘que se condene à prisão perpétua quem quer que, mediante pacto com Satã, cause impotências, ou faça mal a animais, frutos, etc’. Depois de quase dois séculos de sacrifício de um sem número de vidas humanas por ordem dos papas e monges, em 1657, a inquisição emitiu um relatório confessando que os inquisidores desde muito tempo não dirigiam corretamente um só processo, que haviam faltado gravemente a seus deveres, exagerando na tortura e noutros erros e que, em face desse exemplo, muitos tribunais eclesiásticos cometeram injustas condenações capitais. E terminava ordenando se atenuassem as penas. Mas, até hoje, no ritual romano, obrigatoriamente observado pelos padres, dispõe-se que, se alguém tiver ingerido certas substâncias encantadas, que o tornem possuído de Satanás, extraiam-lhe o demônio com um vomitório.
A situação na igreja chegou a tal ponto que, se um bispo obedecesse a decreto papal lesivo à igreja, mostrava ser ortodoxo; se não obedecesse, dava prova de heresia. Isso trouxe conseqüências perturbadoras, tendo o clero muitas vezes, estrategicamente, ignorado tais leis, o que fez crescer de modo irremediável a corrupção entre o clero.
Enquanto os bispos orientais queriam que, nas questões de interesse da igreja toda, a decisão do papa romano ficasse sujeita ao assentimento dos demais bispos, pois não entendiam uma autoridade autocrática e arbitrária na igreja, teólogo romano forjou uma tradição, nunca ocorrida, e que fez remontar a oitocentos anos, pela qual demonstrava que o papa romano e só ele é a única autoridade em matéria de doutrina. Isso causou enorme mal à unidade da igreja. Afirmava que Cristo transmitira a Pedro a onipotência; e, assim, o direito e poder de mandar, atar e desatar, ninguém o tem senão o papa romano. ‘Obedeçam-lhe como ao próprio Cristo; observar o que ele decide é dever de todos. Em verdade, o Cristo está, no sacramento e na autoridade, inteira e absolutamente, com o papa.’ ‘Só a igreja de Roma tem a inabalável fé de Pedro, pela qual reina. As outras igrejas estão manchadas pelo erro, e a luz que têm vem da sé romana. A autoridade de qualquer concílio não lhe advém senão do papa romano, que tem o direito de inovar a seu arbítrio.’
Inocêncio III decretou que todo cristão se confessasse uma vez por ano com seu respectivo pároco, sem o que não seria absolvido. Porém, pouco depois, a sé romana colocou, em todas as dioceses e curatos, monges novos dotados do poder de absolver. Com esses, que ganhavam a vida pelo confessionário, o papa estava presente em todas as igrejas. E passou a se intitular bispo universal, título que horrorizara papas anteriores. A ação dos curas cessou, e o povo aprendeu a desprezá-los. O papa Inocêncio IV, para proteger os curas e os bispos, proibiu que os monges entrassem nos confessionários sem autorização do cura. Essa ordem foi anulada pelo papa seguinte, tendo os teólogos tomado a defesa dos curas. Mas, Tomás de Aquino ensinava: ‘Quanto à obediência, não há diferença nenhuma entre Cristo e o papa’. Tinha, pois, o papa o poder de destruir a antiga regra instituída pelos concílios. Os bispos, que não conseguiam mais administrar suas dioceses em face da multidão de isenções, viram-se obrigados a deixar agirem livremente esses enxames de monges, que só aceitavam ordens do papa. Um cardeal chegou a afirmar: ‘Tão desorganizada está a igreja, em conseqüência dos privilégios desses monges, que lhe cabe precisamente o qualificativo de monstro’. ‘Cada manhã um servo informa-nos que há um novo decreto doutrinal ou disciplinar, afixado, sem ciência nossa, à porta de nossas catedrais. Força é obedecer sem hesitar, ou a inquisição virá pedir-nos contas. Já não somos mais bispos diocesanos. De nossas dioceses todas o papa é o bispo absoluto. Se algum bispo lhe desagradar na mais leve coisa, o castigo vem de imediato, não se admitindo explicação nem desculpa, pois o que o papa exige é submissão total. Ele falando, o que nos cabe é silêncio, obediência, submissão muda e cega, baixarmos a cabeça em adoração, sem ver e sem inquirir nada’. Este texto, só foi revelado após a morte do bispo que o escreveu, que exigira sigilo total enquanto vivesse por temor da inquisição.
Graças às falsificações da história e de documentos da primitiva igreja, a infalibilidade papal foi aceita pela teologia, mas não por todos. Anteriormente, acreditava-se que qualquer papa pudesse dar soluções erradas em questões importantes da fé, incorrer em heresia e, assim, ser julgado pelos concílios e, até, deposto. Cardeais, que depois foram papas, entendiam que as decisões dos papas podiam ser questionadas e mesmo revogadas por outros. Assim, Inocêncio III confessou: ‘Quanto aos meus pecados pessoais, só a Deus reconheço como juiz; mas, aos cometidos em pontos de fé, cabe à igreja sentenciar-me’. Inocêncio IV ‘autoriza não se obedecer a ordens de papas se contêm heresia, pois eles podem errar em assuntos de fé’. Houve papas que tiveram suas doutrinas reprovadas como heréticas, por teólogos e até por reis, que mandavam apregoar o erro, nas ruas, ao som de trombetas, afirmando serem corretos os juízos de doutores leigos, porque os doutores da igreja nada entendiam de teologia. Primitivamente, era uso o papa, em assuntos de fé, apelar ao concílio geral, cabendo aos bispos julgarem a questão. Por isso, quando se procurou firmar a infalibilidade papal, a mais sábia assembléia da igreja, o concílio, a rejeitou com energia. Mas, afinal, através dos artifícios já vistos, a pretensão do papado venceu.
A simonia, aquisição de ordens por dinheiro, foi considerada heresia pelo papa Leão IX, sendo cassadas numerosas ordenações. Contudo, raríssimos padres e bispos estavam livres de simonia, o que fez que milhares de cristãos se vissem em tremenda dúvida acerca dos sacramentos recebidos de sacerdotes cujas ordenações não tinham valor. O ódio do povo contra os padres e a igreja se espalhou e a solução foi que o mesmo papa determinou reordenações em massa. Houve tantas ordenações e reordenações, que a igreja e fiéis se viram em tremenda confusão, coisa que nunca aconteceria na primitiva igreja. O papa Urbano II declarou nulas as ordens conferidas por um simoníaco, mas que o ordenado não seria considerado simoníaco, decisão que confundiu todos os teólogos, que nada entenderam: ‘Intrincadíssimas e dificílimas palavras’.
Quem investigasse a história veria a tremenda contradição entre as antigas fontes históricas e o novo direito da igreja. Resolveu-se, então, fazer sumirem as contradições e que os fatos fossem ordenados de modo que o conteúdo dos livros jurídicos fosse ratificado pela história. Todos os teólogos foram obrigados a adaptar a nova história da igreja à história bíblica de Comestor, que, na idade média, já era a mais fantasiosa. Toda história foi preparada, assim, ao arbítrio das necessidades da igreja. A verdade da tradição ficou sepultada sob um amontoado de falsificações. O autor inicia com estes absurdos: ‘Cristo foi o primeiro papa. O segundo foi Pedro que, por seus discípulos, fundou as principais igrejas’.
No séc. XV, a igreja entrou numa fase na qual os maiores adoradores do papado duvidaram dele. Por mais de quarenta anos, os cristãos viram o espetáculo vergonhoso de dois papas, um em Roma, e outro, em Avinhão, dois inimigos se amaldiçoando mutuamente. E, nos seis anos seguintes, três papas. Fora eleito Urbano V, que prometeu excomungar todos os cardeais simoníacos. Mas a simonia era o pão de que se nutria a cúria; sem ela, tudo faltaria. Por isso, os ameaçados elegeram outro papa ao gosto deles, Clemente VII. Os defensores das partes, com fundamentos irrefutáveis, demonstravam que o papa contrário não tinha nenhum direito. Havia num e noutro lado homens que a igreja, mais tarde, classificou entre os santos, e que a esse tempo amaldiçoavam-se uns aos outros. Havia duas cúrias papais, dois colégios de cardeais, e cada cúria sentia o efeito da concorrência que diminuía seus proventos; cada qual estava determinada a agravar os tributos, a extorquir mais dinheiro, e ambas inventavam novos meios espirituais de lucro. Todas as penalidades criadas há séculos pela igreja, excomunhões e maldições, cada papa lançava contra o rival. Tido como representantes de Deus e infalíveis, via-se cada um qualificado pela oposição como infame, apóstata, herege, anticristo, e merecedor das penas do inferno. Os sectários da infalibilidade estavam num labirinto sem saída; os cristãos, perdidos, sem saber a qual papa obedecer. E existia decreto pontifício de que, fora da comunhão papal, eram nulos os sacramentos e as ordenações. Os que tinham algum conhecimento viram que essa imensa desordem se devia ao esquecimento a que fora deixada a igreja primitiva. Daí nasceu vigoroso desejo de retornar ao regime dos concílios, no qual seria impossível a igreja sofrer tanta humilhação. Foi exigido um concílio geral como único meio capaz de reunificar e reformar ‘uma instituição tão degenerada e abusiva como a igreja romana’. Realizou-se um sínodo que elegeu Alexandre V; e a igreja ficou com três papas, embora o eleito no sínodo fosse o mais considerado.
Por fim a igreja conseguiu destruir o sistema romano. É que fora eleito João XXIII, o homem mais abjeto e infame que ocupou o trono de S.Pedro. Deturpada, enlameada, cansada, a igreja realizou o concílio de Constança, o mais numeroso do Ocidente. Inaugurou o voto por nações, não mais por indivíduo, em que sempre venciam os italianos, que se opunham a qualquer reforma, porque o sistema vigente atendia à sustentação da cúria e do papado. Esse concílio decretou: ‘Todos, incluindo o papa, estão sujeitos ao concílio e lhe devem obediência em todas as decisões’. Nem uma só voz protestou. Era a negação do sistema papal, do que fora ensinado nos livros jurídicos e nas escolas de teologia. Dizia-se, então: ‘Na igreja, da planta dos pés ao alto da cabeça, não há um ponto sadio’.
A ambição do papado tinha sido para os gregos, desde muitos séculos, o principal motivo de rejeitarem a união das igrejas. ‘A tua tirania e os teus crimes são a causa por que estamos separados. O tremendo orgulho de teus bispos causam nossa separação. Cremos na tua onipotência sobre teus súditos; mas não podemos tolerar teu demasiado orgulho, nem saciar tua cobiça. Satanás está contigo, e o Senhor está conosco.’ Quando os teólogos romanos tentavam se justificar com amontoados de citações falsificadas, os gregos lhes respondiam, secamente: ‘Esses cânones são todos apócrifos’.
Se a igreja realizava acordos com príncipes e povos, era comum o papa comunicar, se lhe era conveniente, não estar sujeito nem a acordos, nem a tratados, pois estes lhe limitavam a autoridade; se ele cumprisse o tratado seria apenas pelo amor que tinha pelo povo. Um acordo obriga a nação, não o papa. Ódio e desprezo se acumularam contra a igreja romana. ‘Todos amaldiçoam o imperador, o papa e seus delegados.’ A Alemanha teve avultados prejuízos com isso, tendo canonistas alemães assegurado que, ‘pelo antigo direito da igreja, os papas são obrigados, como qualquer um, a respeitar a palavra dada por ele ou por seus antecessores.’ E rogavam ao governante ‘não mais dever ao papa obediência nem submissão, para que a nação alemã não continue a ser menosprezada e humilhada, pela igreja, em face do mundo’. O prior dos cartuxos escrevia: ‘Haja um só rei que permita reunir-se um concílio em seu território; haja um só bispo que o convoque; e incontinenti, apesar dos anátemas da cúria romana, o concílio funcionará. A experiência de muitos anos mostrou-nos que nada de bom podemos esperar da sé romana. É uma heresia das mais funestas privar a igreja de concílios, que é o que ela tem de melhor’.
Nicolau V, em bula, reprova como nulos e sem efeito todos os atos do papa Eugênio, mais uma vez mostrando que a infalibilidade é um engodo, pois ou errou o primeiro, ou errou o segundo. Santa Catarina de Siena, ao avistar o papa Gregório XI, disse-lhe: ‘Estou sentindo na cúria o cheiro de crimes infernais’, ao que o papa respondeu ser impossível pois ela recém chegara. A santa respondeu: ‘Pois afirmo que, desde minha cidade natal, senti mais ativo o cheiro dos crimes da cúria que esses que diariamente se praticam’.
Por toda parte estavam as bulas romanas, as excomunhões, os monges mendicantes, os inquisidores, que Erasmo escreveu: ‘Se o Cristo não livrar seu povo dessa tirania clerical, melhor suportar a tirania dos bárbaros. Não se pode esperar qualquer reforma senão por milagre divino. É preciso reformar primeiro a corte de Roma, mas o curso dos acontecimentos mostra-nos como essa empresa é difícil’. Asseverou um teólogo, o doutor extático, que quando orava pela igreja, numa visão responderam-lhe que ‘mesmo que o papa, os cardeais e os prelados e todo seu séqüito, jurem emendar-se, estarão jurando falso, pois na igreja, de ponta a ponta, somente há gangrena’. E clérigos diziam: ‘Pedem um concílio, mas não há mais poder humano capaz de reformar a igreja. Só mesmo Deus pode fazer esse milagre.’
Roma continuava a ser a escola de vícios, de onde os padres voltavam carregados de crimes, de absolvições e indulgências. Já não escandalizava ninguém o concubinato do clero inteiro, em todas as dioceses, de toda a Europa. Nas províncias, podia-se afirmar que de trinta eclesiásticos, talvez um fosse casto. Tudo era corrupção. As ordens sacras eram compradas, e os que não tinham dinheiro, não eram promovidos. Os próprios chefes da igreja davam o exemplo e faziam alarde de desprezar as leis divinas e humanas. Os que voltavam de Roma narravam que, na cidade santa, ‘não há quase um padre que não ande com concubinas ou meretrizes’.
No séc. XVI, as coisas se complicaram de tal modo que Luis XII, de França, e Maximiliano, da Alemanha, só viam saída na realização de um concílio geral. Mas, com os papas Paulo II, Sisto IV e Inocêncio VIII, o vasto mercado da cúria romana alargou-se. Tratavam de criar principados para sobrinhos e filhos naturais, ou para enriquecer filhos. Novos cargos foram instituídos e logo vendidos. Leiloavam-se, por alto preço, os barretes de cardeais. Quando a prodigalidade dos Médicis esvaziou o tesouro dos papas, que parecia inexaurível, os papas Leão X e Clemente VIII venderam avultada quantidade de ordens cardinalícias. De ponta a ponta da Europa ouvia-se: ‘Em Roma vende-se de tudo!’ Embora já há quatro séculos isso ocorresse, era geral a convicção de que jamais a desfaçatez fora tão às claras. Nunca, antes, fora tão aperfeiçoada a arte de converter a religião em moedas de ouro. ‘Em verdadeiros leilões públicos, a igreja romana se entrega a quem maior lance oferecer.’
A igreja de Roma expunha aos olhos de todos, pela Europa, o rol dos pecados e o preço da absolvição. Esse sistema foi imitação do uso alemão de indenizar a família em caso de ser assassinado seu chefe. Cedo, teve fim o sistema, no direito alemão; mas, subsistiu por muito tempo no direito eclesiástico. Insinuou-se ser invenção dos inimigos da igreja, mas edições oficiais expostas com o selo papal não deixavam dúvidas. Antes eram assunto interno, mas, mostrando a confiança da corte papal, as relações foram publicadas, ao tempo dos papas Júlio II e Leão X. Alguns dos produtos à venda: Preço de um incesto (absolvição do que conhecer carnalmente sua mãe, irmã ou parenta consangüínea ou afim): 6 gr.; matar pai, mãe, irmão ou irmã: 4 tornesas, 1 ducado e 8 carlines; matar a mulher: a mesma taxa anterior, mais a dispensa para se casar com outra: 8 tor, 2duc e 9 carl; pai ou mãe que sufocar criança filha sua: ..., e se o fizerem de acordo sobe o preço para...; reabilitação de herege: ...; sacrílego, perjuro:...; dispensa de juramento dado a uma só pessoa e por um só contrato:...; dispensa para os que confessam religiões estranhas:...; a absolvição da quebra do voto de castidade dá-se apenas no foro da consciência, sendo a taxa de:...; perdão de impudicícia de clérigo com freira:...; a freira que por muitas vezes tiver comércio carnal, dentro ou fora do convento, será absolvida e reabilitada, e poderá ter acesso a todas as dignidades da ordem, inclusive a de abadessa, pagando:...; pecar contra a natureza com animais:...; para um padre poder rezar seu breviário às avessas:...; para um padre usar camisa ou lençóis de linho:...; dispensa de príncipe secular para comer carne de animais mortos por sarracenos:...; para freira, em caso de doença, ter uma criada:... Mais tarde, as relações foram colocadas no Índice da igreja, com anotação de ‘heréticas’.
Dizia-se: ‘Quanto mais perto de Roma qualquer povo, menos religião tem.’ Povo e clero eram por demais ignorantes. Escreveu um bispo, em 1550, que todos os padres das dioceses do papa, exceto um ou dois, não sabiam ler a missa, e quase nenhum sabia ler um só texto. A grande diocese de Milão, com 2.300 padres, ficou sessenta anos sem bispo e nas casas dos sacerdotes só havia três coisas: armas, concubinas e filhos. E não havia provérbio mais popular que este: ‘Para se ir ao inferno o melhor caminho é ser padre’. E mais: ‘O nome de Roma é odiado por todas as nações. Nem seus maiores amigos deixam de gemer a infâmia e a vergonha que pesam sobre a igreja romana.’ Até os votos para a eleição de um novo papa eram vendidos e comprados.
Em 1527, a cidade santa, que desde séculos se enchia com os tesouros de todo ocidente, foi saqueada por cristãos alemães, italianos e espanhóis. Nada restou. E um teólogo papal dizia: ‘É pura justiça; a igreja é desprezada e sua palavra não mais tem poder. Merecida punição divina entregou-a ao cativeiro, não nas mãos de infiéis, mas de cristãos. Só tem valia para cerimônias exteriores e os bens temporais são os únicos gozos que conhece. Aí está o motivo pelo qual somos agora levados à servidão.’ E os católicos não tinham mais defesa frente aos protestantes: ‘Estamos derrotados; nem podemos negar nossas culpas’. Um cardeal chegou a declarar ao papa Paulo III: ‘O sistema papal é absolutamente perverso e anticristão. Razão tinha Lutero em escrever no seu livro: ‘nada se pode imaginar mais contrário à lei de Cristo que esse regime que subjuga os cristãos ao papa e o autoriza a fazer ou desfazer, arbitrariamente, as leis. É impossível cativeiro maior que esse contra a humanidade’. E surgiram confissões de espantar: ‘Nós, cardeais, bispos e gente da cúria romana somos um bando de homens sem brio, nem consciência; por nossa culpa, inúmeras almas se perderam. Desonramos a dignidade episcopal; de pastores, nos transformamos em lobos; somos a causa da corrupção e da ruína que assola a igreja. Tudo estará perdido se não reconquistarmos a dignidade antiga. Não há vilezas que não se atribuam a nós; tudo é justo castigo por nossos pecados, e por termos confiado, os cargos eclesiásticos, a homens indignos, incapazes e perversos’.
E, quando se imaginava que um concílio condenasse a tirania papal, mais a apoiava. Escreveu um ilustre da época: ‘Que bem vai fazer à igreja um sínodo composto de monstros como esses bispos? De bispos nada têm eles senão as vestes. É loucura esperar algo bom desses que conquistaram a mitra, ou por proteção dos príncipes, ou comprando-a, ou exercendo em Roma algum ofício criminoso. Para qualquer reforma, é necessário, antes de mais nada, exonerá-los todos de uma só vez’.
O papa Paulo VI, em 1558, decretava: ‘monarcas, bispos e príncipes, todos, apenas caiam em heresia, serão imediatamente depostos, sem qualquer formalidade legal, e condenados à morte. Se se arrependem, serão enclausurados num mosteiro a pão e água a vida inteira. A ninguém é lícito socorrer, seja como for, príncipe declarado herege ou cismático, nem com ele usar de humanidade. O monarca que desrespeitar esta proibição ficará imediatamente privado de seu reino ou território, que tocará, em quinhão, aos príncipes obedientes ao papa’.
A bula da Santa Ceia, reeditada por vários papas até Pio V, em 1568, excomungava e amaldiçoava os hereges e os que lhes dessem abrigo, os reis que lhes permitissem viver em seus territórios; os que possuíssem ou lessem livros heréticos; as pessoas ou universidades que apelassem de alguma decisão papal a um concílio futuro. Autorizava à igreja a interferir nos estados, cobrando impostos e pedágios e exercer, ali, sua justiça. Os Estados livres se revoltaram e declararam a bula sem valor. Na Espanha, Alemanha e França o bispo ou arcebispo que a publicasse seria acusado de alta traição e teria os bens confiscados, pois julgaram a bula atentatória dos direitos reais. Nos Países Baixos, a revolta foi dos próprios bispos. Em Nápoles, não se permitiu a entrada da bula em suas fronteiras. Protestos em todos Estados católicos.
Quanto à infalibilidade, a Ordem dos Jesuítas insistia nesta proposição: ‘Se a igreja disser que é negro o que nossos olhos vêem branco, negro é’. ‘A igreja é serva do papa e há de aceitar o que o papa lhe determinar. Cada um deve abdicar de seu entendimento e do mais leve exame, pois tudo que o papa preceitua é absolutamente bom’. E Belarmino declara que, ‘se o papa errar, ordenando pecados e proibindo virtudes, é dever de todos terem os pecados como bons e as virtudes como más’.
As perseguições feitas pelos jesuítas, na Alemanha, foram a tal exagero que, até os estudos comuns eram proibidos; não era permitido consultar enciclopédias, dicionários, nem livros científicos. Até aos bispos isso se aplicava. Cumpria que ignorassem tudo de novo que se descobria, e que desconhecessem o verdadeiro estado das coisas. Sob as mais severas penas proibiu-se a publicação de obras que revelassem como era a igreja primitiva, tão modificada agora; as obras existentes foram queimadas.
As palavras de Satanás, na tentação: ‘Dar-te-ei todos os reinos da terra’, foram tomadas, pelo papado, como tivessem sido dado a Pedro todos os reinos da terra. Tantas falsificações houve que se escrevia que: ‘Com o correr do tempo, nenhuma confiança mais haverá nas escrituras e, assim, ficará a igreja abalada desde seus fundamentos’. Afinal, já no séc. XVIII, a igreja convenceu-se de que não era mais possível negar as falsificações. E o papa atual confessa: ‘Na verdade, o falsário logrou seu intento; mudou como planejara a doutrina da igreja, com o que trouxe sua total ruína. Deus não abençoa a fraude; as falsificações que, se julgou, beneficiariam a igreja, só lhe produziram danos’.
O papa Inocêncio X confessou que, tendo levado a vida toda entre questões jurídicas e processos, nada entendia de teologia. Mas, que Deus lhe dera tanta inteligência, que de improviso lhe vinha claramente o sentido da escritura: ‘Tudo me vem da inspiração do Espírito Santo’. E Gregório XVI: ‘Mas eu sou o papa! Não é possível que eu erre; devo saber tudo melhor do que ninguém!’.
Na santa sé, quando se falava em resolver alguma questão mediante um sínodo, se dizia: ‘Em Roma a palavra concílio é tida por sacrílega e excomungada. Falar em concílio é tentar a Deus’. Assim, Roma conseguiu, a todo custo, evitar os concílios por mais de trezentos anos.
O livro termina aqui, exortando os bispos, que participariam do concílio, que estava por se realizar, a que agissem com independência e que lutassem pela reforma da igreja.
FIM
quinta-feira, 7 de julho de 2011
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