quinta-feira, 7 de julho de 2011

(21) ZEN, O CAMINHO DIRETO (Jan 2008)

(21) ZEN, O CAMINHO DIRETO (Jan 2008)




1. ZEN BUDISMO, de Johnston.......................................... pág 1

2. PREFÁCIO de CARL G.Jung de ‘Introdução ao Zen’...... pág 23

3. O CAMINHO DIRETO, de Murilo N. de Azevedo............ pág 27

4. INTRODUÇÃO AO ZEN, de Suzuki................................. pág 31

5. BUDISMO ZEN, de Alan Watts..................... ................. pág 46

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ZEN BUDISMO, de Johnston.

Johnston, no exercício das funções de sacerdote católico, esteve vinte anos no Japão onde estudou e praticou o Zen. Ele afirma que o Cristianismo necessita, com urgência, das práticas e ensinamentos do Zen pois, sem isso, continuará sendo, apenas, uma religião vazia e que não leva a nada.

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INTRODUÇÃO

...Parece (?) que, num acesso de humildade, a inflexível Igreja Católica sente que tem a ganhar com o Zen Budismo. Se eu tivesse ficado na Irlanda, minha terra natal, em vez de ter ido para o Oriente, eu não passaria, hoje, de um cristão intolerante a atirar pedras nos protestantes nas ruas de Belfast. O Zen ensinou-me que no Cristianismo há possibilidades insuspeitadas. Hoje, pratico Zen como um modo de aprofundar minha fé cristã, prática que, para muitos cristãos, é ateísta, panteísta ou sem sentido. É que eles não sabem que a sabedoria mais elevada encontra-se, não nas idéias distintas e claras, mas no silêncio tranqüilo do cérebro que vai além de todo pensamento, raciocínio, imagem ou desejo.

...Depois que me levou a conhecer os templos orientais, o budista disse que queria conhecer um templo cristão. Fiquei profundamente desconcertado, pois me dei conta de que não havia um templo cristão aonde pudesse levá-lo com esperança de que ele se sentisse edificado. Templos cristão, comparados aos orientais, se parecem mais com escritórios. Era evidente a diferença.

Nas igrejas cristãs nada se ensina sobre meditação e nem se recomenda sua prática. Contudo, no Zen (palavra que significa meditação), é o que mais se pratica e quase não há qualquer doutrina. Esse tipo de meditação, em silêncio, sem pedidos, imagens, sem palavras, nem mentais, não era novo para mim, pois eu já lera ‘A nuvem do desconhecido’ e João da Cruz, místico cristão (‘renunciai tanto aos maus quanto aos bons pensamentos’). Todo pensamento discursivo deve cessar a fim de que possa emergir, das profundezas do ser, o ‘cego impulso do amor’.

...Os mestres Zen dizem: ‘Não quero saber de seus problemas de saúde ou familiares etc.; tudo que quero saber é sobre sua prática da meditação’. Isso é o oposto da atitude dos orientadores cristãos, que indagam sobre os problemas práticos da vida, mas se esquivam da questão fundamental que é a meditação. Mas, os roshi (mestres Zen) são conhecedores profundos do funcionamento da mente humana, o que lhes permite guiar as pessoas ao satori pelo caminho da meditação.

... O roshi me perguntou: ‘Como está indo? ’... Eu: ‘Minhas pernas doem que mal as agüento’... Ele: ‘Estique-as! Mas, o que pergunto é como está indo na meditação?’... Eu: ’Tenho praticado muito; em silêncio, sento-me, sem que me ocorram palavras, pensamentos, imagens ou idéias’... ‘Está imbuído da presença de Deus?’... ‘Estou. ’... ’Muito bem! Continue assim! Acabará descobrindo que Deus irá desaparecer e somente Johnston permanecerá. ’

Isso me chocou como radical negação de Deus e de tudo que eu julgava sagrado. Eu aprendera que há momentos em que o ‘eu’ desaparece e somente Deus permanece. Disse-lhe: ‘Deus desaparecerá? Johnston é que pode desaparecer e Deus tomar seu lugar!’ O roshi respondeu com um sorriso: ‘É a mesma coisa’.

Mais tarde, refletindo, vi que ele não negava a existência de Deus; estava negando a existência do dualismo Eu-Deus, Eu-Tu. Estava dizendo que tudo é Deus, ou que tudo é Um.

...Percebi que os cristãos japoneses têm importante papel na renovação da igreja cristã: trazer a meditação para o Ocidente, e levá-la às igrejas. Mas, isso será inútil se o Cristianismo não fizer renovação completa na sua metodologia mística, precisamente no aprofundamento das práticas contemplativas.

É terrível essa concessão dada, ao Cristianismo, do privilégio da representação divina e deixar, ao budismo e hinduísmo, só algumas migalhas de profecias; contudo, descobri que budistas e hinduístas não se importam nada com isso, ao passo que, só recentemente, parece, estão sendo dissipadas as trevas da intolerância da igreja cristã referente ao assunto.

...Nas reuniões de cristãos e budistas, todos falavam de suas experiências religiosas, sempre encontrando um traço de união entre elas, o que mostra que a vida interior de budistas e cristãos tem muito em comum. Contudo, não se conseguia enunciar qualquer proposição filosófica, doutrinária ou teológica com a qual todos concordassem.



MONISMO x DUALISMO

Sugeri a um amigo budista trocarmos idéias acerca de nossas concepções sobre Deus. Ele disse: ‘Você acredita que é possível falar sobre Deus, o nada, o vazio? Isso é impossível. Você é o próprio vazio, o nada, Deus. Tudo é uma coisa só’. Essa é a concepção que perpassa todo o Zen: ‘não existe nenhum Eu e Tu, nenhum Deus e Eu. Tudo é uma coisa só’.

Certa vez, Suzuki falava sobre o silêncio, o vazio e outras coisas quando, um ouvinte, irritado, exclamou: ‘Mas, e a sociedade? E os outros?’’ ao que Suzuki, com um sorriso, observou: ‘Mas não existe nenhum outro!’ (Não existe nenhum outro, como não existe nenhum eu. Todos somos um só).

...Um roshi falou sobre a experiência que o arrebatou em êxtase jubiloso. É impossível descrever ou explicar o satori, disse ele, mas as palavras de Jesus: ‘Antes que Abraão fosse, Eu sou’ conseguiam exprimir a revelação. Era isso a perfeita prática: nenhum objeto, imagem, ou dualidade; apenas Eu, Eu Sou. Essa é a expressão perfeita do satori. A compreensão de que ‘Eu sou’ emerge das profundezas do iluminado. Esse Eu não é ‘meu eu’, feito de lembranças, expectativas e desejos. É o ‘fundamento’ do ser, a alma do universo, a voz do ‘grande Eu’ que anula toda consciência de ‘meu eu’ e se afirma como tudo que existe. Compreendi, então, que quando Jesus disse ‘Eu sou’ ele se referia, não ao ‘eu’ de um indivíduo, mas à palavra eterna (logos) pela qual todas as coisas foram criadas. Em Jesus não havia mais a personalidade humana, mas o Pai (‘Eu e o Pai somos um’ ou, como Paulo disse: ‘Não sou mais eu que vivo, mas o Cristo é que vive em mim’).

...Toda religião digna desse nome ensina a orar. Podem ser pobres em teologia e organização mas, se dão atenção à oração e à meditação, devemos respeitá-las pois tentam cumprir seu papel.

No budismo e hinduísmo, sempre houve mestres que dominaram a tal ponto a arte de meditar que podiam orientar seus discípulos pelos caminhos da mente até a um plano além do ego. O Cristianismo, como o Judaísmo, de onde ele vem, tem tradição semelhante. Lembre-se de que os discípulos pediram a Jesus: ‘Ensine-nos a orar, como João ensinou seus discípulos a orar’. Julgavam Jesus um mestre de oração, como João e outros que percorriam aquelas terras. Os fundadores da igreja também ensinavam a orar. No seu tempo, Inácio de Loiola percorria Paris para ensinar como meditar. Seu método, ‘Exercícios Espirituais’, com que pretendia levar as pessoas á iluminação, é aplicado até hoje.

Contudo, esse método, como outros, foi erradamente interpretado, vindo a ser associado ao pensamento, raciocínio, enfim, à ‘oração discursiva’, que pouco atrai o homem moderno. O homem, da era da televisão, rádio etc., está farto de palavras e mais palavras. Necessita é de um profundo silêncio interior. Isso pode ser alcançado com o Zen, que apresenta técnicas simples para levar as pessoas ao silêncio e paz interiores e até mesmo à chamada ‘contemplação’ dos cristãos, como fazia a Primitiva Igreja Cristã com suas orações.

O Zen ensina o ‘distanciamensto’ de todos os apegos, até mesmo do apego ao eu. Isso para que outra coisa possa resplandecer em seu lugar: a natureza do Buda, ou do Cristo, a iluminação que traz o fim de todo o sofrimento e de todos os conflitos que afligem o homem. Na iluminação, a fé torna-se a convicção de que Deus está no mais íntimo de nosso ser. O que de mais verdadeiro existe em nós, não é nosso eu, mas o próprio Deus. À medida que o Zen se desenvolve, o eu desaparece e Deus vive e age em nós (‘Já não sou eu que vivo, mas o Cristo é que vive em mim’); nossas ações já não são nossas, mas de Deus, que é todas as coisas. Como Paulo disse: ‘Não existem coisas tais como o judeu e o grego, o escravo e o homem livre, o homem e a mulher, pois sois um só em Cristo’. Em resumo, os cristãos tirarão proveito do Zen para aprofundar sua fé cristã pois, aqui no Japão, um número crescente de cristãos, orientais e ocidentais, estão descobrindo isso com a prática do Zen.

Seria bom para as igrejas cristãs adotarem essa metodologia e começarem novamente a ensinar a orar. O triste é que frades e freiras estão ensinando todo tipo de coisas, de ciências a literatura, e poucos ensinam a orar. Nós, ocidentais, sentimos grande necessidade disso, porque a vida contemplativa está incrivelmente subdesenvolvida nas nações desenvolvidas. Por isso nossa civilização se tornou desequilibrada a tal ponto que não consegue diferenciar um ser humano de um computador. Quando isso ocorre na dimensão contemplativa, as pessoas são facilmente tomadas pelo ódio e fazem coisas absurdas, como vemos todos os dias. É horrível ver que isso está acontecendo com sacerdotes e freiras pois, enquanto deveriam encaminhar suas vidas para o satori, que deve ter sido o motivo pelo qual foram para a vida religiosa, sentem que nada tem sentido se não se puserem a se agitar e a fazer todo tipo de trabalho ‘em nome da caridade cristã’.

Os cristãos de hoje são como são, porque as igrejas cristãs projetaram a imagem de uma religião mais ‘igrejeira’ do que mística; muito mais bingos e festas do que orações; muito palavrório teológico e pouquíssimo silêncio cerebral. Palavras, palavras, palavras; exterioridade e não interioridade! É por isso que, o Ocidente necessita, com urgência, de uma transfusão de sangue do misticismo Oriental.

Se confrontarmos misticismo e cristianismo, o pomo da discórdia será a oposição entre o monismo (tudo é UM; não há eu e Deus) e o dualismo (eu aqui, Deus lá). Foi o que disse o roshi ao afirmar que Deus desapareceria e só restaria Johnston. É o que sugeriu meu colega Zen ao afirmar não ser possível sequer falar de Deus. Era isso que queria dizer Suzuki ao afirmar que ‘não há nenhum outro’ (pois tudo é UM).

O conflito monismo x dualismo é das questões mais controvertidas para os ocidentais desde há muitos séculos, tendo sido os cristãos advertidos quanto aos perigos do panteísmo e daquelas coisas ‘horríveis’ pelas quais pessoas como Eckhart (místico cristão) foram castigadas no séc. XIV pela ‘santa inquisição’ da igreja de Roma (condenação à morte pelo fogo).

Será o monismo contrário ao Cristianismo? Não! A meu ver, o Ocidente precisa urgentemente de um toque do monismo. Os homens o procuram e ele pode ser entendido num sentido cristão. O monge trapista, Thomas Merton, escreveu:

‘Parece, aos budistas, que somos dualistas, com a noção de Deus ‘lá’ e nós ‘aqui’, uma relação de eu-tu, sujeito-objeto. Isso, é claro, tornaria impossível o satori (porque o satori só pode ser atingido quando percebemos que ‘eu e o Pai somos um’, como afirmou Jesus). Se conhecessem Eckhart saberiam que ele afirma que, quando alguém se ilumina, se confunde com Deus. Ele se refere a uma experiência que se revela em todas as formas de misticismo. O misticismo cristão, na forma de noivo e noiva (dualismo; na bíblia: ‘Os cantares’, se Salomão), nos afasta consideravelmente do satori. Penso que os cristãos podem alcançar o satori tão facilmente quanto os budistas. Mas, para isso, é necessário ir além de todas as formas, imagens, conceitos, categorias e tudo o mais (além do ego). Mas, no Cristianismo de hoje, isso é muito difícil de ser aceito’.

E´ bom saber que, aquele que obstinadamente se empenha em obter o satori, nunca consegue. É preciso meditar sem a preocupação de alcançar ou não o satori ou qualquer outra experiência. Como diz o Zen, ‘se alcançar, tudo bem; se não alcançar, tudo bem’. O Zen nada tem a ver com crenças, religiões e está além de toda classificação. O fato é que, nas experiências místicas, indiscutivelmente, desaparece a relação sujeito-objeto, Eu-Deus. E isso não é ateísmo ou negação de Deus, mas um outro modo de sentir Deus. (É, ao contrario, a afirmação de ‘só Deus existe’).

Nos últimos séculos, o Cristianismo popular trouxe a idéia de um Deus dualista e antropomórfico. Digo Cristianismo popular porque, místicos como Eckhart, João da Cruz e outros, nunca incorreram nesses erros. Mas a tendência popular é, como não pode deixar de ser devido àquilo que ainda é pregado nas igrejas cristãs, crer num Deus situado num céu distante. Isso talvez se deva à interpretação literal da Bíblia: Deus a caminhar com Adão no jardim do Éden, ou enfurecido com o povo hebreu. E muitas passagens do Velho Testamento afirmam que Deus apareceu a Moisés e a outros na forma de homem, ou de anjo falando com eles e mostrando emoções e sentimentos próprios do ser humano. Seja como for, o Cristianismo popular faz que se tenda a crer num Deus antropomórfico situado ‘lá fora, lá em cima’.

Certamente um monge budista negará a existência de tal Deus, e dirá que, em suas meditações, jamais lhe ocorreu algo que se assemelhe a esse Deus, bem como negará a possibilidade de diálogo com um ser transcendental. Irá mesmo afirmar que essas idéias implicam na destruição do Zen, que é estritamente não-dualista, opondo-se de modo inflexível a todas as modalidades da relação sujeito-objeto. É preciso que os cristãos não se esqueçam da velha verdade filosófica, afirmada pelos místicos e aperfeiçoada por Tomás de Aquino, segundo a qual Deus não está em parte alguma: ‘Deus, simplesmente, é.’

Pode-se dizer que a supressão da relação sujeito-objeto não encontra base na Bíblia. Mas, a leitura cuidadosa pode revelar sementes da teologia da negação do dualismo. Não está ali em termos de vazio, vácuo; o judaísmo não usa essa linguagem, e toda a Bíblia, em particular o Velho Testamento, foi escrita segundo padrões judaicos. Mas tem seu modo de dizer que Deus é incognoscível, que não se encontra em parte alguma. Está claro na proibição do fabrico de imagens, na afirmação de que Deus não se parece com nenhuma dessas coisas, pois ninguém viu Deus. Conta-se que quando o conquistador Pompeu invadiu o Santo dos Santos, curioso para ver o que havia ali, nada encontrou (quanta semelhança com o budismo!); e mais, traços do misticismo, parece-me, estão por todo livro de Jó e de Isaías. Por outro lado, a vida do dia-a-dia nos ensina que existem muitas coisas, ao passo que a experiência Zen faz-nos ver que só existe uma.

‘Na experiência Zen, sem imagens, pensamentos, sem relação sujeito-objeto, sem qualquer diálogo, ‘eu’ me perco, não mais existo e Deus é tudo’ (Paulo: ‘Cristo é quem vive em mim’).

Cristãos convictos, educados no dualismo, relutam com todas as forças em aceitar o não-dualismo, como se isso significasse abandonar Deus. Observei isso, com freqüência, em cristãos que praticam o Zen. Esquecem-se que Paulo afirmou: ‘Já não sou eu que vivo, mas o Cristo é que vive em mim’, como também disse Jesus: ‘Eu e o Pai somos um’. Preferem orações discursivas, o famoso ‘Pai-Nosso’, e olham com suspeita as vestes e os pés descalços que lembram o misticismo oriental.



CRISTIANISMO E ZEN

A palavra Zen significa meditação e, logo, não é restrita ao budismo. Mas, não é qualquer forma de meditação; não aquela discursiva na qual entram imagens, raciocínios, pensamentos, emoções, promessas, decisões e agradecimentos. É um estado de consciência no qual se pode ver a essência das coisas. A prática deve se estender ao longo do dia, de modo que o Zen é ‘como’ caminhar, trabalhar, comer, como a própria vida. É uma meditação que não tem objeto, (nem objetivo), uma ‘meditação vertical’, como uma descida’ pelas camadas da consciência até as profundezas da alma. É chamada, também, de trevas, vazio, silêncio, nada, ou ‘noite escura da alma’ devido à ausência, na mente, de idéias, conceitos, imagens. Nela deve-se ‘buscar’, com atenção, não os pensamentos, mas o ‘lugar’ onde estes nascem. Independe de passado e de futuro; encontramo-nos no presente, no agora eterno. Isso pode culminar, um dia, na experiência do satori. As orações cristãs são cerebrais, discursivas, cheias de palavras e conceitos, enquanto os budistas procuram, numa palavra, ‘esvaziar-se’; esvaziar o cérebro de todos os pensamentos, conceitos, trazendo-lhe completo silêncio, ignorando-o.

Só se compreende o Zen pela prática e não existe nada que substitua a experiência (‘Venha e veja por você mesmo! ’).

Os ocidentais, tão ávidos de emoções (adrenalina), acham-se longe de se interessar pela meditação, pois nesta se procura o silêncio que foge a todo tipo de emoção.

O Zen exige enorme esforço da mente, da vontade e do corpo para conseguir cessar o pensamento. Não é deixar o pensamento vagar a esmo, mas uma atenção silenciosa e intensa. Dedicar-se, com toda a atenção, ao que se está fazendo (lavando louça, caminhando, comendo etc.) é praticar o Zen, como se estivesse sentado em meditação. É preciso renunciar, não aos vícios, álcool, fumo, mas a todos os pensamentos e desejos, até àqueles sobre o amor ou sobre Deus, e a todas experiências espirituais agradáveis ou desagradáveis. Ninguém chega ‘lá’, a menos que renuncie a tudo de mal ou de bom que existe. Esse o verdadeiro misticismo: não se deleitar com nada, não repousar em nada; e longe de nós a idéia de que buscamos uma experiência emocionante.

Na Europa medieval, havia grandes correntes cristãs, como as escolas e seitas místicas e ortodoxas. Todas tinham seus próprios métodos, resíduos do primitivo cristianismo, para levar ao silêncio e à paz além das palavras, imagens, idéias e desejos. Cada uma tinha sua própria denominação para a experiência: ‘o cego impulso do amor’, cego porque livre de qualquer pensamento e imagem, aproximando-se ao vazio; ‘intenção despida de vontade’ ou ‘nudez’, indicando completo abandono de todas as coisas; o discípulo deve ‘despir-se’ de todos os pensamentos para se aproximar de Deus. João da Cruz a denomina ‘chama viva do amor’, pois lança o ser num completo esquecimento de si mesmo e desperta amor (não apego) por todos os seres, ou ‘noite escura da alma’, devido à ausência de pensamentos, e ao desamparo de se perceber próximo à iluminação, mas ainda não lá.

‘Na prática da contemplação, deixai de lado todos os sentidos e operações do intelecto (pensamentos, imaginações, lembranças, expectativas, comparações, promessas, decisões, pedidos, remorsos), tudo que é e tudo que não é, e entregai-vos ao além desconhecido tanto quanto possível, a fim de vos unirdes a Ele, que está além de todas as palavras, coisas, conhecimentos e imagens. Pois, através do contínuo e total desnudamento de vós mesmos, tudo abandonando, sereis elevados até o raio da Divina Escuridão que supera tudo o que é’.

Esta divina escuridão está em todo o misticismo, cujo representante maior é, para mim, João da Cruz. Sua contemporânea, Teresa d’Ávila, é ainda mais clara. Para ela o samadhi é alcançado no centro do castelo interior que somos nós, pois que ‘Deus ali habita’, como afirmaram Jesus e Paulo.

As Escrituras cristãs afirmam que quem ama conhece Deus e, quem não ama, o desconhece (o genuíno amor vem do conhecimento, da percepção de Deus; enquanto não temos ‘aquela’ experiência, toda virtude é forçada ou falsa, ou não é completa e o amor é apenas apego). A iluminação é como uma chama que ilumina tudo e, então, podemos ‘ver’. A ‘Nuvem do Desconhecido’ ensina: ‘Oferece tua vela à chama’, para que nossa alma se ilumine com a chama infinita do amor de Deus, o que nos trará compaixão e sabedoria, a magnífica sapientia que o Cristianismo medieval tinha em tão alta conta. Jesus: ‘Aquele que me ama (e, por isso, segue seus ensinamentos) será amado por meu Pai e receberá o Espírito (isto é, chegará à iluminação)... ’, isto é, o espírito da sabedoria é concedido aos que o seguem (pois o amam, nele crêem e seguem os seus ensinamentos) e chegam lá.

Quanto à indução ao satori, a tradição cristã era totalmente diferente. Nada de postura corporal, embora pareça ter havido interesse pela respiração na igreja oriental. Mas, esse saber se perdeu e, quanto mais nos aproximamos do Ocidente, mais cerebral e discursiva (cheia de palavras) se torna a coisa toda. As pessoas eram (primitivamente) iniciadas na meditação pela leitura das Escrituras e reflexão sobre seu conteúdo. Essa meditação discursiva evoluía, aos poucos, para a repetição de uma palavra ou som e, eventualmente, para um silêncio sem palavras e imagens. A este ponto deviam chegar todos que se dedicavam seriamente à oração.

Contudo, quando entrei para o noviciado, comecei assim: fizeram que eu lesse e relesse a Bíblia e refletisse, e remoesse, e a digerisse e rezasse. Então, como hoje, nada mais se ensinava. A tradição do primitivo cristianismo estava perdida. Não se usava iniciar as pessoas em formas supraconceituais de oração (sem conceitos e palavras), e ‘misticismo’ era palavra suspeita. Havia grande falta de orientação prática e de metodologia eficiente.

A. Huxley e outros culparam os jesuítas pelo esquecimento do misticismo na Europa medieval, pois eles defendiam uma espécie de oração que tinha mais a ver com o linguajar e a matemática do que com contemplação. O receio quanto ao misticismo era considerado salutar. Havia um espírito de ciência, racionalismo e dogmatismo, que tinha em alta conta os conceitos, imagens, idéias, rituais, cânticos, o que o tornava completamente desconcertado frente ao vazio e ao silêncio do misticismo.

Muitas ordens religiosas perderam seu misticismo e, com ele, as esperanças de iluminação. Cabe a essas ordens redescobrir suas tradições místicas, e enriquecê-las com o misticismo que o Oriente oferece.

Mas, como poderia o Zen fazer relevante a tradição cristã que data de dois mil anos? Ajudaria a acabar com os mitos (folclore, invenções, fantasias, lendas) de boa parte da teologia subjacente ao misticismo cristão. A tradição judaico-cristã é totalmente teocêntrica. Tudo está na dependência de Deus. Isto se deve, talvez, à Bíblia, na qual tudo é atribuído a Jeová. Se a chuva cai, se alguém morre, se surge a doença ou a miséria, tudo é ‘graças a Deus’. Tudo, obra de Deus (‘É o senhor que opera em nós o pensar e o fazer’).

Essa maneira de falar é legítima. Mas tem a desvantagem de ser imprópria ao homem moderno, extremamente antropocêntrico e que sente dificuldade para entender e aceitar uma terminologia que recorre incessantemente a Deus. O ocidental desmistificou a ação de Deus na esfera natural ao descobrir, pela ciência, um sem-número de causas (secundárias) para todos os fenômenos. Daí não entender a doutrina cristã que em tudo vê a ação direta de Deus e é totalmente teocêntrica.

O Zen é extremamente centrado no homem. Ele só pede para sentar e meditar e, de maneira prática, sem muita teoria, somos levados ao samadhi. Só pede que sigamos os passos do Buda para termos sua natureza (é o que o Cristianismo precisa aprender e ensinar aos fiéis; sem muita teoria e sem complicações teológicas ou filosóficas, seguir os passos do Cristo. Só assim é possível a iluminação. A terminologia sobre a oração, contemplação, amor divino ou do Cristo etc., todas essas complicações deverão ser deixadas de lado. Isso é totalmente desnecessário, pois a própria experiência é descomplicada).

Isso seria de enorme benefício para o cristianismo, particularmente para o católico que vê seus fiéis perderem a devoção que havia no passado. Todas essas coisas, se desaparecessem, não digo que devam desaparecer, seu lugar seria ocupado por uma meditação simples e ao alcance de todos.

A meditação cristã do passado destinava-se a uma elite: franciscanos, jesuítas, dominicanos, sempre restrita às ordens religiosas. O cidadão do povo ficava com o Pai-Nosso e o rosário. Mas, não tem que ser assim. O muro infame que separa o Cristianismo popular do Cristianismo monástico deve ser derrubado para que todos possam alcançar seu samadhi. Não quero dizer que aquela elite esteja chegando ao satori. Eles devem ser contemplativos, pois esse é o seu ofício. Então poderão ser de grande valor para a humanidade. Mas, se persistirem em fazer apenas o que fazem, e que o mundo pode fazer melhor, simplesmente deixarão de existir, pois não terão razão para tanto e serão de pouca importância para a sociedade. Outros tomarão seu lugar.



O CRISTO

E como fica o Cristo, no vazio e na escuridão do Zen? Os ocidentais já mostram precaução ante uma prece cristã que parece deixar de lado as palavras bíblicas, e exclui imagens ou pensamentos de Cristo. Como ficarão se lhes dissermos que devem abrir caminho para as trevas do vazio? Tudo isso deve soar muito esquisito para os ocidentais.

Mas, é possível que, com o Zen, encontremos uma maneira menos dualista de nos aproximarmos do Cristo. Devemos nos abrir a essa visão como fizeram os primitivos cristãos. Porém, o Cristianismo, que nasceu dentro das tradições judaicas, sofreu a inclusão de concepções gregas (Aristóteles) trazidas por Agostinho e outros, concepções que influenciaram a revelação judaica, e o Cristianismo cresceu imbuído dessa cultura, o que lhe foi pernicioso.

...O roshi falou da diferença entre as palavras e idéias, e a realidade (como ensina Krishnamurti, ‘a palavra não é a coisa’). As palavras são apenas como o dedo apontando a lua. Atenha-se ao dedo e você nunca verá a lua. Todas as palavras de todos os mestres, sábios, escrituras são apenas o dedo; indicam o caminho para ver a lua; mas não são a lua (Talvez por isso, dizem os sábios que devemos parar de falar e ler - são apenas dedos - sobre a experiência de Deus, mas que tentemos experimentá-la).

Mas, o ocidental adora suas palavrinhas e a elas se apega como criança ao seu brinquedo. Agarra-se a conceitos, idéias, imagens, figuras, lembranças e emoções, e não vê que essas coisas são apenas dedos apontando a lua (exterioridades). O ocidental deixou se corromper pelos meios de comunicação de massa e pela vida secular (profana), que são, ainda, apenas dedos. Nas escrituras, agarra-se a frases e versículos, correndo o risco de adorar ou de colocar, acima de tudo, imagens e conceitos sobre Deus em vez de o próprio Deus. Conceitos e imagens (imaginações) de Cristo não são o próprio Cristo. Os cristãos, de qualquer denominação, devem, pelo menos, pensar sobre a possibilidade de que o Cristo possa ser conhecido em meios às trevas, ao vazio, à uma vacuidade que transcende todo pensamento. Fitando em demasia os dedos, perderão de vista a lua.

...Outra lição: ‘Se vires o Buda, mata-o!’, frase considerada uma rejeição blasfema, ultrajante de tudo que é religioso e sagrado, e como prova de que o Zen, e mesmo o Buda, nada têm de sagrado. Mas essa frase deve ser entendida assim: ‘Se vires o Buda, o que vês não é o Buda. Portanto, mata-o!’ (esquece-o!) A explicação é que tudo que percebemos, vemos, tocamos ou ouvimos nada mais é senão o dedo apontando a lua, e não percamos tempo com isso.

Corretamente compreendida podemos repetir a frase: ‘Se vires o Cristo, mata-o, pois o que vês não é o Cristo!’ O que vemos, ouvimos, percebemos não é Deus; tudo é apenas efeito de Deus, o dedo apontando a lua (apontando Deus). ‘Livra-te do Buda enquanto objeto do pensamento; só assim realizarás a tua natureza de Buda’. Devemos deixar de lado quaisquer imagens, idéias conceitos, até mesmo relativas a Deus, a Jesus, ou ao Buda. Qualquer ação do ego, qualquer ação do cérebro impede a verdadeira percepção.

O Cristo, a que Paulo se refere, não pode ser expresso por imagens nem conceitos; é o Cristo cósmico, incognoscível, vivo desde sempre e por todo o sempre, e oculto no íntimo da alma humana. Os pobres doutores especialistas ficam todos enredados nos dedos de Paulo e não conseguem ver a lua. O que Paulo tem de mais profundo não é a si mesmo: ‘Não sou mais eu que vivo, mas o Cristo é que vive em mim’. Para ele, a vida é Cristo e a morte é Cristo; é tudo a mesma coisa. Ou, ‘é Cristo que habita em vossos corações’. A palavra ‘coração’, aqui, é tradução do grego; porém Paulo, que foi criado como judeu, devia ter em mente a palavra hebraica, que significa ‘o âmago do ser’. Para Paulo, Cristo está além dos conceitos e pensamentos (além do ego e do espaço-tempo; não está em parte alguma e está em toda a parte, como afirma o Zen). Se quisermos situá-lo em algum lugar, devemos situá-lo ali onde o pensamento se origina, pois ‘ele é nosso rosto original de antes de nosso nascimento’. Assim é que Paulo afirma que fomos escolhidos por Cristo antes da criação do mundo.

Se Cristo está oculto além da mente, não poderemos conhecê-lo pelo pensamento ou raciocínio (pois que estes são a própria mente).(Temos que ir para além da mente e isso só se consegue com a meditação). Por isso não subsiste nenhuma relação Eu-Tu. Como disse Paulo, ele está operando em nós o pensar e o fazer: ‘Não vos preocupeis com o que havereis de dizer (quando interrogados por príncipes e reis), pois eu vos darei boca e sabedoria às quais não poderão resistir’. Neste ponto, o Cristianismo primitivo e o Zen convergiam. Nenhum raciocínio, nenhuma reflexão, nenhum pensamento (mente totalmente vazia).

Se você inicia pelo dualismo (tão comum na Bíblia), como Paulo na estrada de Damasco, você não irá muito longe. Se deseja ir mais além, a algo como o Zen, deve simplificar o processo do pensamento, acabar com as palavras e conceitos, cessar as orações discursivas e fazer com que o dualismo dê lugar ao vazio, que é onde está a experiência mística. Estará, então, começando a desviar sua atenção do dedo para a lua. Não dê atenção a reflexões piedosas acerca do dedo, ou de qualquer outra coisa, pois vão desviá-lo do esplendor da lua. Aqueles que viram a lua desejaram que outros a vissem também; por isso disseram: ‘Estas coisas, eu escrevi a fim de que possam ter fé’. Esqueçamos pois o dedo e, sem ansiedade nem constrangimento, contemplemos serenamente a beleza silenciosa da lua. Assim podemos descobrir, segundo a frase magistral de Paulo, que nossa vida se acha oculta em Cristo, como este está em Deus. Nosso eu está oculto, Cristo está oculto; só Deus resplandece em todas as coisas. E isso somos nós, e estamos ‘lá’, bem vivos, como o Cristo está ‘lá’, bem vivo. Não estamos conscientes de nós próprios, nem do Cristo, pois nossa vida está oculta em Cristo e este em Deus. Eventualmente, a iluminação ocorrerá. Não uma iluminação qualquer, mas aquela para a qual todos os dedos apontam.



O KOAN

Muitos dizem que o Zen é coisa de malucos. O ‘absurdo’ Koan (problema paradoxal), é uma das razões para essa crença. É um problema apresentado à mente, todo o dia, todas as horas, até que o indivíduo alcança, de repente, o satori. A solução não é dada pela mente, pois o koan desafia toda lógica (e nossa mente está condicionada a sempre procurar raciocinar com lógica), mas por um processo de identificação. Vivenciamos a coisa, esquecemos-nos de nós mesmos e, por fim, até do koan. Por exemplo: ‘Que feições possuía teu rosto antes de teu nascimento?’ Ou: ‘Percebemos o som de duas mãos que batem uma na outra; mas, e o som de uma só mão?’ Ou: ‘MU’ (nada). Ou ainda: ‘Como retirar, sem machucar, o ganso e sem quebrar a garrafa onde ele, ali colocado desde pequenininho, se tornou grande?’ Medite acerca desses paradoxos, deste koan de um artífice divino (Deus) que proporciona ordem e harmonia para o Universo, mas que, para um segundo plano, deixa a desordem, a angústia, a contradição, a dor, enfim, tudo que é sofrimento (Mas nada disso é verdade, pois o agradável e o desagradável vêm da mesma fonte).

Hoje, compreendi que o koan tem valor inestimável. Considero-o essencial à compreensão de nossas escrituras, e um guia para a meditação baseada nos paradoxos bíblicos.

Mas, existe, nas escrituras cristãs, algo semelhante ao koan? Sim! Paulo foi um dos maiores criadores de koan, e é preciso sensibilidade para compreender aonde ele quer chegar. Ele, na Primeira Epístola aos Coríntios, deixa claro que o Cristo crucificado não passa de um louco aos olhos tanto de judeus como de gentios; mas, se nos iluminamos, ele passa a ser para nós da mais alta sabedoria. É isso o koan: algo que, à primeira vista, parece absurdo, mas que não é.

Penso que aquele que passa horas a fio olhando um crucifixo está frente a um koan. O que vê não é só o absurdo de um Deus crucificado, mas o absurdo de seu sofrimento e do sofrimento da humanidade. Não será pelo raciocínio ou pensamento que vamos entender, mas através da identificação com Ele, vivenciando seu sofrimento e o de toda a humanidade (compreender a totalidade da vida); e, eventualmente, após horas e horas de tentativas, de repente, pode ocorrer o satori, que traz o sentido daquilo que parecia não ter sentido. Em seguida vem a ‘ressurreição’ (o homem novo) e encontra-se a unidade na terrível dispersão (‘aparente’) de um Cristo sofredor.

Nesse sentido, os hesichastas, que recitam a palavra Jesus em ritmo com a respiração, podem estar recitando um koan. Jesus, o Cristo, é uma figura arquetípica, que enfeixa todas as contradições e sofrimentos de toda humanidade.

...Um estudante perguntou: ‘Como tratariam, hoje, um iluminado?’ O roshi: ‘Seria menosprezado, escarnecido e rejeitado por todos’. Essa amostra de uma tremenda estupidez, que é a própria história da humanidade insana, não será um verdadeiro koan?

Os evangelhos estão repletos de koan. Falam sobre cortar as mãos, arrancar os olhos e sobre o que não fazer. Assim: ‘Deixai que os mortos enterrem seus mortos’, ‘Aquele que quiser salvar sua vida, perdê-la-á’, ‘Eu sou a vinha, vós os sarmentos’, ‘Este é o meu corpo...’ ‘Este é meu sangue...’ ‘Antes que Abraão fosse, Eu sou’. Isso não vai além do raciocínio? Não é tão desconcertante como um koan? Não seria o Cristianismo um fantástico koan que faz a mente perplexa em meio aos paradoxos que os Evangelhos contêm? Há questões sobre as quais Jesus se pronuncia como num koan: ‘Aquele que tem ouvidos de ouvir, ouça’ É como se dissesse: ‘se não me compreendes, não posso ajudar-te’, não, pelo menos, no nível do pensamento discursivo.

Isso faz pensar que o koan torna possível, aos cristãos, uma nova abordagem das antigas escrituras. Um monge budista afirmou que os cristãos somente alcançarão a iluminação se souberem ler suas próprias escrituras, isto é, que as escrituras contêm a iluminação para aqueles que sabem lê-las.

Foram decifradas antigas mensagens; desenterrados, no deserto, dezenas de potes com manuscritos; descobriram-se manuscritos embolorados em cavernas escuras e antigas cidades soterradas, o que levou os especialistas à brilhante conclusão de que tinham sondado as profundidades da sabedoria bíblica. Mas, por mais valiosas que sejam essas descobertas, não são capazes de nos ajudar a resolver o koan que, num átimo, reluz e nos interpela nas páginas das escrituras. Já antiqüíssima doutrina, trazida por Kêmpis e outros, afirmava que, se o Espírito não se fizer ouvir dentro de nós, será impossível ouvi-lo. É por isso que afirmo que pensamento e raciocínio são incapazes de apreender uma mensagem cuja natureza somente as faculdades mais profundas e adormecidas da mente, que atuam ali onde o Espírito se faz ouvir, podem captar.

Para ler as escrituras, ponha de lado as faculdades críticas de raciocínio e argumentação. Pare de indagar se Jesus andou sobre as águas, se houve uma estrela que guiou os reis Magos, o que tudo isso significa; isso não importa tanto quanto o que Jesus ensinou. Esqueça todas as complicações e deixe que as palavras das escrituras penetrem o mais fundo do seu ser, onde elas irão, delicadamente, agir, viver, transformar.

Talvez, se, após meses de esforço, você solucionar um koan, será mais fácil solucionar muitos outros. Isso porque a s faculdades mais profundas foram despertadas e, agora, estão ativas. Então, seremos capazes de nos identificar com o koan, pela Bíblia toda. A ruptura, suscitada por determinada passagem, proporciona luz e entusiasmo para ler o resto. Na tradição Zen, o teste para a iluminação pode ser a capacidade de solucionar um koan; é o que faz o roshi a quem diz que se iluminou.

Em livro anterior, tentei provar que a suposta irracionalidade dos místicos, no fundo, é conforme a razão. (‘A sabedoria de Deus é loucura para os homens, como a sabedoria dos homens é loucura para Deus’).



O CORPO

As tradições do Oriente dão grande atenção ao corpo; dizem que é a partir dele (da arte de usar pulmões, olhos, coluna vertebral, cérebro, atenção) que começa a meditação. Dão importância ao local, um recinto limpo e arrumado, ou grandes espaços abertos.

...No Japão, em encontros de meditação, é surpreendente que, muitas vezes, não havia uma fé comum e ninguém parecia mostrar o menor interesse pelo que os outros acreditavam ou não. Nem se mencionava a palavra ‘Deus’. Tratava-se simplesmente de meditar. A melhor aproximação a Deus era dizer que a meditação devia irradiar-se até as dimensões cósmicas. Mas, quanto ao corpo, se discutia minuciosamente.

Os cristãos devem refletir mais sobre o papel do corpo. Mesmo aqueles que não crêem em Deus sabem que o corpo é uma realidade e podem, muito bem, se sentar e respirar. Eu mesmo pude observar, com minha limitada experiência, que isso realmente funciona. As pessoas que iniciam desse modo, eventualmente chegam a encontrar Deus. Não o Deus antropomórfico no qual não crêem, mas o majestoso ser em que vivemos, nos movemos e existimos. Mas, o corpo vem em primeiro lugar – Deus vem no fim.

A verdade é que a oração dos ocidentais é muito cerebral, discursiva e não vai às camadas profundas da mente onde estão as faculdades que permitem a percepção do sagrado.

... Inquirido se é possível medir o desenvolvimento dos meditadores, um roshi respondeu: ‘Não, a mente é um mistério. Tudo que podemos fazer é avaliar as repercussões fisiológicas’ (os efeitos, da meditação, no corpo, como se comprovou pela Meditação Transcendental, de Maharisshi).

O Zen não advoga meticuloso controle do corpo como a ioga. Não dá atenção aos fenômenos paranormais, pois os considera perigosos desvios do caminho. ‘Não se desvie da meta em virtude de fenômenos espirituais ou corpóreos de qualquer espécie, mesmo daqueles que você julgue maravilhosos’.

No Cristianismo, anteriormente, considerava-se o corpo muito importante. Para uma vida de meditação se deveria dominar os olhos, a respiração. A ‘Nuvem do Desconhecido’ fala, com entusiasmo, das sublimes repercussões físicas da prece contemplativa (a luz que emanava do semblante de Moisés, ao descer da montanha; Jesus, ao surgir à frente dos discípulos após orar no monte; Buda, ao sair de sob a árvore onde ocorrera seu satori; Withiman, várias vezes assim observado por amigos).

A tradição cristã tem afirmado a beleza que a meditação proveitosa irradia pelo corpo, mas não está preparada para usar o corpo como um caminho para o samadhi. Temos que aprender com o Oriente. No Bhagavad Gita (A sublime Canção da Imortalidade), descreve-se a preparação para a meditação:

‘Que você se instale num lugar tranqüilo e limpo, sobre panos, peles ou capim espalhado. Que se sente aí, refreando os impulsos do pensamento e dos sentidos, e se dedique ao exercício espiritual, para purificar o eu. Mantenha o corpo, a cabeça e o pescoço imóveis e aprumados; e fixe seu olhar (com toda a atenção) na extremidade do nariz e não em derredor. Fique aí, com seu eu em absoluta paz, sem mais medo algum, firme em seu propósito de perfeição, a mente controlada, sem pensamentos, nem os voltados para Mim; o ser inteiro integrado em Minha intenção’.

O Zen prefere lugar silencioso, junto à natureza, jardins e flores e ao ruído das águas de um rio. Comparando, nossas igrejas cristãs, em particular as de construção recente, são locais inadequados para a meditação. Nas velhas igrejas havia sempre uma atmosfera inspiradora e um calor próprios. Será que, as pessoas que constroem as igrejas modernas, alguma vez refletiram acerca da meditação ou têm idéia do que ela seja? O mesmo vale para conventos e mosteiros. Como já disse, parecem mais escritórios do que templos.

Outro ponto é a postura. Dorso aprumado, mas sem rigidez; olhos semi-cerrados pousados no chão, palmos à frente, ou na ponta do nariz ou no vão entre as sobrancelhas (ou fechados). Refestelado numa poltrona, a meditação não terá a menor profundidade. A mente deve estar tranqüila como uma chama que arde num lugar onde não sopra a menor brisa.



RESPIRAÇÃO E RITMO

Na meditação, o silêncio da mente é essencial. Obter esse silêncio é coisa complexa. Arjuna: ‘Volúvel é a mente, poderosa demais. É mais fácil domar a ventania.’ Krishna: ‘Mas, não é impossível; com esforço incessante ela pode ser colocada em xeque’. É nisso que o Oriente se distingue do Ocidente.

Uma das maneiras mais antigas de controlar a mente é pela respiração. Há um vínculo entre respiração e psiquismo. Se aflitos, excitados ou irados, a respiração torna-se curta e rápida; se calmos e serenos, concentrados ou a meditar profundamente, torna-se mais e mais lenta. No profundo da oração, podemos estar tão silenciosos a ponto de não mais sentir a respiração. Se as condições psíquicas afetam a respiração (que é fisiológica), também as condições da respiração podem contribuir para acalmar a mente (psicológica). Inicie com uma aspiração ventral profunda, retenha o ar por um instante, e exale. A respiração ventral coloca no abdômen o centro de gravidade do corpo de modo que o corpo adquire mais firmeza.

A tranqüilidade vem do processo de contar a respiração muitas vezes, de um a dez para inalar e para exalar, até que a sensação de estar sentado se torne sem esforço. Ponha, de início, total atenção na respiração ventral descontraída e lenta. Faça a respiração ir ao ventre e vir do ventre. Após alguma prática, contar apenas as exalações ou só as inalações. Por fim, apenas acompanhar a respiração (ao entrar e ao sair pelas narinas, sem ficar imaginando o caminho do ar. Essa técnica vem acalmar as emoções, banir o pensamento, o raciocínio, lembrança, e a imaginação (‘Cesse toda conversa exterior e interior’), atuantes nas camadas superficiais da mente, para abrir caminho para as camadas mais profundas, que se encontram, habitualmente, adormecidas).

Os ocidentais, no entanto, só concebem a meditação pelo uso do cérebro. No pensamento oriental a respiração está ligada à própria respiração do cosmo, de modo que regular a respiração significa regular nossa relação com a totalidade cósmica, buscando ordem e harmonia.

Na tradição judaico-cristã, a respiração é associada ao Espírito Santo, spiratio, e se estende ao universo. Daí o significado simbólico de Jesus ‘soprando’ sobre os apóstolos: ‘Recebei o Espírito Santo... ’ e também o vento que balança a casa antes da descida do espírito sobre os apóstolos. Mas, isso se perdeu com o tempo.

A meditação praticada anteriormente no cristianismo:

‘Respiramos o ar para dentro e para fora. Nisto está a vida do corpo e disso depende sua vitalidade. Assim, ao te sentares em tua cela, conduz tua mente (pela atenção) ao caminho da respiração, bem ali onde passa o ar que entra, forçando-a a penetrar até a alma junto com o ar inalado. Não a deixes, porém, ociosa nem desatenta. Deixa que essa venha a ser a tua constante ocupação e jamais a abandones. Pois, esse exercício, por manter a mente afastada dos devaneios, torna-a inexpugnável às sugestões do inimigo e a conduz ao desejo do divino amor. Além disso, irmão, esforça-te por acostumar tua mente a não regressar muito cedo, pois, a princípio, ela se sente muito só nessa segregação interior. Porém, quando ela tiver se acostumado a isso, não lhe agradará mais se lançar às coisas externas. Pois é dentro de nós que está o reino de Deus, e para aquele que o divisou dentro de si, tendo-o descoberto e conhecido através da oração pura (sem contaminação de palavras etc., isto é, pela meditação), tudo que existe do lado de fora perde sua atração e valor. Já não lhe desagrada nem enfada estar do lado de dentro’.

Na tradição a que pertence essa citação usa-se a repetição de uma palavra (ou som) em uníssono com a respiração. Afirmam que, com a inalação, o Cristo (a consciência cósmica, Deus) entra, e, com a exalação, o ‘eu’ sai, e ficamos, assim, repletos de Deus (‘Ou eu, ou Deus’).

A prática purifica a mente de todos os pensamentos, desejos e desvios, de modo que ela desce até o fundo da psique em completa nudez espiritual (totalmente livre de impurezas). Após algum tempo de prática, já não há mais nenhum ‘eu’ a repetir a palavra (ou mantra) ou som, pois o ‘eu’ se foi e atinge-se a condição de ‘não-eu’ (o vazio), característica do Zen. A repetição do som ou palavra pode repercutir tão profundamente na vida psíquica, que ela se torna quase automática e persiste nos momentos de vigília, e, conforme alguns budistas, até quando dormimos.

Acredito que a respiração associada à repetição do som ou palavra acha-se integrada no ritmo básico do corpo e que, o ritmo deste, se integra ao ritmo do Universo, o que abre passagem ao centro do ser onde desponta o satori (onde encontramos Deus). Quando os homens viviam em meio à natureza, trabalhando nos campos, e pescando nos rios e mares, é provável que tal ritmo fosse muito mais fácil de encontrar; as relações entre homem e meio ambiente eram harmoniosas. Basta recordar que os primeiros apóstolos eram pescadores e que o cristianismo está estreitamente ligado à pesca.

Na urbanização, esse ritmo e harmonia se perderam; o homem começou a ‘desafinar’ em relação à natureza. Isso acontece, hoje, de modo ainda mais grave. Temos de fazer frente, não só à poluição geral, mas, também, aos ritmos adversos dos Beatles, Rolling Stones, ruído excessivo e grande número de forças que perturbam nossa vida psíquica, bem como a audição, olfato e visão. O que dizer, então, das camadas profundas da vida psíquica, pois essas forças debilitam o ritmo profundo que há em nosso interior?

Nas cidades, o problema é crítico. A vida no campo constitui vantagem para quem deseja meditar; isso, há muito tempo, as ordens contemplativas descobriram. Mas, mesmo na cidade, a meditação é possível.

Muitos praticam meditação, mas poucos vão até ao fundo. Os roshi se referem a estes como se cursando o ‘jardim da infância’, nunca chegando à ‘graduação universitária’ (‘Muitos são os chamados; poucos os escolhidos’). Muitos se acotovelam diante da porta estreita; mas poucos têm coragem de entrar. Assusta-os o caminho estreito e desconhecido; o caminho comum e conhecido é mais simpático e os atrai.

Um budista afirmou que o maior obstáculo é o medo. Senti que se tratava de terrível verdade. A arte budista é cheia de bestas selvagens, faces assustadoras que simbolizam os temores da grande descida ao âmago do ser. À medida que descemos, muitos recalques dolorosos afloram à consciência e sofremos. Mas, se desejamos a luz, temos que ir em frente.

João da Cruz disse, no seu Cântico Espiritual: ‘Nenhuma flor apanharei; nenhuma fera temerei. ’ Não apanhar nenhuma flor significa distanciar-se completamente da beleza sedutora do mundo que pode nos impedir de buscar a verdadeira fonte da beleza e do amor. As feras (os dragões, bestas e prostitutas do Apocalipse) são os horrores que afloram à medida que avançamos na descida mística. Mas, devemos rir na cara deles; são apenas lembranças que estamos excluindo (limpando) de nossa mente.

Todos recuam ante a inexorável lei da renúncia. Devemos abrir mão de nosso próprio ‘eu’, do homem velho, vicioso e condicionado (para muitos, isso é terrível!) para encontrar um novo ‘Eu’. E, para isso, o Zen ensina: ‘Por incontáveis que sejam nossas paixões, devemos exterminá-las todas’ (Nunca pelo esforço do ego, mas pela compreensão que vem da meditação e análise das coisas do mundo). Só então a iluminação tomará conta de nós. Existe dentro de nós um imenso oceano de alegria, que pode ser liberado pela meditação e, algumas vezes, essa alegria irrompe com extraordinária força, inundando o ser com uma energia que não suspeitamos que temos. É o que se passa com o Zen, a yoga, a contemplação cristã, e podemos encontrá-la nos Atos dos Apóstolos, no movimento pentecostal, e com aqueles que foram até o fundo e descobriram aquilo que os fez suar sangue, como Jesus no Getsêmani.

Guerras e ódio, campos de concentração e torturas, crimes sexuais e assassinatos, todas as espécies de exploração do ser humano, nos espreitam a partir das regiões inconscientes da mente. A ‘noite escura da alma’, de João da Cruz, não virá dessa transição entre a perda do antigo eu e a aproximação da descoberta do novo? O papel do roshi é orientar o discípulo nesses momentos. Enquanto isso, a tradição católica deu muita importância à autoridade exterior, aos rituais, cerimônias e à hierarquia, e a igreja ficou excessivamente protocolar, ritualística, burocrática.

É provável que um ensinamento comum a todas as religiões, seja o de que a iluminação só é alcançada através da perda absoluta que é a morte (não a morte biológica, mas a morte do passado, a morte do velho homem, dos desejos, de todo o lixo que a mente guarda; é difícil nos desapegarmos dele, pois que ele somos nós mesmos). Lembre-se de Abraão: Isaac era tudo o que ele tinha; no entanto, só quando se mostrou disposto a matar seu único filho é que ouviu a espantosa promessa de que as nações da terra seriam abençoadas por toda sua descendência. Nisso consiste a iluminação.

...A principal tarefa do mestre é ajudar-nos a ‘morrer’, para que possamos ‘viver’ (a mansão da morte, de Krishnamurti).

...A igreja cristã precisa de menos teoria e de muita meditação, menos colégios e mais locais de meditação, mais mestres e menos sermões e teoria discursiva.



A ILUMINAÇÃO

É impossível falar do Zen sem falar da iluminação. Ela é o centro do budismo (e de todo o misticismo). Com a iluminação alcançamos grande sabedoria e nos livramos de todo sofrimento (Jesus: ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará! ’ Buda: ‘A iluminação á a libertação de todo sofrimento’). Embora o Zen seja exclusivamente guiado para a iluminação, defrontamo-nos com o curioso paradoxo de que nunca se deve desejá-la; seria como uma nova forma de apego que viciaria toda a busca. É a velha história do Zen: ‘esvazia-te’ de todos os apegos (emoções, expectativas, sentimentos, pensamentos, etc.), sejam maus ou bons.

Na iluminação, o que importa não é o choque súbito da experiência, mas a transformação completa que se segue, o novo homem que nasce da morte do velho (o nascer de novo, a ressurreição). Nos evangelhos, a experiência fundamental é a chamada ‘conversão’, como em João Batista: ‘Arrepende-te, pois que o reino de Deus está ao alcance de tuas mãos’. As palavras ‘conversão’ e ‘arrependimento’ perderam seu significado original. A conversão era uma transformação da mente e da alma, sendo sua expressão mais marcante encontrada nos Atos dos Apóstolos e epístolas de Paulo, onde se lê acerca do Espírito que se segue à imposição das mãos. Ela é acompanhada de uma manifestação de alegria que tem algo com a que invade o ser no satori. No quarto evangelho está: ‘Eu era cego, mas agora posso ver’, isto é, os olhos da alma se abriram e podemos contemplar a glória do Cristo (consciência cósmica): ‘Vimos sua glória... ’

Após o concílio de Trento, a igreja católica passou a encarar com suspeita certas espécies de experiências religiosas, em especial aquelas referidas pelos protestantes em suas inequívocas dimensões pentecostais.

Penso que seja verdade, no fundo, que os pentecostais sejam doidos, coisa que eu também gostaria de ser pois, se queremos a iluminação, é preciso que nos tornemos loucos (‘A sabedoria de Deus é loucura para os homens’). E é esta a lição do misticismo: após a morte do homem velho, vem a ressurreição, o homem novo, a libertação da angústia, a alegria, o novo alvorecer, a iluminação... (‘É preciso nascer de novo para entrar no reino dos céus’).

O budismo funda-se na ‘conversão’. Transforma tua mente e tua alma, pois ‘o reino de Deus está ao alcance de tuas mãos’. Se o cristão não seguir os passos do Cristo, o que teremos será algo insosso, que pode passar por Cristianismo, mas não é mais que respeitabilidade social.

Lembre-se do Sermão da Montanha: ‘Não andeis inquietos pelo que comereis, nem pelo que vestireis’ e ‘Não vale a vida mais que o alimento e o corpo mais que o vestido?’, ensinando que devemos eliminar, da mente, para melhor qualidade de vida e meditação, qualquer preocupação: pensamentos, raciocínios, decisões, planos, inquietações, intenções etc. Que eles cessem, sobretudo o medo e o cuidado quanto ao futuro. Por isso Jesus disse: ‘Não vos inquieteis pelo o dia de amanhã, porque o dia de amanhã cuidará de si mesmo. Basta a cada dia o seu mal’. (Vejam: o ‘dia de amanhã’ cuidará de si mesmo; não é você que fará isso, pois, segundo o misticismo, as escrituras, o Novo Testamento e a física moderna, nada escolhemos, nada decidimos; é o senhor que opera em nós o pensar, o querer e o fazer. Não somos donos nem de nossos pensamentos!).

Conselho do roshi: ‘Senta-te em calma absoluta, respira suavemente com longas arfadas, comprimindo o ar respirado até o tandem (logo abaixo do umbigo)’. Quando a ‘chama viva do amor’ despertar, já teremos esquecido totalmente a respiração, o raciocínio, o pensamento, nós mesmos. Todas estas coisas estarão recobertas pela ‘nuvem do desconhecido’. Agora há liberdade total.

Escreve João da Cruz:

‘Agora, já não há qualquer caminho.

Para o justo, não há qualquer caminho.

Ele mesmo é sua lei. ’

Mas não tentemos alcançar algo, não liguemos para os resultados. Nem, muito menos, busquemos o reconhecimento dos outros. Isso recorda: ‘Daí a Deus os frutos da ação’, e ‘Não saiba tua mão esquerda o que faz a direita’ (Se alcançar, tudo bem; se não alcançar, tudo bem, também). A recompensa, além da alegria e do cessar de todo sofrimento, é o amor perfeito (amor que não é apego), o agir correto. Não existe, porém, nenhuma razão para esse amor. É incondicionado e natural. Está nas Epístolas de Paulo:

‘O amor nada procura, nada quer, nada exige. É paciente, é bondoso, não tem inveja, não tem orgulho, não busca seu próprio interesse, não é arrogante nem escandaloso, não se irrita, não guarda rancor; não se alegra com a injustiça, mas se rejubila com a verdade. Tudo desculpa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta e jamais acaba’.

Esse é o amor que desperta quando a luz chega.

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PREFÁCIO, de C.G. Jung ao livro ‘Introdução ao Zen’, de Suzuki.

Tentar explicar o satori é inútil. Para alguns é a percepção da verdadeira natureza do ser; o consciente livra-se da ilusória (falsa) idéia de um ‘eu’ que tem existência própria e separada no tempo e que temos de defender contra os demais ‘eus’. Essa ilusão referente à natureza do ser é a confusão que todos fazem do ‘ego’ com o ‘ser’. Ser é a consciência total, absoluta, cósmica, o Cristo, o Buda, o reino dos céus, Deus. O ego é apenas um feixe de lembranças, ilusões, expectativas e interpretações erradas das coisas do mundo.

Quando pensamos que há algo de bom em nós, isso vem da ilusão de que possuímos alguma coisa, de que possuímos bondade, de que somos bons, mas, isso é sinal de imperfeição e insensatez. Fôssemos nós conscientes da verdade, saberíamos que não somos bons, que o bem não vem de nós. Por isso, o iluminado diz:

‘Que pobre tolo eu era! Estava na ilusão de que eu era isto ou aquilo: agora vejo que isto ou aquilo é Deus’.

O satori é uma ruptura da consciência condicionada, apenas limitada ao ego, repleta de ilusões, impurezas, de todo lixo mental ali depositado pelos costumes, tradições, culturas, suposições e crenças durante toda nossa vida. O satori faz com que a consciência adquira a forma de consciência ilimitada, infinita, de não-eu, não-ego, pura como é o ser. Jesus diz no seu sermão: ‘Bem-aventurados os pobres de espírito’, isto é, aqueles que perderam seu ego, sua ‘personalidade’, pois, agora, têm ‘a’ de Deus. Por isso, bem-aventurados. O satori é o reconhecimento de nossa face original, o homem antes de ser criatura, o reconhecimento, a percepção da verdade de que ‘eu sou’.

Exceto alguns místicos ocidentais, parece, numa visão superficial, que, no Ocidente, nada há que possa ser comparado ao satori. Da prática (da meditação) surge um novo estado de consciência que não é influenciado pelas coisas externas. Daí brota uma consciência vazia, pura, que permanece aberta a outra influência. Essa influência não será mais sentida como a própria atividade da mente, do ego, do ‘eu’, e sim como o trabalho do não-ego, do ser absoluto, que tem a consciência como seu objeto. É como se o ego fosse invadido por um sujeito (a Subjetividade Absoluta, Deus) que tivesse tomado o seu lugar, o seu controle. Como disse Paulo,

‘Não sou mais eu que vivo, mas o Cristo é que vive em mim. ’

Quando isso ocorre, aparece em cena um homem completamente transformado, um homem ‘renascido’, um ‘novo homem’.

O Zen difere de todas as outras práticas de meditação em virtude do ‘koan’ que rejeita qualquer resposta lógica. O próprio Buda é rejeitado por ser apenas uma imagem, um símbolo, um rótulo. Nada deve interferir a não ser o que realmente está lá, isto é, o homem com suas completas, mas inconscientes, suposições, ilusões, crenças, condicionamentos, dos quais, por ser inconsciente, não pode se libertar.

Na experiência maravilhosa da iluminação, a resposta parece surgir do vácuo como ‘da superfície do lago, salta, repentinamente, um peixe’. O inconsciente é a soma de todos os fatores psíquicos que estão fora da percepção consciente. Ele representa a totalidade de onde a consciência, aos poucos, arranca fragmentos. Caso a consciência seja esvaziada de todos seus conteúdos, cairá num estado de inconsciência total (um vazio, no qual, se se perseverar, nasce um estado indizível e ilimitado de consciência). Isso é obtido no Zen como regra, porque a energia do ser consciente é, pela prática, retirada dos conteúdos mentais (que sempre a iludem e onde sempre está) e se transfere para uma concepção de vazio. Aí, a concepção de imagens, pensamentos, ilusões, cessa e poderá vir a se produzir a tensão máxima que permitirá a final eclosão dos conteúdos inconscientes no consciente.

Os conteúdos mentais que afloram não são, em absoluto, inespecíficos. A experiência psiquiátrica com a loucura mostra que existem relações peculiares entre os conteúdos do inconsciente e as imagens e delírios que afloram ao consciente. São as mesmas relações que existem entre os sonhos e a consciência comum em todos os homens ditos ‘normais’. Ali está um ‘quarto de despejo’, de segredos inconfessáveis semi-esquecidos. O inconsciente é a matriz de todas as concepções metafísicas, mitológicas e filosóficas, de todas as idéias acerca da vida que estão baseadas em premissas psicológicas (suposições, crenças). Cada invasão do consciente no inconsciente é uma resposta a uma condição definida do consciente, e esta resposta vem da totalidade das idéias-possibilidades que estão armazenadas no inconsciente. A divisão em unidades, a fragmentação dessa totalidade, é produzida pela consciência localizada (a consciência individual, condicionada), pois essa é sua natureza.

A reação conseqüente ao satori sempre tem um caráter total, pois reflete uma natureza que não foi dividida por qualquer consciência discriminativa; é, agora, uma consciência indivisa, integral, absoluta. Por isso seu efeito é avassalador. É uma resposta inesperada, total e completamente esclarecedora desde o momento em que o consciente se encontra num beco sem saída, em que não encontra resposta alguma para suas perguntas mais profundas.

Quando, após dura prática e enérgica destruição da compreensão racional, lógica, o devoto Zen recebe uma resposta da natureza - a única resposta verdadeira -, tudo que foi dito sobre o satori poderá ser compreendido. Cada um verá, por si mesmo, que são a simplicidade e a naturalidade da resposta que chocam; que envolvemos a verdade simples e pura, com a construção, sobre e em torno dela, de uma vasta estrutura de suposições, ilusões e crenças que, agora, são destruídas totalmente.

Embora o valor imenso do Zen para a compreensão do processo religioso transformador, sua prática entre os ocidentais é muito problemática. No Ocidente não existe uma educação mental (cultural) para o Zen. Quem, dentre os ocidentais, confiará nas atitudes incompreensíveis de um roshi (mestre zen)? Isso só é encontrado no Oriente. Quem poderá crer numa transformação ilimitada da mente humana e está disposto, para isso, a sacrificar anos de vida no trabalho da busca? No Ocidente houve quem se submetesse a tudo isso para alcançar o satori, mas se mantém em silêncio, não por timidez, mas por saber que é inútil qualquer tentativa de transmitir a experiência aos outros (‘coisas inefáveis’, como disse Paulo).

Em nossa civilização ocidental nada há que incentive essas aspirações, nem mesmo a igreja cristã, que se julga a única guardiã dos valores religiosos. O único movimento dentro da civilização ocidental que tem, ou deveria ter, algum entendimento dessas tentativas é a psicoterapia. Não é por acaso que um psicoterapeuta está escrevendo este prefácio.

O psicoterapeuta, seriamente interessado no resultado de sua terapia, não pode ficar insensível quando vê o objetivo do método oriental de cura psíquica. Seu objetivo é ‘reconstruir o todo’ em face da fragmentação produzida pelo consciente racional. No Ocidente, nessa luta de cerca de dois mil anos, foram desenvolvidos métodos e doutrinas que simplesmente obscurecem as tentativas dos ocidentais a esse respeito. Nossas tentativas têm, com poucas exceções, descambado para a magia e cultos dos mistérios, entre os quais, forçosamente, está o Cristianismo. A igreja, com seus dogmas e fantasias, embaraçou seus fiéis num mundo de crenças sem nexo e imagens confusas. Não é a boa intenção, a imitação da vida dos ‘santos’, nem as acrobacias intelectuais (raciocínio, imaginação), que conduzem à reconstrução do todo (e, sim, a cessação do ego).

Se o homem for escravo de sua crença quase biológica, sempre tentará reduzir o que observa a algo banal, trazendo suas experiências até a um denominador racional que só agrada indivíduos que se satisfazem com ilusões. Se o psicoterapeuta reflete um pouco a esse respeito, poderá entender como são vazias, sem importância e contrárias à vida, todas as reduções racionalísticas que versam sobre algo que está vivo e em desenvolvimento. E poderá ter idéia do que significa ‘abrir as portas pelas quais alguém poderá escapar satisfeito e completo’ (João da Cruz?). (Jesus: ‘... tudo mais virá por acréscimo’ e ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’).

Não quero dar conselhos, mas, quando os ocidentais começam a falar do Zen, considero meu dever mostrar onde está a entrada para o caminho que conduz ao satori. E quais as dificuldades que juncam esse caminho, somente trilhado por uns poucos grandes homens, que são como faróis, numa alta montanha, brilhando do enevoado futuro.

Para uma experiência completa não há nada mais barato que o Todo. Para isso é preciso uma expansão indefinida da consciência. Não existem condições fáceis, nem substitutivos. O Zen mostra quanto significa, para o Oriente, o ‘tornar-se integral’, o tornar-se um Todo, uma mente só, indivisa.

A preocupação com os enigmas do Zen pode, ou fazer o ocidental sem força de vontade desistir, ou dar-lhe óculos para sua miopia, de modo que, através da escuridão, possa ter, ao menos, um vislumbre do mundo da experiência mística. O Zen não tem complicadas técnicas como as da yoga, que dão ao ocidental, falsas esperanças de que a luz pode ser conquistada pelo ato de sentar e respirar. Ao contrário, exige inteligência e força de vontade, como o exigem todas as grandes coisas que desejamos tornar reais.

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O CAMINHO DIRETO, de Murillo Nunes de Azevedo:

Não se pode explicar o Zen por palavras. Quando Bodhidharma, introdutor do budismo, chegou à China, o imperador Wu lhe perguntou: ‘Construí um sem número de templos e mosteiros, nos quais sustento grande número de monges; copiei e traduzi enormes quantidades de textos sagrados do Buda. Com tudo isso que fiz, qual é o meu mérito?’ O sábio respondeu: ‘Nenhum, Majestade!’... ‘Então, ensine-me qual o supremo princípio do budismo’... ‘Um vasto vazio.’...O imperador, chocado com as respostas, quis desarmar o sábio e perguntou: ‘Quem é, então, que está sentado diante de mim neste instante?’... Resposta do sábio: ‘Não tenho a menor idéia. ’ (Isto é uma realidade que, parece, os homens não querem ver; ela os incomoda. A ignorância do homem é total. Nada sabemos de nada: porque estamos aqui? O que somos? O que é o ‘eu’? Nada! E quanto a méritos? O que o imperador fez foi apenas trazer paz ou satisfação àqueles que se interessavam pelo conhecimento do budismo. Mas, quanto ao seu mérito para a percepção da verdade, nada lhe foi acrescentado. Essa percepção independe das boas obras. Como disse Paulo: ‘Não é por nossas obras que somos salvos, para que não nos vangloriemos, mas pela graça de Deus’. Essa é a visão do misticismo: o que nos salva é a percepção do divino, que se pode atingir pela meditação).

Todo pensamento de Bodhidharma está neste pequeno trecho:

‘Há uma transmissão fora das escrituras, sem depender de letras ou palavras, (ou obras) que vai à essência da mente, para que o indivíduo, por meio de uma visão clara de sua verdadeira natureza, alcance o estado de Buda’ (transmissão que pode ocorrer na meditação; então aquelas perguntas incômodas não mais terão razão de ser; tudo estará esclarecido).

O koan é um exercício destinado a ativar a circulação espiritual por meio do despertamento das faculdades mentais mais profundas. Ficar sentado, espinha ereta, sem qualquer pensamento ou fixando a atenção só numa determinada coisa, é básico para acelerar a iluminação súbita.

‘Grande é a Mente! Ela vai além do céu e das profundezas, além da velocidade da luz e além do macrocosmo. É imenso o Universo; é imensa a Energia Primordial! Contudo, a Mente abrange o Universo e gera a Energia Primordial. Por causa dela, o sol e a lua se movem, as quatro estações se sucedem e todas as coisas são geradas. ’ (isto é, a Mente é tudo).

‘Para estar no Caminho a coisa mais importante é o sentar...’ Pensar sobre os koan ou os diálogos com os instrutores pode trazer uma certa compreensão mas, no fim, seremos levados para longe do Caminho. Passar o tempo sentado, ereto, sem qualquer pensamento de posse ou de conquista, sem qualquer idéia de atingir o satori, esse é o Caminho indicado pelo Buda. Muitos recomendaram o koan e a meditação sentada. Houve alguns que alcançaram a iluminação sob o toque do koan, mas a causa principal reside no meditar sentado.

O koan serve para ativar o processo mental; equivale à corrida dos aviões na pista para que ganhem velocidade para decolar.

Um monge, ao roshi: ‘Se todas as coisas se reduzem ao vazio, este a que se reduz?’... ‘Minha língua é muito curta para vos explicar.’ ... ‘Por que ela é tão curta?’... ‘No interior e no exterior ela é da mesma natureza. ’ (não há como explicar; tem-se que sentir por si próprio; na verdade, nenhuma resposta a qualquer pergunta é completamente elucidativa; só viremos a compreender pela percepção da realidade final).

‘Minha mente não está tranqüila, mestre. Por favor, pacificai-a!’... ’ Traze-me tua mente e a pacificarei!’... ’Eu a procuro há muito tempo e não a encontro.’... ‘Pois, então, tua mente já está pacificada para sempre!’ (A busca só é terminada quando a mente estiver aquietada; quando todas suas operações cessam; então a mente estará pacificada, ‘esquecida’ e se chegará à percepção da realidade; nada mais resta a fazer).

A verdade - comprovada por numerosas experiências libertadoras - é que uma simples gargalhada, grito, choque, som, luz repentina, ou uma dor podem conseguir aquilo que anos de meditação não conseguem. Uma doutrina tão sutil por certo será mal compreendida no Ocidente, e sua popularização tem produzido uma série de deformações. Assim, pensam que o Zen apóia o uso pleno dos sentidos, o amor livre, a bebida intoxicante, viver intensamente o momento... Tiram todo o seu caráter profundo, tornando-o superficial. Mas o que o Zen pretende é acabar com todos os rótulos daquilo que está além de todos os rótulos. Podemos ser profundamente religiosos sem nunca usar a palavra ‘Deus’, que é apenas um título de algo que se nega a ser contido num mero nome. Assim, o conceito de mente, no budismo, é idêntico ao conceito de Deus, desfazendo antigo mito de que o budismo é um sistema ateu.

O Zen é uma técnica aberta a todos, visando à realização do sagrado em nós, usando um Caminho próprio, com exercícios adequados, para alcançar o âmago do nosso ser, que é onde está a verdade última. (Jesus: ‘O reino de Deus está dentro de vós’, e Paulo: ‘Vós sois o templo do Altíssimo’).



A COISA EM SI, O OBSTÁCULO.

Não podemos falar ou escrever sobre o Zen; seu espírito não é alcançado por palavras. Os pássaros cantam, o sol surge sem explicações. Assim deve ser com todas as coisas. ‘A coisa em si’ é a crença na separatividade, a barreira que corta o mundo em opostos, um centro para onde as várias ordens, camadas, graus e coisas de ordem inferior convergem. Assim surge (se convenciona pela linguagem) a noção de hierarquia. Pense no átomo, nas partículas, células, moléculas, órgãos e seres. Cada coisa é um degrau de um sistema superior. Do vírus ao homem, do grão de pó ao sol há uma hierarquia de sucessões. A caneta, o papel, eu, minha mulher na cozinha, o garoto que assobia na rua, o rádio tocando, tudo são coisas superpostas e interpretadas por nossa consciência. A noção, a crença neste ‘eu’ isolado, que escreve e sente seu mundo interior, é uma ilusão. (O ‘eu’ é apenas um feixe de memórias e de expectativas). Lembremos Krisnamurti, quando fala da flor, a flor que cada um vê de acordo com seu condicionamento, dando-lhe noções de estética, manchando-a com padrões humanos condicionados pela nossa natureza, como o cão de Pavlov ao som da campainha. A flor que vemos não é a flor em si, o silêncio do pôr de sol não é simples silêncio; há uma verdadeira nuvem (cadeia) de conceitos, lembranças, reflexos condicionados, que deformam o sol e a flor para nossa visão (dão-nos erradas interpretações daquilo que realmente ‘é’).

Wei afirma: ‘Nenhum evento é coisa alguma a não ser uma experiência psíquica. ’ (tudo que percebemos ou sentimos pelos órgãos de relacionamento com o mundo, seja o mundo exterior ou interior, é uma experiência psíquica). Uma experiência psíquica é bem caracterizada, bem delimitada. É um eterno transporte para o espaço-tempo daquilo que acabamos de ver, ouvir ou perceber, após sofrer as deformações (comparação, interpretação, reflexão, julgamento) produzidas pelo filtro (nossa mente, o ego com suas associações e lembranças) que aquilo tem de atravessar.

A visão da coisa em si não é experiência da psique, da mente localizada, da mente condicionada. O satori não pode ser alcançado por nossa psique, que é limitada. É um modo de ver as coisas como elas são, sem interpretações nem associações; é uma maneira de ver o novo, o incontaminado, o puro, o ápice, a raiz de todas as coisas e da vida. Quem teve disso, um vislumbre que seja, jamais esquecerá o seu sabor.

Muitos se revoltam com o vazio da vida. Preenchem esse vazio com jogo, bebida, drogas, TV, clube, busca de beleza, dinheiro, poder, aventuras, riscos, adrenalina e outras coisas que ajudam a esquecer, e, acima de tudo, sexo. Tudo isso mergulhado num vazio total, na desesperança, na sujeira, na fumaça. É a fuga de uma vida sem sentido. Mas o Zen leva o homem a dar sentido à vida diária, sem fugir. Os Himalaias estão dentro de nós, como estão todos os deuses, demônios, inferno, paraíso e, acima de tudo, a paz fundamental (como afirmou, também, Bhoeme). É isso que o Zen nos faz perceber.

Mergulhe! Busque o âmago do seu ser mas, antes disso, pare! Pare, por um momento, o gesto sem finalidade, o raciocínio sem controle, o remoer sem fim dos conceitos, os pensamentos e crenças sem base, as ilusões. Talvez, então, tenha a percepção profunda, que surge quando o fundo do ser se abre (o cérebro, a mente se esvazia, cessam suas operações), rompendo as camadas insuspeitas da consciência, fazendo a luz entrar. Esse parar é o começo do Zen; é se sentar pura e simplesmente. Atente para uma estátua do Buda: espinha ereta, olhos semicerrados, pernas cruzadas. Fique nessa posição, em lugar tranqüilo, meia hora, de preferência de manhã e à noite, sem pensar em nada e sem se opor aos pensamentos que vêm, vendo-os como nuvens que passam. E só. No início, sentirá dores nas pernas e costas, pensamentos teimosos, sórdidos, preocupações, dúvidas, lembranças, imagens. Mas, não dê importância a nada disso. Não espere que a iluminação surja repentinamente, nem pense nisso, nem em Deus, nem em Nirvana, que é ação pura, pensamento puro, percepção pura, sensação pura. A única maneira de andar no ‘caminho’ é ficar parado. Então podemos mergulhar na vida, viver no ‘olho’ do furacão sem fugir dele, porque, agora, compreendemos. E, tudo aquilo que sempre nos rodeou, situações e pessoas, se apresentará verdadeiramente novo, como sempre foi, mas não percebíamos porque nossas interpretações estavam erradas. A partir daí, não é preciso mais parar, nem mergulhar. Todas as coisas voltarão para onde sempre estiveram. Tudo continuará sendo o que sempre foi; somente nossa percepção do mundo, em face de nossa interpretação agora correta, será a realidade.

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‘INTRODUÇÃO AO ZEN’, de Suzuki (uma das maiores autoridades do budismo):

Entre as muitas seitas do budismo a escola Zen é a única que transmite a essência do budismo sem qualquer rito misterioso ou lições secretas. Sua experiência fundamental é a obtenção do satori. O cristão usa a prece, a mortificação, o sacrifício, como meios para alcançar tal experiência, deixando o resultado à graça divina, ao seu Deus. Mas, o budismo não reconhece um agente exterior ou sobrenatural (um Deus) nisso. O treinamento Zen é prático e sistemático, uma disciplina metódica que produz os mais benéfícos resultados de ordem moral. O misticismo desafia toda lógica que é a característica maior do pensamento ocidental. O Oriente é sintético no seu modo de pensar e raciocinar; não lhe importam particularidades e sim a percepção intuitiva do todo. Assim, a mente oriental é necessariamente vaga e indefinida, e parece não possuir conceitos que se revelem facilmente a um estranho. O Zen é provocantemente evasivo. A coisa está ali, frente aos nossos olhos; recusa-se a ser ignorada, mas quando tentamos agarrá-la, para conhecê-la melhor, ela desaparece.

Para compreender o Oriente temos de compreender o Zen. Sua quietude e silêncio não indicam preguiça ou inatividade. O silêncio não é aquele do deserto sem vegetação; é o silêncio de um ‘abismo eterno’, onde não existem quaisquer condições, contrários ou contrastes. É o silêncio de Deus, no qual há absoluta tranqüilidade, totalidade e unidade. O misticismo hindu é muito especulativo e complicado. O Zen é direto e prático. No hinduísmo há rituais extremamente complexos, elaborados sistemas de mandala, que tentam explicar o universo. As principais idéias do Zen vêm do budismo, mas o Zen abandonou sua estrutura altamente metafísica, e se tornou uma prática surpreendentemente simples e ao alcance de todos.



O QUE É O ZEN

O Zen não é filosofia, nem é fundado na lógica ou na análise. É antípoda da lógica e do modo dualista de pensar. Pode haver um elemento intelectual no Zen, pois ele é a mente total. Não impõe qualquer doutrina aos seguidores. Nisso, o Zen é caótico. O adepto pode formular conjuntos de doutrinas, mas por sua conta e para benefício próprio. Por isso não há livros sagrados nem dogmas. Qualquer ensinamento que exista no Zen vem através de nossa própria mente. Ensinamo-nos a nós mesmos; o Zen simplesmente aponta o caminho.

Todos os ensinamentos budistas, os sutras e sastras são considerados papel para limpar o lixo de nossa mente; nada mais. (ou dedos apontando para a verdade final, Deus). O Zen não é religião. Não tem Deus para cultuar, nem rito a observar, nenhum lugar futuro para onde os mortos irão e não vê na alma algo cujo bem estar deva ser procurado e cuja imortalidade é preocupação para muitos. O Zen é livre de todos esses entraves dogmáticos, religiosos e filosóficos.

Dizer que não há Deus no Zen, poderá chocar a muitos, mas o Zen não nega a existência de Deus. Ao Zen não importam nem a afirmativa, nem a negativa. Somente nele não existe o Deus imaginado pelos judeus e cristãos. O Zen não é religião. É mais um processo no qual são usados experimentos e exercícios específicos.

As imagens do Buda e Devas que encontramos na entrada dos templos, são apenas como as flores ou lanternas que enfeitam jardins. Diz o Zen: Se quiseres, reverencia uma flor e a cultua. Há tanta religião nesse ato como quando os cristãos se prostram diante dos vários santos e de Deus, aspergem água benta, ou participam da ceia do Senhor. Esses atos devocionais, considerados meritórios ou santificadores pelos religiosos, são artificialidades e exterioridades para o Zen. Parece que esta idéia viola a lei da vida moral, mas aí está a verdade do Zen. O Zen crê na pureza interna e na bondade do homem. Tudo que for a isso adicionado ou diminuído é contra seu espírito. O Zen é, pois, contra tudo aquilo que foi ou que vier a ser convencionado pelas religiões (Não esquecer que toda convenção é apenas produto da mente do homem). Mas, sua irreligião é apenas aparente. Pessoas verdadeiramente religiosas se surpreenderão ao ver que nele há muita religião, mas não nos moldes do Cristianismo ou Islamismo. O homem pode meditar sobre um assunto religioso, doutrinário ou filosófico enquanto se instrui no Zen. Mas isso é meramente incidental. A essência do Zen não está aí em absoluto.

O Zen se propõe a disciplinar a mente por si mesma, fazê-la seu próprio mestre através de uma visão introspectiva de sua própria natureza. Este aprofundar-se na natureza real da mente é o objetivo fundamental do Zen: abrir o olho mental a fim de poder ver a razão da existência (da totalidade da vida, fatos, eventos, de tudo).

Para meditar o ocidental fixa a mente em algo: a unidade de Deus, o amor infinito, a impermanência das coisas. Mas, é exatamente isso que o Zen evita. O Zen frisa fortemente a necessidade de se libertar de todos os impedimentos não naturais. A meditação ocidental é artificial; não pertence à atividade original e natural da alma. É uma coisa convencionada. Em que medita o pássaro no espaço ou o peixe nas águas? Quem deseja aprisionar seu pensamento na unidade de Deus e do homem, ou no significado da vida? Essas coisas não levam a nada; são perda de tempo, ilusões.

O Cristianismo é monoteísta, mas o Zen desafia todas as designações. Daí não existir qualquer objeto, coisa ou tema no Zen sobre o qual meditar. O Zen é como uma nuvem no céu. Nada a segura. Move-se sem nenhum por quê. Se fosse monoteísta, diria aos adeptos que meditem sobre a unidade de tudo, na qual todas as diferenças e desigualdades desaparecem sob a luz de Deus. Se fosse panteísta diria que mesmo a mais humilde das flores reflete a glória de Deus. Mas, o Zen quer a mente livre, desobstruída. A idéia de totalidade ou de unidade, ou qualquer outra idéia, não permite a liberdade original do espírito, a pureza original da mente. Mesmo o dizer ou pensar no ‘amor’ ou em ‘Deus’, implica que o Zen não está mais ali.

A meditação Zen é ‘tornar’ as coisas como elas são. O Zen penetra e se perde nessa imersão. Preces, contemplações, rituais, são, do ponto de vista Zen, meras fabricações da imaginação, elaboradas para satisfazer a mente religiosa. Isso é empilhar tijolos e mais tijolos sobre a própria cabeça sem qualquer lucro para a vida do espírito.

Dizem que o Zen é o ‘assassino da mente e do eu’; mas, o Zen não tem nenhuma mente e nenhum eu para matar, porque, na verdade, não há nenhuma mente, nenhum eu. O Zen é muito evasivo nos aspectos exteriores. Quando pensas ter capturado um relance dele, ele não está mais ali.

Hugo: ‘O caminho que sobe a Deus é o da descida ao âmago do próprio ser’, ou ‘Se buscas as coisas profundas de Deus, busca-as nas profundezas de teu próprio ser’. Quando as coisas profundas são achadas não há mais nenhum ‘eu’. O sujeito não é mais consciente de um mundo objetivo ou de si mesmo. Está perdido num imenso vazio.

A idéia básica é entrar, de maneira direta, em contato com nosso íntimo, sem imposição de qualquer coisa externa. Toda autoridade externa é rejeitada. Qualquer autoridade que o Zen possa ter vem de dentro. O Zen nada tem a ver com intermediários. Logo, todas as escrituras são apenas tentativas e provisórias. Para o Zen não há, em qualquer escritura tida por sagrada, nenhuma finalidade. Quando o Zen é compreendido completamente, a paz absoluta da mente é alcançada e o homem vive conforme deve viver (por isso, dizem os mestres: ‘Enquanto não chegamos ‘lá’, somos apenas subumanos’).

Inquirido sobre o que era o Zen, um roshi respondeu: ‘É o teu pensamento de todos os dias’. Nada tem a ver com qualquer sectarismo. O homem, de qualquer religião, cristão, muçulmano, budista, ou sem religião alguma, pode praticar o Zen do mesmo modo que peixes de qualquer espécie ou tamanho podem nadar no mesmo oceano.

‘Abandona o dualismo de sujeito-objeto. Transcende o intelecto e a razão. Se não fizeres isso nunca conhecerás a Realidade. O Zen nada tem a ver com palavras ou sutras; não requer nada; apenas que penetres diretamente no centro de teu próprio ser, onde encontrarás a luz’.

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‘Deixa que tua mente se torne um objeto da natureza, como uma pedra ou um pedaço de madeira. Quando um estado de perfeita imobilidade e inconsciência (cérebro e mente cessarem suas operações) é obtido, cessarão todas as limitações. Nenhuma idéia te perturbará, até que, de súbito, a luz brilhará no meio de imensa alegria! Então, estarás leve e livre. Tua existência estará libertada de todas as limitações. (‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’, disse Jesus). Ganhaste a visão ilimitada da verdadeira natureza das coisas. Então, verás tua verdadeira face (isto é, conhecerás a verdade). Isso virá quando te entregares por inteiro ao vazio; tudo – corpo, vida, mente, tudo que pertença ao teu ser mais íntimo. Todas os sutras, escrituras, discursos, sermões, não são mais que comunicações desse fato. Esse tesouro aguarda somente que o descubras e, uma vez ganho, ganho para sempre. ’



À pergunta: ‘Como estar sempre com o Buda?’, o roshi respondeu:

‘Não tendo perturbações na mente; sendo perfeitamente sereno (indiferente; não há o que fazer ou reclamar) em relação ao mundo objetivo. Permanecer assim, todo tempo, num vazio absoluto e calmo; esse o caminho da união com o Buda’.

‘O caminho do meio está onde não há nem meio nem lados. Quando estás escravizado ao mundo objetivo, tens um lado; quando estás com a mente perturbada, tens o outro lado. Quando nenhum dos lados existe, não há meio e, portanto, aí está o caminho do meio’.



Inquirido sobre como escapar dos grilhões da vida e da morte, o roshi respondeu: ‘Não há nem vida nem morte’.

O imperador Wu perguntou a Bodhidharma, que levou o Zen à China, qual o mais sagrado e elevado princípio do Zen. O sábio respondeu:

‘Um vasto vazio sem nada de sagrado dentro dele’.



Este é o sutra recitado nos mosteiros Zen, antes de cada refeição:

‘Assim, ó irmãos, todas as coisas têm o caráter do vazio. Não têm princípio nem fim. No vazio, não há forma, nem percepção, nem nome; nem olho, som, corpo ou mente, nem objetos... Nem conhecimento, nem ignorância, nem destruição da ignorância. Nem decadência, nem morte. Nem dor, nem origem, nem cessação da dor. Quando os impedimentos da consciência (conteúdos mentais) são removidos, o homem se torna livre de todos os medos e da mudança e goza o Nirvana total’.

O Zen é obrigado a recorrer a toda essa negação devido à nossa ignorância inata que firmemente adere à mente como roupa molhada ao corpo. Ignorância é outro nome do dualismo lógico. É um mundo de negativas que conduz a uma afirmativa mais alta e absoluta. No mundo das negativas, o corvo é preto e a neve é branca; no mundo do absoluto, o corvo não é negro, nem a neve é branca; contudo, cada um em si mesmo é branco ou negro. Por isso, nossa linguagem fracassa na exata transmissão do significado final (‘coisas inefáveis’).

Um monge, ao roshi: ‘O que diríeis se eu viesse até vós sem nada trazer?’ O roshi: ‘Colocai no chão. ’ O monge: ‘Eu disse que não traria nada, como posso colocar no chão?’ Roshi: ‘Nesse caso, levai de volta. ’ O roshi mostrava aí a inutilidade da discussão filosófica, para alcançar a meta do Zen. Mesmo a idéia de não ser ou não ter nada deve ser posta de lado. Para buscar o Buda (Deus, Cristo, iluminação), temos de renunciar ao Buda; renunciar a todas as doutrinas e crenças. É o único caminho. Enquanto estivermos falando do nada ou do absoluto, de Deus ou do Buda, estamos nos afastando cada vez mais do satori. A única maneira de saber é jogando-nos diretamente ao abismo sem fundo (vazio, meditação).

‘Só os ignorantes buscam o Buda fora de si mesmo. Procurar fora de você o Buda (ou o Cristo; são a mesma coisa) é como cavalgar o boi para procurar o boi’. (isto é, o Buda já está aí; você é o Buda).



O Zen comete absurdos e irracionalidades todo o tempo; mas isso é apenas aparente. Enquanto restar um leve traço de consciência não há Zen. Somente quando a mente está vazia de tudo, pureza ou impureza, estará absolutamente pura.

‘Como posso disciplinar a mente para alcançar a verdade?...’Não há nenhuma mente a ser disciplinada, nenhuma verdade a ser alcançada’... ’Então, porque diariamente vos reunis aos monges, para instruí-los?’... ‘Eu não tenho uma polegada de espaço, portanto onde reuniria os monges? Não possuo língua, como pois instruí-los?... ’Como dizeis uma mentira dessas na minha cara?... ‘Se não tenho língua como posso dizer uma mentira na tua cara?’... ‘Não consigo compreender vosso raciocínio’... ‘Nem eu’.

O processo lógico comum de pensamento e raciocínio, que tem sido a ruína da humanidade, é impotente para satisfazer nossas necessidades mais profundas. Assim o Zen quer que se adquira um novo ponto de vista para que se possam ver os segredos da vida e da natureza, libertando-nos da escravidão da lógica. Quando o Zen quer que experimentes a doçura do açúcar, ele o coloca direto na tua boca, pois, como se fazer entender por palavras? Qualquer explicação desperdiça tempo e energia e dificilmente satisfaz. O Zen abomina todos os meios, mesmo os intelectuais. Por isso, ele é muito prático. Aponta diretamente a vida, não fazendo sequer referência à alma ou a Deus, ou a coisa alguma que interfira ou perturbe o natural curso vital. A idéia é captar a vida como ela é, sem intermediários. Nenhuma discussão verbal ou explicação é necessária. Nenhum valor real é atribuído a palavras como Deus, Buda, Alma, Infinito, Uno. São somente palavras convencionadas (pelos homens) e, por isso, não conduzem à compreensão que buscamos. Por isso são palavras desprezadas pelo Zen. Ele não despreza Deus, Buda etc., mas as palavras com que são rotulados. Por isso, disse o mestre: ‘Limpai completamente a boca (mente) quando pronunciardes (mentalmente ou não) o nome do Buda’.

A finalidade do Zen é a aquisição de um novo ponto de vista, o satori, o olhar intuitivo (ver sem a intervenção de conhecimentos anteriores, sem a intervenção de raciocínios) na essência das coisas. É o desabrochar de um novo mundo, até então não percebido, em face da confusão (medos, ilusões, suposições, cultura etc.) da mente dualística. O mundo continua o mesmo; nós é que vamos ter uma nova concepção dele, pela nossa interpretação, agora correta.

Um monge pediu ao roshi que o instruísse. Disse o roshi: ‘Já tomaste a refeição matinal?’ O monge: ‘Sim, mestre’. O roshi respondeu: ‘Então, vai lavar tuas tigelas’ (tudo é natural, sem esforço, espontâneo).

‘Nossa vida cotidiana é o Zen’. Levanto a mão, pego um livro, ouço garotos na rua, vejo as nuvens além – em tudo isso estou praticando o Zen, desde que o faça com atenção total. Estou captando a vida assim como ela é. Nenhuma discussão verbal, nenhuma explicação. Não sei porque, e também não há necessidade de saber, mas quando o sol surge, todo mundo dança de alegria e se enche de júbilo. E é uma coisa tão natural!

Ao perguntarem a Bodhidharma quem ou o que ele era, respondeu: ‘Não sei’. Essa é a filosofia do Zen: ninguém sabe nada de nada, embora pense que sabe e responde às perguntas com muitas coisas tolas e sem significado.

Um monge se aproximava e o mestre perguntou: ‘Quem vem na minha direção?’ O monge não soube responder. Por muito tempo ponderou sobre a pergunta até que, certo dia, a resposta alvoreceu na sua mente e ele exclamou: ‘Dizer que é alguma coisa, não pode ser a resposta. É o mesmo que dizer: eu não sei’. E é isso mesmo; se analisarmos profundamente as coisas, veremos que todas as nossas respostas são condicionadas e não levam à compreensão da verdade.

Um roshi perguntou ao discípulo: ‘Que fazes aqui? O monge: ‘Nada estou fazendo’... ‘Então estás botando fora o teu tempo’... ‘Não será também botar fora o tempo, quando fazemos alguma coisa?’... ‘Dizes que não estás fazendo nada. Quem é, pois este indivíduo que nada faz?’ A resposta correta do monge foi: ‘Até o maior sábio não pode dizer.’ Não há, nessa resposta, ignorância, nem misticismo. Um fato simples é apresentado em linguagem franca e clara. Caso não o pareça ao leitor, é porque sua mente ainda não chegou ao estado que permite essa definição. Assim, o imperador Wu solicitou a um roshi que discursasse a respeito de um sutra. O roshi sentou-se solenemente no local indicado, mas não disse uma palavra. O imperador insistiu: ‘Pedi que fizésseis um discurso; porque não começais a falar?’ Um auxiliar do imperador se aproximou deste e disse: ‘O mestre já acabou de discursar’. Mais tarde, outro roshi, comentando, observou: ‘Que eloqüente sermão ele fez!’

Outro perguntou: ‘Qual é a doutrina absoluta da não-dualidade?’ O roshi ficou em silêncio. Outro mestre comentou: ‘Trovejante é, na verdade, o silêncio do roshi’.

As respostas dadas pelos roshi à questão ‘Quem é o Buda?’ são as mais variadas. ‘Limpai completamente a boca (a mente), quando pronunciardes essa palavra’. Uma das razões é que eles desejam libertar a mente de todas as escravidões possíveis às palavras, idéias, desejos etc., que nos são impostos do exterior. Ex: ‘Um catador de lixo completamente seco’, ou ‘Aqui não há estupidez’, ou ‘Três libras de linho’, respostas absurdas mas, qualquer que seja a resposta, será sempre, em última análise, incorreta, incompleta, imperfeita.

O Zen vai direto ao ponto. Não perde tempo com palavras e explicações. Suas respostas são sempre concisas e significativas; brotam espontaneamente, com naturalidade e livres de artifícios. Portanto temos de estar sempre atentos para não sermos levados pelas coisas externas se queremos ir ao âmago do Zen. O perigo sempre aparece onde o intelecto (ego) se intromete e nos ilude fazendo que consideremos o dedo como sendo a lua.

‘São as palavras a Mente?... ‘Não, as palavras são condições externas, logo não são a Mente. A Mente está nas palavras, mas não deve ser identificada com elas’... ‘Mas, então, o que é a Mente?’... ‘A Mente é informe e sem imagens, não depende nem independe das palavras. É eternamente serena e livre na sua atividade. Quando compreenderes que a Mente não é a Mente, compreenderás o que é a Mente e suas atividades. ’

Perguntaram ao roshi: ‘Fazeis qualquer esforço para serdes disciplinado na verdade?’... ‘Sim. ’... ‘Como fazeis?’... ‘Quando tenho fome, como. Quando estou cansado, descanso. ’... ‘Mas, isso é o que todo mundo faz. Então eles fazem o mesmo que vós?’... ‘Não!’... ‘Porque não?’... ‘Porque, quando eles comem, não estão apenas comendo, mas se deixam perturbar por muitos pensamentos. Quando eles descansam, não estão apenas descansando, mas pensam em mil e uma coisas. Está a razão porque não fazem como eu. ’...

Quando pediram a um roshi que os instruísse sobre o Zen, ele disse: ‘Ide amanhar a terra que, mais tarde, vos ensinarei’. Findo o trabalho, pediram ao mestre que cumprisse a promessa. Ele abriu então os braços e não disse uma palavra. Este foi seu grande sermão.



SATORI: A aquisição de um novo ponto de vista.

Este é o objetivo do Zen. Se estás habituado a pensar logicamente, de acordo com as regras do dualismo (eu-Deus, eu-tu, eu aqui-ele lá) liberta-te de todas elas e chegarás a algo parecido com o ponto de vista Zen. Esse ponto de vista é chamado de satori ou iluminação. É um olhar intuitivo (isto é, percepção clara, reta, imediata, sem necessidade da intervenção do raciocínio) ao âmago das coisas, em contraposição com a compreensão intelectual ou lógica. Satori significa o desabrochar de um novo mundo, até então despercebido em face da confusão da mente dualista.

Um monge passeava com o roshi; viram um bando de patos selvagens. O roshi perguntou: ‘O que são eles?’... ‘Patos selvagens, senhor’... ‘Onde estão? ... ‘Foram para aquele lado. ’... O roshi, imediatamente, torceu com força o nariz do monge, afirmando: ‘Dissestes que eles foram para lá, mas eles estão aqui desde o início’. (Qualquer resposta é imprecisa; o que são patos selvagens? A mente é que nos dá a ilusão de que eles ‘foram para aquele lado’; tudo não passa de nossa interpretação errada das coisas).

Um monge passara anos tentando compreender o Zen, sem descobrir-lhe os segredos. Desanimava, quando foi, em missão, a uma cidade distante, viagem que duraria meio ano, o que seria empecilho em vez de auxílio a seu estudo. Um colega resolveu ir com ele para ajudá-lo a não interromper a meditação. Certa noite, desesperado, o monge pediu ao colega que o auxiliasse na solução dos mistérios da vida. O amigo disse: ‘Há certas coisas em que não posso auxiliar de forma alguma. Essas deves compreender por ti mesmo’. O outro quis saber que coisas eram essas. O colega disse:

‘Por exemplo, quando estiveres com fome ou sede, de nada vale que eu coma ou beba. Tens de comer e beber por ti mesmo. Quando quiseres atender às necessidades de tua natureza, tens de fazer por ti mesmo, pois não poderei ser de nenhuma utilidade. Ninguém, mas somente tu é que conduzirás o teu corpo pela estrada’. (As coisas naturais somente nós mesmos podemos fazer; ninguém as fará por nós).

Esse conselho abriu a mente do monge que procurava a verdade. O que teria relampejado através de sua mente, quando o colega lhe deu aquele conselho? (Temos que chegar à verdade por nós mesmos; ninguém o fará por nós).

‘Estivestes estudando sob a orientação de um sábio. A compreensão do Zen, através desse meio, geralmente, termina numa compreensão analítica (analítica e não intuitiva), que não é de muita utilidade, mas que poderá trazer uma introspecção na verdade Zen. Quero saber vossa opinião sobre vós mesmos, antes que vossos pais vos dessem nascimento. ’ Não conseguindo responder, o monge se retirou para pesquisar as anotações que fizera dos sermões de seu mestre. Nada conseguindo, voltou ao roshi e implorou que o ensinasse. O roshi replicou: ‘Realmente não tenho nada para ensinar e, caso o tentasse, eu me tornaria objeto de ridículo. O que eu puder ensinar é meu mesmo e nunca poderia ser vosso. Seria apenas uma coisa emprestada. Nunca seria sua’. O monge, desanimado, retirou-se para longe para meditar. Certo dia alcançou o satori. Compreendeu, então, a sabedoria do roshi ao recusar ensiná-lo pois, agora sabia, que essa experiência não lhe teria ocorrido se o roshi continuasse a lhe explicar as coisas.

Nenhum roshi pode levar seus discípulos à iluminação. O satori não pode ser alcançado pela análise intelectual; nenhuma explicação ou argumento pode nos ser comunicado a não ser que o tenhamos sentido interiormente. Cada um tem de alcançá-lo por si mesmo, senão não é satori. Quando a mente do homem está amadurecida para o satori, ele tropeça com ele em qualquer lugar. Um som, uma observação ininteligível, uma flor que se abre, um acidente trivial como um tropeção, são condições para a abertura da mente ao satori. Todas as causas, todas as condições do satori se acham presentes na mente do ser humano (o Buda já está aí). Elas esperam, apenas, maturação.

‘Quando a mente está pronta, por uma razão ou outra, um pássaro voa, uma campainha toca, e retornarás à casa primitiva, reencontrarás teu ser real. Desde o começo nada o ocultava; ele estava ali diante de ti; eras tu que ‘fechavas’ os olhos ao fato. Portanto, nada há a explicar no Zen; nada que aumente teu conhecimento pois, a menos que brote de ti mesmo, nenhum conhecimento é realmente teu. E´ só uma coisa emprestada’.

O leitor dirá: ‘Após todas essas lições não estamos mais sábios. Não podes descrever melhor o satori, se é que ele existe mesmo?’ A isso, a resposta poderá ser:

‘Por melhores que sejam as explicações, não há satori ou Zen que possa ser explicado a teu intelecto. Ele é somente uma percepção interna, não a percepção da verdade de um individuo, mas a percepção da própria realidade em si mesma. O destino último do satori é em direção ao Ser, é um ‘voltar a si’. Sua conquista marca o ponto de reversão em nossa vida (o nascer de um novo homem). A conquista tem de ser completa, integral (e individual)’.



Um monge alcançou o satori. Imediatamente, pôs fogo em todas as anotações sobre um sutra, que considerava indispensáveis e levava consigo. (Como Walt Whitmam: ‘Enquanto não temos luz, não compreendemos as escrituras; quando a luz chega, elas não são mais necessárias’). Exclamou:

‘Apesar de quão vasto possa ser o conhecimento na filosofia abstrata (conhecimento intelectual, obtido pela análise), é como um fio de cabelo voando na imensidão do espaço. Apesar de quão importante possa ser nossa experiência sobre as coisas do mundo, é como uma gota de água jogada ao insondável abismo.’ (numa comparação com a percepção vinda da experiência da verdade).

As pessoas são como viajantes perdidos no deserto, sem água nem comida. Após o satori, são como monarcas absolutos. Não são mais escravos de nada e de ninguém. Estão totalmente libertos e em bem-aventurança (‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’). Desde o desabrochar da nossa mente, no nascimento, somos condicionados a responder às condições externas e internas de uma maneira lógica, analítica e conceitual. O Zen procura destruir, duma vez, esse condicionamento e reconstruir a velha estrutura numa base inteiramente nova. É evidente, portanto, que meditar em afirmações metafísicas, religiosas ou simbólicas, produtos da mente humana, não leva a nada, não desempenha qualquer papel para a aquisição da ‘luz’.

Satori é um relâmpago que traz, à consciência, uma verdade jamais suspeitada. É como um terremoto mental, ocorrendo num instante, quando o empilhamento de materiais intelectuais e demonstrativos chegou ao limite da estabilidade; tudo desaba e o céu se abre (é totalmente natural. Quando o ponto de congelamento é alcançado, a água, de súbito, se transforma em gelo). É um renascimento, religiosamente falando. Intelectualmente, é a aquisição de um novo ponto de vista. O mundo aparece-nos vestido numa roupagem diferente, que cobre todos os dualismos, pois estes não passam de ilusões.

Por aí se vê que a meditação dirigida para um pensamento ou conceito fixo, não é Zen. No budismo hinaiana há o pensamento de transitoriedade; no mahaiana, o de vacuidade. Mas isso não é Zen. Neste tem de haver satori, só possível se a mente não se fixar em nada, nem transitoriedade nem vacuidade, nem Deus, Cristo, Buda. Só quando não há um traço de consciência é Zen. Todos os conceitos e palavras, raciocínios, expectativas, lembranças, bem como os termos acima, são relativos. Assim, quando pediram ao mestre que fizesse uma conferência sobre o Zen, ele não proferiu uma palavra. Levantou-se e se retirou.

O satori é o estado perfeitamente normal (não comum) da mente. As atividades mentais se fazem mais eficientes, mais pacíficas e cheias de alegria do que tudo antes experimentado (antes do satori, a mente não é normal; somos, todos, sub-humanos).



O KOAN

O Zen é a prática de treinar a mente para atingir o satori. A prática é sentar de pernas cruzadas em quietude e total entrega. É o celeiro de sabedoria, bem-aventurança, libertador de impurezas, paixões e desejos maléficos; rompe os maiores obstáculos e restrições; dá condições para libertar outros seres. Meditar significa, pois, manter a mente unida, sem divisões, integral, centrada, não a deixando vagar por outros caminhos. Quando se pratica o Zen, todos os demais aspectos têm de ser esquecidos para que a mente, gradualmente, se eleve além da turbulência das sensualidades e paixões. Por exemplo, o comer e o beber têm de ser regulados, não apreciar demasiado o sono. O corpo em posição confortável e relaxada; a respiração ritmada. A mente pode crescer por si mesma, quando se deixa a natureza alcançar seus próprios fins, mas o homem não pode esperar; tem pressa. Uma vez que o Zen surja à existência, é bem difícil abandoná-lo.

O Zen quer compartilhar, com aqueles que ainda não chegaram lá, a bem-aventurança da compreensão que alcançou (como fizeram Jesus, Buda e outros); levar à mente dos demais as maravilhas desconhecidas do satori que, pela mera intenção, jamais alcançarão. O koan, quando adequadamente usado, faz realmente desabrochar a verdade. É objetivo do koan forçá-lo a assumir uma mente inquisidora. O koan é como um fermento que faz a mente expandir-se. É um tijolo destinado a bater na porta da luz. Deve chegar aos recessos mentais onde a análise lógica não chega. É o meio de fechar todas as portas à racionalização para que se alcance um beco sem saída. Há recessos desconhecidos em nossa mente que estão além do limiar da consciência atual que temos, embora não haja nada além, nem embaixo, nem em cima. Há necessidade absoluta de praticar o Zen para nos livrarmos deles.

O koan pode fazer, pela sua ausência total de lógica, que se transcenda todos os dualismos lógicos. O olho vê e o ouvido ouve, mas é a mente que, na sua totalidade, experimenta o satori. É uma percepção nova e de alta ordem que mostra que, além do mero intelecto, há algo mais. Então podes voltar à consciência de todos os dias; já chegastes lá. ‘Se um homem sabe o que é seu bastão (ou qualquer coisa), o seu estudo do Zen terminará’. Um só koan resolvido pode abrir a mente. Os requisitos necessários são a fé e o esforço pessoal.



LOCAL E VIDA DO MONGE

Varrer, limpar, lavar louça, cozinhar, juntar lenha, arar a terra, plantar, esmolar nas vilas são seus trabalhos. Nenhum trabalho está abaixo da dignidade e o trabalho manual é considerado benéfico, não importando sua dureza ou caráter desprezível. Entre os monges, há perfeita fraternidade. Nada reclamam e se mantêm do modo que for possível. Isso é ótimo, pois a atividade muscular é remédio para a preguiça mental que pode nascer do habito da meditação e que impede o amadurecimento do satori. O corpo, mantido em atividade, conserva a mente fresca, total e alerta.

As posses do monge: umas peças de roupa, uns livros, navalha de barba, um jogo de três tigelas. Com isso, pode-se dizer, ele está perfeitamente suprido; suas necessidades são mínimas. O desejo de possuir é considerado, pelo budismo, uma das piores paixões que podem obcecar os seres humanos. Toda a miséria do mundo é causada pelo impulso universal de aquisição, pelo qual o forte tiraniza o fraco, as guerras proliferam, a inquietação social se amplia. O ideal Zen, de usar um pequeno bornal com todas as posses do monge, é seu mudo protesto contra a atual ordem de coisas da sociedade. Quando as riquezas são cobiçadas, os ricos e pobres estão sempre cruzando espadas na mais amarga inimizade.

O monge tem sua primeira refeição de madrugada (caldo de arroz e legumes); almoça às dez horas (arroz, sopa de vegetais, legumes); às dezesseis come os restos do almoço e nada mais. ‘Nunca perder, mas sempre fazer o melhor uso daquilo que nos é dado’. Na verdade, o intelecto, a imaginação e todas as disciplinas mentais, bem como os objetos físicos que nos cercam, devemos usá-los para a intensificação dos poderes latentes que todos possuímos e não para gratificação dos desejos individuais.

Os monges trabalham duramente como operários comuns e até com mais ardor. São alegres, dizem piadas e estão prontos a se auxiliarem uns aos outros. Não têm qualquer formação convencional ou literária, mas o que fazem é eficiente e prático; ‘Aprender fazendo’ é básico no Zen. E, manifestar a verdade Zen com toda sinceridade é o que importa. Tudo o mais não merece atenção. Cada um tem de penetrar até às profundezas da verdade, que não pode ser apreendida enquanto não são removidos todos os conteúdos mentais (inclusive qualquer resquício de errado e de certo), para que o indivíduo retorne à sua nudez original. Vivemos, todos nós, sob um manto de ilusões e artificialismos que encobrem a verdade.

Em alguns aspectos, essa espécie de educação monástica está fora dos tempos atuais, mas suas diretrizes principais, como a simplificação da vida, não desperdício de tempo, trabalho e auto-independência são aplicáveis em todas as terras e tempos. Significa não malbaratar os recursos naturais; fazer pleno uso econômico e moral de tudo que vem para nós, tratar a si mesmo e ao mundo da maneira mais reverente; praticar a bondade sem esperar qualquer reconhecimento. Uma criança está se afogando. Eu mergulho e a salvo. Isso é tudo que tenho a fazer. O que está feito, está feito. Ando para frente sem olhar para traz e sem pensar mais no caso. O céu continua azul e amplo como sempre. Jesus disse: ‘Não deixes que tua mão esquerda saiba o que faz a direita’. Teu auxílio deve ser feito em segredo. Essa é a ‘virtude secreta’ do budismo. Enquanto houver em nós qualquer pensamento de que alguém, Deus ou o Demônio, veja nossas ações e nos recompense por elas, o Zen dirá: ‘Ainda não és dos nossos’. Ações resultantes de tais pensamentos deixam traços e sombras. O Zen não abriga qualquer traço de orgulho, glória ou vaidade por um bem praticado. Muito menos aguarda recompensa, ainda que venha de Deus.

Lien-tzu escreve:

‘Deixei que minha mente pensasse o que quisesse e que minha boca dissesse o que quisesse sem qualquer restrição. Esqueci, a seguir, se isto ou não-isto era meu ou dos outros. Se o lucro e a perda pertenciam a mim ou aos outros. Estava completamente transmudado, por dentro e por fora. Então, o olho, a orelha, a boca, o nariz eram uma coisa só. Quando a mente está assim, a forma se dissolve e o corpo se derrete. Movia-me ao sabor do vento, como uma folha caída do galho, mas não tinha consciência se eu cavalgava o vento ou se o vento me cavalgava’.

Essa virtude é chamada de pobreza, pelos místicos:

‘A pobreza absoluta será tua quando não puderes mais lembrar se alguém te possui ou te deve algo, quando esqueceres todas as coisas como na viagem da morte’ (o morrer a cada instante, de Krishnamurti e do Zen).

No cristianismo parecemos estar demasiado conscientes de Deus; dizemos que nele vivemos, nos movemos e temos o ser. O Zen deseja destruir qualquer traço de consciência de Deus. Daí a advertência dos mestres de que passemos rápido por onde está o Buda. Toda disciplina do monge, prática e teórica, baseia-se no princípio das ‘ações sem mérito’ (deixar a Deus os frutos da ação, agir sem desejar, para si, os resultados ou o mérito da ação).

‘As sombras dos bambus movem-se sobre os degraus de pedra

como se os varressem, mas nenhum pó se levanta.

‘A lua se reflete nas profundezas do lago, mas a água não mostra qualquer traço de penetração’. (Isto é, nunca deve haver uma ‘segunda’ intenção por trás daquilo que se está fazendo).

O Zen é experiência pessoal. Não são a leitura e a instrução que formam um Zen, mas a própria vida que deve ser capturada em seu fluir.

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‘BUDISMO ZEN’, de Alan W. Watts:

A cultura religiosa, filosófica e científica ocidental, devido a seu oceano de relativismo, tão sem rumo, nada oferece sobre a arte de viver no universo Zen, no vazio, pois isso, para nós, é terrivelmente assustador, habituados como estamos a absolutos, leis e princípios aos quais nos apegamos para alcançar segurança espiritual e psicológica (embora, como afirmam os mestres, não exista, em lugar algum e em tempo algum, segurança psicológica, espiritual ou fisiológica). No entanto, em vez de sentir qualquer espécie de terror, aquele que se aventura no Zen experimenta profunda satisfação, mesmo que a situação do Zen tenha sido sempre:

‘Em cima, nem uma telha para cobrir a cabeça;

‘Em baixo, nem um palmo de terra para apoiar os pés. ’

Isso não é estranho para os cristãos, pois Jesus afirmou:

‘As raposas têm seus covis, e os pássaros do céu têm seus ninhos; mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça’



‘Aqueles que sabem não falam;

‘Aqueles que falam não sabem’.

Contudo, embora não ‘falem’, não ‘se fecham’ totalmente, pois desejam compartilhar sua compreensão (‘... mas coloquem sua luz sobre o velador para que ilumine a todos’). Mas, estão convencidos de que as palavras são absolutamente fúteis em face da cultura atual, que não permite discutir certas experiências. Usam, então, a atitude característica dos asiáticos do ‘Vem e vê por ti mesmo’ (isto é, ‘tente, experimente! Tenha sua própria experiência’. ‘Aquele que tiver olhos de ver, veja!’).



CAMINHO DA LIBERTAÇÃO

O Zen não é filosofia, religião, psicologia ou ciência. É o ‘caminho da libertação’ como o chamam. Para nós, quase todo o conhecimento é o que o Zen chamaria de convencional (convencionado, um acordo entre os homens), pois não temos a sensação de saber realmente qualquer coisa se não a pudermos representar sob a forma de palavras ou outra forma de sinais convencionados, como as anotações da matemática e da música. A tarefa da educação ocidental é tornar as pessoas aptas a viver em sociedade, levando-as a aprender e aceitar suas regras, através das quais a sociedade se mantém coesa (embora insana).

Os termos copo, árvore, flor, céu, satori, Deus são convenções. Assim, a convenção científica diz se um animal é peixe ou ofídio, e a gramatical, que experiências são coisas. Porém, as palavras chinesas permitem que, quem pensa em chinês, tenha pouca dificuldade em ver que objetos são também processos, e que nosso mundo é mais um conjunto de processos (dinâmicos) do que um conjunto de coisas (como crê a filosofia ocidental).

O convencionado ‘eu’ é constituído, principalmente, por uma história que consiste numa serie de memórias selecionadas, e se inicia no momento do parto. De acordo com o convencionado, não sou simplesmente o que agora sou. Sou também o que fui, e minha versão, convencionada, do meu passado, quase chega a parecer mais meu ‘eu’ real que aquilo que neste momento sou. O que sou parece fluido e intangível, enquanto o que fui é fixo e final. Daí decorre que, devido às convenções, eu estou mais identificado com o que já fui, com o que já não existe, do que com o que realmente sou agora.

É importante compreender que recordações e acontecimentos passados, que fazem a identificação histórica de um homem, são apenas lembranças selecionadas. Da quase infinita quantidade de acontecimentos e experiências, pelos quais passamos, alguns são escolhidos – abstraídos - como significativos, e tal significação é determinada a partir de padrões convencionais. As fotografias e imagens da televisão são exemplos do mesmo processo. A cena natural é reproduzida por pontos claros e escuros, dispostos de modo a darem a impressão de uma foto que, por muito que se assemelhe à cena original, é apenas uma reconstituição em termos de pontos, assim como palavras e pensamentos são reconstituições, em termos de sinais convencionais e abstratos, de tudo que vemos, ouvimos, sentimos, saboreamos, cheiramos, nas experiências do dia-a-dia.

Livrar-se das convenções não é expulsá-las violentamente, mas não ser por elas iludido. É estar apto a usá-las como instrumento, em vez de ser usado por elas. O Ocidente não possui qualquer instituição que corresponda a isso porque sua tradição espiritual hebraico-cristã identifica Deus com a ordem moral e lógica de todo convencionalismo que a cultura nos trouxe. Essa é uma das maiores catástrofes culturais (‘a cultura ocidental é prostituta’), porque dá excessiva autoridade à ordem social atraindo, precisamente, as revoluções contra a religião e a tradição, tão características da história ocidental...

A biologia e a fisiologia, por exemplo, são tipos de conhecimentos que representam o mundo real através de categorias abstratas específicas. Medem e classificam o mundo de acordo com o uso particular que dele querem fazer, tal como um fazendeiro vê a terra em termos de hectares, um empreiteiro em termos de caminhões ou toneladas de terra, um agrônomo em termos de composição química.

Assim, para entendermos o Zen, devemos estar preparados para admitir a possibilidade de encarar o mundo de um modo diferente do convencional, diferente do conteúdo das camadas superficiais da nossa consciência, que só apreendem a realidade sob a forma de um pensamento de cada vez. O Zen liberta a mente humana dessa falsa identificação com o ego abstrato, dando-nos um enfoque totalmente diferente daquele a que estamos habituados pelas convenções.



Nossas decisões repousam fundamentalmente sobre nossa capacidade de ‘sentir’ a situação; portanto, agimos por ‘palpite’ ou ‘visão’ que temos das coisas que não sabemos o que são. Os resultados são melhores se não tentamos interferir, se deixamos que a mente trabalhe espontaneamente, ‘por si’. ‘O princípio do Tao, como o do Zen, é a espontaneidade’. Esse é um dos princípios mais importantes, o ‘processo’, o movimento natural do fluir da vida.

‘Quando o homem superior ouve falar do Tao,

‘Faz o possível para praticá-lo.

‘Quando o homem médio ouve falar do Tao,

‘Umas vezes o guarda, outras vezes o perde.

‘Quando o homem inferior ouve falar do Tao,

‘Ri dele em altas gargalhadas.

‘Se não ri, não é o Tao’.

Isso porque é impossível apreciar o que o Zen significa, sem passar a ser, num sentido especial, estúpido ou louco. Assim, falou Lao-tzu:

‘As pessoas em geral parecem tão felizes como se estivessem numa festa. Só eu estou tranqüilo e, sem fazer sinais, como uma criança ainda incapaz de sorrir; desamparado como se não tivesse casa para onde ir. Todos os outros têm mais que o suficiente e só eu pareço ter carências. Talvez minha mente seja como a mente de um louco. Os vulgares são brilhantes e só eu pareço enfadonho. Os vulgares são sensíveis a tudo e só eu pareço insensível. Sou negligente como se fosse confuso; sigo como se nada me prendesse. As pessoas em geral têm todas algo que fazer e só eu pareço pouco prático e desajeitado. Só eu sou diferente dos demais. Mas (isso tudo é porque) dou valor em procurar alimento na Mãe (Tao, Zen)’, e Chuang-tzu:

‘O homem perfeito usa a sua mente como um espelho. Ele nada aprisiona e nada recusa. Recebe, mas não conserva. Vive em casa sem exercitar sua mente e executa ações sem preocupação. A noção de certo e errado, o louvor ou a censura, não o perturbam. Quando em qualquer parte todas as pessoas se divertem, aí está a felicidade para ele. Pesaroso no aspecto, parece uma criança que perdeu a mãe; parecendo estúpido, anda ao acaso como alguém que se perdeu no caminho. Tem muito suprimento, mas não sabe de onde lhe vem. Bebe e come o estritamente necessário e não sabe de onde vem o alimento’.

Lao-tzu:

‘Suprime a sagacidade; abandona o saber, e o povo terá centuplicado benefício. Suprime a ‘humanidade’; abandona a justiça, e o povo terá de novo amor pelo semelhante. Suprime a esperteza, abandona o utilitário, e não haverá ladrões e salteadores... Torna-te desafetado, estima a sinceridade, minimiza o que é pessoal, reduz os desejos’.

A idéia não é reduzir a mente humana a uma imbecil vacuidade, mas trazer de novo à cena sua inata e espontânea inteligência, usando-a sem a forçar.

Lao-chang:

‘Deixei que a mente pensasse o que lhe aprouvesse, e ela deixou de se preocupar com o certo e com o errado; deixei que minha boca pronunciasse o que quisesse, e ela deixou de falar em lucros e perdas. Ao fim de anos, minha mente soltou as rédeas às suas reflexões e minha boca deu passagem ao seu discurso. De certo e de errado, de lucros e perdas, não tinha eu conhecimento tanto ao que a mim se referia como ao que se referia aos outros. O interno e o externo (tudo) tinham se fundido na unidade. Não havia distinção entre o olho e ouvido, ouvido e nariz: todos eram o mesmo... ’

Lao-tzu:

‘A virtude verdadeira não tem consciência de si própria como virtude; por isso é realmente virtude’.



Nem se pode imaginar o engenho e o poder criador, espontâneo e natural da mente humana, mas esse poder está bloqueado, pois tentamos dominá-lo com nossas interferências de métodos e técnicas formais, não naturais, em face de nosso condicionamento nascido dos costumes sociais, linguagem, cultura etc. Vejam que usando, com destreza, suas cem pernas ao mesmo tempo ‘a centopéia era completamente feliz, até que, brincando, um sapo disse: ‘Qual é a perna que moves primeiro?’ Isso tanto lhe trabalhou na mente, que ficou parada num sulco, pensando em qual perna mover primeiro para dali sair’.

‘Na representação, no fictício (na nossa ilusão), Deus se divide (o mundo se divide) mas, na realidade, mantém-se indiviso. Assim, quando chega o final da peça, a consciência individualizada desperta para se descobrir divina’ (e una).

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A mitologia hindu constrói o tema do drama divino numa escala fabulosa, com os efeitos colossais de tempo e espaço, os extremos de prazer e dor e de virtude e depravação. Os opostos luz e trevas, bem e mal, prazer e dor, são elementos essenciais desse drama. Pois, ‘embora Deus se identifique com a Verdade, Consciência e Bem-aventurança, o lado escuro da vida tem sua parte no drama, como qualquer drama tem o seu vilão para movimentar o jogo. O mundo convencional e relativo é, necessariamente, um mundo de opostos. Sem a escuridão, é inconcebível a luz; a ordem não tem sentido sem a desordem e o mesmo se dá com todos os opostos. ’ (bem e mal, certo e errado etc.).

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Diz Coomaraswamy:

‘Para aquele que afirma que Deus fez o mundo, a questão ‘Porque ele permitiu a existência do mal ou daquele que personifica todo o mal (o Demônio)?’ não tem, em absoluto, resposta. ’

Essa filosofia só é compreendida ao compartilhar da experiência do tipo de conhecimento não convencional, experiência chamada de autoconhecimento, auto-despertar, pois é a descoberta ‘daquilo que sou’, quando já não me identifico com qualquer definição convencional de mim mesmo. Então, ‘Eu sou Brama’ ou ‘eu e o Pai somos um’, pois o autoconhecimento é uma compreensão da nossa identidade original com Deus. Assim, a prática do caminho da libertação é um progressivo desembaraçar o ego de qualquer identificação. É compreender que não sou este corpo, estas sensações, estes pensamentos, esta consciência. A realidade de minha vida não é nenhum objeto concebível. Fundamentalmente, nem mesmo deve ser identificada com qualquer idéia, como Deus ou atman, alma ou espírito. No momento em que todas as identificações do meu ‘eu’ com qualquer objeto ou conceito cessam, brota das minhas profundezas a consciência do Buda (ou do Cristo), estado que se chama divino. Essa descoberta mostra que este mundo, que parecia ser múltiplo, é na verdade Uno, que tudo é Deus e que toda dualidade não passa de falsa interpretação nossa, ilusão, portanto.

O múltiplo mundo dos fatos, acontecimentos e dualismos é considerado maya, a ilusão que oculta a realidade do Buda. Maya vem do sânscrito matr, medir. O processo fundamental da medida é a divisão, quer seja desenhando uma linha, um círculo com o compasso, ou distribuindo grãos e líqüidos por medidas. Dizer que o mundo dos acontecimentos e fatos é maya significa que fatos e acontecimentos são termos convencionados de medida e não realidades da natureza. Logo, acontecimentos ou fatos são tão abstratos como linhas de latitude, ou como centímetros e decímetros. Tudo convenções. Considere como é impossível isolar um fato qualquer, pois um único objeto é inconcebível sem o espaço que o circunda. Uma palavra nesta folha não existe se a separarmos da folha, seu pano de fundo. Definir, estabelecer limites são atos de divisão e, portanto, de dualidade dado que assim que um limite é definido logo apresenta dois lados: esquerdo e direito, acima e em baixo, eu e você, Deus e o Diabo, espírito e matéria, bem e mal, céu e inferno, vida e morte, justo e injusto etc.

Este ponto de vista é assustador, e bastante difícil de compreender para aqueles habituados a pensar que coisas, fatos e acontecimentos são os próprios blocos que constituem o mundo, que são a mais sólida das realidades. Isso não é ver tudo como um vácuo. Aquele que compreendeu vê o mundo que nós vemos, mas não o marca, não mede, nem o divide do mesmo modo. Não o encara como real ou dividido em coisas e acontecimentos separados. Ele vê que a pele tanto pode ser encarada como aquilo que nos separa, como com aquilo que nos une (onde termina a pele, começa o resto do mundo). Assim, seu ponto de vista não é monístico. Para ele a realidade é ‘não-dual’. Unir é maya, separar é maya. Assim, maya é uma doutrina de relatividade. É dizer que fatos e acontecimentos são originados, não pela natureza, mas pela convenção humana, e que o modo como os convencionamos (ou dividimos) é fruto da variedade dos nossos pontos de vista.

É fácil verificar o caráter convencional das coisas. Regra geral, um organismo é encarado como uma única coisa, embora, sob o ponto de vista fisiológico, seja tantas coisas quantas as suas partes e órgãos, e sob o ponto de vista sociológico seja meramente parte de algo maior que se chama grupo, família, sociedade, humanidade. Essas coisas, aparentemente separadas, não existem separadas, mas apenas umas em relação com as outras. Nesse sentido, o objeto e o espaço que o circunda, a personagem e a cena, o som e o silêncio, o existente e não existente, são inseparáveis, interdependentes, ‘mutuamente originantes’ e só através de maya (ou divisão convencional que constrói ilusões) poderão ser considerados separadamente.

A forma também é maya por ser impermanente. O budismo fala do vazio ou ilusório mundo visível da natureza porque sabe da impermanência das formas. Forma é resultado do fluxo, do fluir de todas as coisas e, portanto, maya. Designamos objetos e coisas por nomes e palavras, porque são, precisamente, os substantivos e os verbos, por nós convencionados, o meio pelo qual todas as categorias abstratas e conceptuais de coisas e acontecimentos são designadas.

O uso das palavras é tão satisfatório que o homem está sempre em perigo de confundir os nomes com as coisas reais que representam, de confundir a rígida convenção com a realidade do mundo (Krishnamurti: ‘A palavra não é a coisa’). Mas, do mesmo modo que identifica a si próprio e sua vida com as rígidas definições da convenção, o homem se condena à perpétua frustração de alguém que tenta carregar água numa peneira (pois suas interpretações do mundo e de seus eventos estão sempre incorretas).

Maya é equiparado a ‘nome-e-forma’, em face da tentativa da mente de aprisionar as formas fluidas da natureza na rede das classes fixas. Mas quando se compreende que forma é vazio – no sentido específico do inapreensível (que não se pode reter, apreender) e incomensurável (que não se pode medir, pois é impermanente) – o mundo da forma é visto mais como Deus do que como maya. O mundo convencional torna-se o mundo real quando percebemos sua mutável fluidez (impermanência). Daí advém que a própria transitoriedade (impermanência) do mundo constitui o sinal da sua real identidade com a indivisível e incomensurável infinidade de Deus.

Esse pensamento de transitoriedade só é depressivo para aquele que insiste na tentativa de aprisionar mas, para aquele que abre os braços e se deixa levar na corrente fluida da mudança, para a mente que se torna ‘como uma bola flutuando no rio que desce o morro’ (entregar-se; deixar que as coisas aconteçam), a sensação de transitoriedade ou vácuo é um êxtase.

Resumindo, a doutrina maya afirma, primeiro, a impossibilidade de aprisionar o mundo real em palavras e conceitos e, segundo, o caráter fluido do mundo real, de suas formas que o pensamento tenta definir. O mundo dos fatos e acontecimentos é todo ele definido por nomes convencionados e abstratos; suas formas são, absolutamente, fluidas e nada as apreende (impermanentes; estão sempre fluindo). Há algo de ilusório até na idéia de Deus que, mesmo sendo a realidade por trás do fluxo, é apenas um conceito, tão incapaz de apreender o real como qualquer outro conceito (ou nome).



O Buda muito lutou para encontrar como escapar da escravidão à maya, do círculo vicioso do ‘apego-à-vida’. Os seus esforços foram em vão. Por mais que se concentrasse sobre a própria mente, atrás de respostas, apenas deparou com seu próprio esforço de concentração. Quando desistiu de lutar, subitamente lhe veio um estado de perfeita clareza e compreensão. Era o ‘completo acordar’, a libertação de maya, do samsara. Mas, o conteúdo dessa experiência não pode ser traduzido em palavras. (Paulo: ‘... e lá vi e ouvi coisas inefáveis’). O Buda nunca disse uma palavra sobre experiência, porém, ensinou as quatro verdades:

1) A identificação da doença do mundo: a dor, por estarmos ligados às coisas que nos fazem sofrer, e separados das coisas que nos dão prazer. A vida, como a vivemos, é sofrimento, devido à frustração que resulta de tentarmos o impossível; o mundo está sempre mudando (é impermanente) e, por isso, não conseguimos tornar duradouras as coisas que nos dão prazer.

2) A causa dessa doença: a frustração, o apego e desejo de posse, devidos à nossa ignorância ou inconsciência (consciência restrita, pequena). É o estado da mente que não acordou, hipnotizada por maya, de modo que toma o mundo dual e abstrato, das coisas e acontecimentos, pelo mundo da realidade. Vem da falta de autoconhecimento, o que nos traz uma visão ilusória. Tentar agarrar a vida é autofrustração, pois ela não passa de um fluir, de impermanência, de mudança contínua das coisas e acontecimentos. Tentar agarrá-la é ação condicionada, baseada num motivo e buscando um resultado; isso é o karma pois sempre requer uma ação posterior. O homem se envolve com o karma quando interfere com o mundo de tal modo que é obrigado a continuar com a interferência, pois a solução de um problema cria mais problemas. O homem prepara uma armadilha para o mundo e é ele quem cai nela. Essa a razão de todo o sofrimento.

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(Não tome a figura da roda do nascimento e da morte como o processo de reencarnação; esta é encarada no misticismo em sentido figurado, pois a reencarnação ocorre em todos os momentos, de modo que o indivíduo está a renascer enquanto se identifica a si próprio com um ego contínuo (mas falso) que se reencarna de novo em cada momento do tempo).

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3)O prognóstico quanto à possibilidade de cura: a possibilidade de cessar a auto-frustação vinda da tentativa de agarrar, conduta viciosa (condicionada) que gera todo sofrimento. E eis o nirvana; o cessar das ondas, redemoinhos ou círculos da mente. É ver a inutilidade de tentar agarrar a vida; é reconhecer que a vida acaba sempre por derrotar nossos esforços para controlá-la; que toda a luta humana não passa de uma tentativa de agarrar nuvens. Os redemoinhos são os pensamentos através dos quais a mente se esforça por agarrar o mundo e a si mesma. Esta terceira verdade surge da tentativa de encontrar uma solução para o problema até que, depois de buscar em todos os caminhos, a extrema futilidade do processo seja tão ‘sentida’ que este acabe por se perder, e a mente descubra seu estado natural que escapa a qualquer definição e é incomensurável e infinito. Nirvana é o estado de Buda. Ele só pode ocorrer espontaneamente (naturalmente), quando se percebe o total absurdo que é tentar agarrar a vida.

4) A prescrição do remédio: é o método pelo qual a auto-frustração é aniquilada. Traz a correta compreensão da condição humana e do mundo tal como ele é, e exige uma viva atenção ao mundo como é ‘imediatamente percebido’ (pela ação de ver, ouvir, sentir, cheirar, degustar, isto é, as ações dos sentidos, que são, no primeiro instante, atemporais e, num segundo instante, devido a associações daqueles estímulos com o que temos na memória, tornam-se condicionadas) de modo a não ser iludido por nomes ou rótulos; é pura experiência, pura compreensão, onde não há lugar para o dualismo de observador e coisa observada, sujeito e objeto.

O budismo não compartilha o ponto de vista ocidental de que existe uma lei moral, ordenada por Deus ou pela natureza, que o homem deve obedecer. Os preceitos de conduta do Buda (não tirar a vida, não nos apoderarmos do que não nos é dado, não explorar as paixões, não mentir e não se intoxicar) são regras voluntariamente aceitas para remover os obstáculos à clareza da compreensão (para a meditação, como também devem ser os mandamentos e as regras morais de qualquer religião).

O completo recolhimento é estar, sempre, no momento presente, ciente ou atento às próprias sensações, sentimentos e pensamentos – sem propósito nem julgamento. É uma total clareza e presença da mente, ‘ativamente passiva’, enquanto os pensamentos vêm e vão como reflexos num espelho: nada é ali preso, agarrado, refletido, exceto aquilo que é.

‘Andando, parado, sentado ou deitado, ele compreende o que está fazendo, de modo que, embora seu corpo esteja empenhado na ação, ele compreende e está atento a tudo que faz tal como é. Ao ir ou vir, ao olhar em frente ou derredor, ao dobrar ou estender o braço, em qualquer ação, ele age com completa compreensão (atenção) daquilo que está fazendo’.

Através dessa compreensão vê-se que a diferença entre observador e coisa observada, sujeito e objeto, é puramente ilusão. Não existe a mente por um lado e suas experiências por outro. Existe apenas um processo de experimentar em que nada há para ser agarrado como objeto, e ninguém, como sujeito, para agarrar. Visto assim, o processo de experimentar deixa de se apegar a si próprio. Um pensamento segue outro sem interrupção, sem necessidade de se dividir para tornar-se seu próprio objeto.

‘Onde há um objeto, surge um pensamento. Será o objeto uma coisa e o pensamento outra? Não; o que o objeto é, é-o também o pensamento. Se fossem coisas diferentes, haveria um duplo estado de pensamento. Logo, o próprio objeto é apenas pensamento. Mas o pensamento pode examinar outro pensamento? Não; tal como uma espada não pode cortar-se a si mesma, o pensamento não pode ver-se a si mesmo. ’

Esta não dualidade da mente, que não se encontra mais dividida contra si mesma, é samadhi, e, graças ao cessar das vãs tentativas da mente para agarrar-se a si própria, é um estado de perfeita paz. Não é a quietude de uma total inatividade; assim que a mente volta ao seu estado natural, o samadhi mantém-se em todas as situações, ‘andando, parado, sentado e deitado’.

Meditação é um estado de recolhimento, descrito como estado de atenção total unificada, sem qualquer desvio, unidirecional. Atenção toda direcionada para o momento presente pois, na perfeita atenção, não existe passado nem futuro; existe apenas este momento, o Eterno Presente, o Agora Eterno, a Eternidade.

‘Um Buda é aquele que vê o que há para ver; não se prende ao que é visto, ao processo de ver, ou àquele que vê’. .................................

‘Apenas o sofrer existe, ninguém que sofra;

‘O ato existe, não quem o tenha praticado;

‘Nirvana é, sem ninguém que o procure;

‘Há o Caminho, mas não quem o percorra.’

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Quando inquirido sobre o nirvana, a origem de tudo ou a realidade, o Buda ficava em silêncio; dizia que tais perguntas eram irrelevantes e não conduziam à libertação. Nirvana é o estado em que a mente está liberta de todos os conceitos; cessou, completamente, a tentativa de agarrar a realidade, pela compreensão de que isso é impossível. Sendo o ego apenas convenção, é insensato pensar no nirvana como um estado a ser atingido por qualquer ser ou ego, pois estes não existem.

‘Todos os seres sensíveis são levados por mim a atingir a libertação sem limites do nirvana. Mas, mesmo que incomensuráveis quantidades de seres tiverem sido assim libertados, em verdade nenhum ser terá sido libertado! Por quê? Porque não existe nenhum ego, nenhum ser, ou indivíduo separado dos outros (o ego, o indivíduo, não passa de convenções humanas, ilusões, portanto; e não existe alcançar o nirvana porque tudo já é nirvana, como não existe alcançar Deus porque tudo é Deus).

Nossa escravidão ao samsara é mera aparência; já estamos no nirvana. Assim, buscar o nirvana é querer encontrar aquilo que nunca se perdeu.

‘Se o meu agarrar à vida me envolve num círculo vicioso, como poderei aprender a não agarrar? Como poderei tentar soltar, se tentar é precisamente não soltar?’

Logo, tentar não agarrar é o mesmo que agarrar já que seu motivo é o mesmo – meu desejo de me salvar de uma dificuldade. Não posso ver-me livre desse desejo porque ele é precisamente o mesmo desejo que o desejo de me ver livre dele. Este é problema familiar a todos, o ‘entre a espada e a parede’ psicológico: criarmos um problema por tentar resolvê-lo, nos preocuparmos porque nos preocupamos, termos medo de ter medo. Queremos nos agarrar às concepções que construímos acerca das coisas, as quais julgamos a realidade, como ideais, crenças, religiões, esperanças supremas e ambições de toda espécie, que nossa mente procura e às quais se agarra para sua segurança física ou espiritual (psicológica) (segurança que não existe em nenhum lugar e em tempo algum).

O Zen mostra que nenhuma coisa tem natureza própria ou é independente das demais (como também mostra a física quântica). Nada do universo (coisa, ser, fato, acontecimento) se sustenta por si próprio. Por isso, é absurdo singularizar qualquer coisa como um ideal a ser atingido. Porque, o que é singular apenas existe em relação ao seu próprio oposto, pois o que é se define pelo que não é, o prazer pela dor, a escuridão pela luz, o movimento pela imobilidade. Logo, o nirvana implica a existência do samsara, a busca do despertar implica que se está no estado de dormir e de corrupção pelo ilusório. Em outras palavras: quando se faz do nirvana um objeto do desejo, ele se torna um objeto de samsara.

‘O que é que significa não-dualidade? Que luz e sombra, comprido e curto, preto e branco, vida e morte, bem e mal, justo e injusto são termos relativos e não independentes um do outro, tal como nirvana e samsara; todas as coisas são não-duas. Não há nirvana exceto onde há samsara; não há samsara exceto onde há nirvana, porque a condição da existência não é de caráter mutuamente exclusivo. Todas as coisas são não-duas. ’

Assim, aquilo que nos parece ser samsara é na realidade nirvana, e o que parece ser o mundo das formas e objetos é o mundo do vazio. Daí:

‘A forma não é diferente do vazio, o vazio não é diferente da forma. A forma é precisamente o vazio; o vazio é precisamente a forma’.

Isso não significa que o acordar faz que o mundo da forma desapareça, mas que vamos interpretá-lo como a realidade que é. É necessário ‘sentir nos ossos’ que nada existe para ser alcançado. Esse sentir só a meditação traz. Aí esta toda bem-aventurança. A tranqüilidade e a alegria de perceber isso nos libertam de todos os sofrimentos, das frustrações de tentar agarrar o que não pode ser agarrado. Assim, todos os atos intencionais - desejos, estratégias, planos, ideais – são em vão. No universo não há nada para se agarrar e não há ninguém que possa agarrar. E esse que busca, que vê, sabe e deseja, o sujeito interior, apenas tem existência em relação aos objetos efêmeros da sua busca. Ele vê que agarrar o mundo é também o apertar o laço no seu próprio pescoço, aquilo que o priva daquela vida que ele tanto deseja atingir. E não há saída para isso, um modo de deixar de agarrar que ele possa vir a fazer por seu próprio esforço, por uma decisão de sua vontade (a única saída é o esquecimento do eu, que a meditação pode proporcionar).

Chega um momento que a consciência da armadilha sem saída, na qual somos o caçador e a caça (a mente que busca a mente), atinge o ponto de ruptura; amadurece e, de repente, dá uma reviravolta no mais profundo da consciência. O casulo, em que o bicho da seda se aprisionou, abre-se e ele voa feito borboleta. Não há mais constrangimento ou angústia. Artifícios, ideais, ambições e autoconciliações não são mais necessários porque, agora, ele vive espontaneamente sem tentar ser espontâneo. Vê o mundo sem as ilusões e divisões das conceituações, símbolos e interpretações falsas. Percebe o concreto e real como diferente do abstrato e conceptual.

Nada temos a fazer para essa transformação, já que temos a natureza de Buda. É só percebermos que já somos o Buda. Então, veremos que não há incompatibilidade entre nirvana e samsara, entre vazio e forma. Pelo Iogacara, o mundo da forma é apenas mente, ‘representação’. As formas são ‘formas de mente’. Tudo é mente. O mundo real não contém classes ou símbolos que signifiquem qualquer coisa além deles mesmos. Assim, não comporta nenhuma dualidade. Dualidade só surge quando classificamos, quando distribuímos as nossas experiências por caixas mentais. Classificamos assim que notamos diferenças, assim que fazemos associações de qualquer espécie. Dizer que o mundo é apenas mente, significa que exterior e interior, antes e depois, pesado e leve, agradável e doloroso, móvel e imóvel, trevas e luz, bem e mal, justo e injusto são apenas idéias ou classificações mentais.

‘Da mente brotam inúmeras coisas, condicionadas pela classificação, e as pessoas as aceitam como se fossem o mundo exterior’.

O Zen inverte o processo em que normalmente se encontra nossa mente; (pela meditação) detém a atividade da mente, deixa que as categorias de maya cessem, e que o mundo seja visto no seu inclassificado estado. O Zen é direto no modo de ensinar; aponta diretamente a verdade. Traz a sensação de que o acordar é perfeitamente natural e que pode ocorrer a qualquer momento. Se há alguma dificuldade é por ser demasiado simples. Acordar não é atingir coisa alguma; é perceber. E não há fases progressivas. Por isso procurá-lo é perdê-lo, pois o nirvana está aqui e agora, no momento presente onde temos de percebê-lo diretamente. E ninguém o fará por nós.

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‘Não te vicies no pensamento contemplativo, que é puro na sua natureza; mas persiste na bem-aventurança de ti próprio (pois já és o Buda) e cessa tais tormentos. O que quer que vejas, eis o que é, à frente, atrás, em todas as direções. Deixa que, já hoje, teu mestre ponha fim à ilusão! A natureza do céu é originalmente clara. Mas, mirando-o e voltando a mirá-lo, torna-se obscuro. ’ (na segunda mirada entra a interferência do ego e tudo se esvai).

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A mente acordada reage imediatamente (espontaneamente) sem qualquer cálculo. A idéia popular de que a salvação vem da prática de boas ações é desmentida na conversa do imperador Wu com o mestre Bodhidharma, vista anteriormente (e por Paulo: ‘não é por nossas obras que somos salvos, mas pela graça de Deus’). Por isso,

‘O perfeito Zen é sem dificuldade, salvo no evitar colher e escolher’. (Krisnamurti afirmou: ‘Aquele que escolhe é imaturo’).

E ainda:

‘Não sejas antagônico ao mundo dos sentidos, pois quando não lhe és antagônico, verificas ser ele o mesmo que o completo despertar’. (Não seja antagônico, isto é, aceite tudo que os sentidos lhe apresentam e não interfira, não julgue, não dê valores; tudo é apenas o que é).

Ou:

‘Tua mente é como um espelho de cristal. Tem o cuidado de o limpar constantemente, não deixes que a ele se prenda qualquer pó’ (qualquer pensamento, emoção imagem, lembrança, expectativa etc.; que tua mente, o espelho de cristal, apenas reflita o que está a sua frente; não julgue).

‘Mente e Buda (Deus, Cristo, samadhi, nirvana etc.) são uma só coisa, embora variem seus nomes’. Como, pois, usar a mente para buscar o Buda, se ela é o próprio Buda? Isso é usar o Buda para agarrar o Buda, usar a mente para agarrar a mente. Isso produz o efeito contrário, que é perder o Buda.

‘Quando o corpo e a mente obtêm espontaneidade (novamente, apenas veja, ouça, sinta, sem discriminação), o Tao é alcançado e a mente universal é compreendida’.

Ensinamento de Rinzai:

‘Não deixem suas mentes galoparem à doida em busca de algo que nunca perderam e que está mesmo à sua frente (está em você) neste preciso momento’.

‘Acordar é a coragem de ‘deixar acontecer’, com o convencimento inabalável de que o movimento natural, espontâneo do indivíduo (tudo que o indivíduo faz), é a mente de Buda’.

A dedicação ao budismo conceptual (de conceitos, doutrinas, teorias) e a obsessão dos alunos pelas etapas e fins a atingir são tratadas sem piedade pelo Rinzai que, com isso, visa à destruição dessas idéias:

‘Porque falo eu aqui? Apenas porque vós, seguidores do Tao, galopais à doida em busca da mente e não sois capazes de parar. Em contrapartida, os antigos avançavam de modo vagaroso, apropriado às circunstâncias (à medida que surgiam). Mas, vós, se não compreenderdes meu ponto de vista... os que tiverem completado as dez fases da sabedoria assemelhar-se-ão a anões, e os que tiverem chegado ao extremo acordar parecerão ter cangas ao redor do pescoço. Essas coisas são como uma latrina suja... ’



O Zen é particularmente enfático sobre a importância da vida ‘desafetada’ ou ‘natural’:

‘Não há lugar no Zen para o uso do esforço. Limitai-vos a ser comuns e nada mais. Aliviai as tripas, carregai água, vesti vossas roupas, comei vossa comida, repousai se cansados. Os ignorantes podem rir-se de mim, mas os sábios compreenderão... Quando as circunstancias se apresentam, não deveis tentar modificá-las (pois não se modificarão; sempre serão aquilo que devem ser). Assim, os vossos habituais modos de sentir, que produzem karma para o sofrimento, tornar-se-ão, por si próprios, o Grande Oceano da Libertação’.

Ou:

‘Fora da mente não há Buda e, dentro, nada existe para ser agarrado. O que é isso que buscais? Por todo lado dizeis que o Tao é para ser praticado. Se alguém o pode praticar, a única coisa que produz é karma’.



VAZIO E MARAVILHOSO

Palavras do mais antigo poema Zen:

‘O perfeito Caminho é sem dificuldade, salvo no evitar colher e escolher. Só quando deixas de gostar e não gostar, será tudo claramente compreendido. Uma diferença da espessura de um fio de cabelo e eis o céu e a terra separados! Se queres alcançar a verdade nua e crua, não te preocupes com o certo e o errado. O conflito entre o certo e o errado é a doença da mente’ (tudo está acontecendo como tem de acontecer).

A questão está em não fazer esforço para calar os sentimentos; e cultivar uma branda indiferença (relativamente aos fenômenos e acontecimentos, pois a escolha não é nossa; Krishnamurti: é necessária uma boa dose de humor e de indiferença frente aos acontecimentos da vida). A questão está em ver, para além da ilusão, que aquilo que é agradável ou bom não pode ser separado daquilo que é desagradável ou mau.

‘Quando todos reconhecem a beleza como bela, já há fealdade; quando todos reconhecem a bondade como boa, já há maldade (porque já há comparação, interferência do ‘eu’). Ser e não ser originam-se mutuamente; difícil e fácil são mutuamente descobertos; longo e breve são mutuamente contrastados; alto e baixo são mutuamente situados; antes e depois são mutuamente seqüentes’.

A conseqüência disto é ainda mais forte quando o que foi dito contraria a ilusão mais valiosa da mente humana: a de que, com o tempo, tudo se tornará cada vez melhor.

O Zen liberta do padrão dualista e de seu ponto de partida aparentemente sombrio; ressalta o absurdo da escolha (como o faz a física quântica), da opinião geral de que a vida pode ir melhorando através de uma constante escolha do que é considerado ‘bom’. A ilusão da melhora surge em momentos de contraste, como quando nos viramos dum lado para outro numa cama dura. A posição é melhor enquanto a sensação de contraste se mantém, mas, em breve, a segunda posição virá assemelhar-se à primeira. Compra-se uma cama mais confortável e, por algum tempo, dorme-se bem. Mas, a solução do problema deixa-nos na consciência um estranho vácuo, em breve preenchido pela sensação de outro intolerável contraste, que até aí não havíamos notado, e tão urgente como o problema da cama dura. Isso porque a sensação de conforto só é mantida em relação à sensação de desconforto, tal como uma imagem só é visível em relação a um fundo contrastante. Bom e mau, agradável e doloroso são tão inseparáveis, tão idênticos na sua diferença, como os dois lados de uma mesma moeda, que:

‘Puro é imundo, e imundo é puro. ’

Assim, a dualidade sujeito e objeto, observador e coisa observada, é tão relativa, tão interligada, tão inseparável como qualquer outra.

Deixar a ilusão de perseguir o bom não implica em cair na estagnação, uma vez que a situação humana é como a das ‘pulgas numa grelha quente’. Nenhuma alternativa é solução, porque a pulga que salta tem de cair, e a pulga que cai tem de saltar (nunca caímos na estagnação porque sempre estamos agindo como temos de agir, independentemente de nossa vontade ou decisão). Escolher é absurdo porque não há escolha. (Isto é real para todas as tradições místicas e, hoje, para a ciência quântica).

... Pergunta ao roshi: ‘Visto-me e como todos os dias. Como posso escapar de ter de vestir roupas e de ter de comer?’ O roshi: ‘Vestindo; comendo’... ‘Não compreendo’... ‘Se não compreendes, veste tua roupa; come teu alimento’. (tudo é o que deve ser, tudo é natural; não há fugas para a verdade; tudo é apenas o que deve ser).

Inquirido sobre como escapar do calor, o roshi aconselhou a dirigir-se a local onde não há frio nem calor. Ao pedirem que se explicasse, replicou: ‘No verão, suamos; no inverno, trememos’. Ou, como diz um poema:

‘Quando faz frio, juntamo-nos ao redor da lareira;

‘Quando faz calor, sentamo-nos à sombra dos bambuzais’.

(Não há como fugir daquilo que é). Não suamos porque faz calor; o suar é o calor. O fogo não espera pelo sol para ser quente; o vento não espera pela lua para ser frio. Em outras palavras: a experiência humana é tão determinada pela natureza da mente e seus sentidos, como pelos objetos externos revelados pela mente. Os homens sentem-se joguetes de sua experiência porque se separam ‘a eles próprios’ das suas mentes, pensando que a natureza da ‘mente-corpo’ é algo que lhes foi imposto sem sua vontade; que não pediram para nascer, que lhes dessem um organismo sensível para ser objeto de prazer e dor alternantes. Mas, o Zen quer que descubramos ‘quem’ é que ‘tem’ essa mente, e ‘quem’ foi que ‘não pediu’ para nascer antes que pai e mãe o concebessem.

... A idéia é mais apreensível que a realidade, e o símbolo mais estável que o fato. Daí a noção de um ‘ego’ que ‘tem’ uma mente, de um sujeito separado a quem sucedem experiências não desejadas. O Zen mostra que nosso ‘ego’ é apenas uma idéia, útil se for tomada pelo que é, mas desastrosa se for considerada (como sempre fazemos) como sendo nossa verdadeira natureza (identidade). A inabilidade, não natural, de um certo tipo de consciência do ‘eu’ nasce quando estamos cientes do conflito, ou contraste, entre a idéia que fazemos de nós próprios, e o sentimento concreto imediato de nós próprios.

Quando já não nos identificamos com a idéia de nós próprios (do ‘eu’), toda relação sujeito-objeto, conhecedor-conhecido, sofre súbita modificação. Torna-se uma relação real, uma unidade relacional em que o sujeito cria o objeto tanto quanto o objeto cria o sujeito. O conhecedor já não se sente independente do conhecido, nem da experiência; o experimentador é a coisa experimentada (o observador é a coisa observada). Por isso, a ansiedade (desejo) de extrair qualquer coisa ‘da’ vida, de conseguir algo ‘através da’ experiência, é absurda.

A consciência da separação subjetiva baseia-se na incapacidade de perceber a relatividade dos acontecimentos voluntários e involuntários. Essa relatividade é facilmente percebida observando nossa respiração. Leve mudança de ponto de vista faz sentir que ‘eu respiro’ ou que ‘isto me respira’. Sentimos que nossas ações são voluntárias quando vêm de uma decisão nossa, e involuntárias quando não. Mas, para que a decisão fosse voluntária, seria necessário que cada decisão fosse precedida de uma outra decisão de decidir; uma infinita progressão que, felizmente, não sucede. Parece que somos livres para decidir, porque a decisão ‘acontece’ (quando não, ficamos frustrados). Decidimos sem a menor compreensão de como o fazemos. Sinto que estou a decidir tudo que acontece, ou sinto que tudo, inclusive minhas decisões, está apenas a acontecer espontaneamente.



Sasaki falou:

‘Limpei a mente de todos os pensamentos, de todos os desejos, de todas as palavras e repousei na tranqüilidade. Senti-me um pouco estranho como se estivesse preste a tocar algum desconhecido poder... e Zapt! Entrei! Perdi as amarras do corpo físico. Estava dentro de minha pele, é claro, mas senti-me no centro do cosmos. Falei, mas minhas palavras haviam perdido o significado. Vi gente caminhar na minha direção, mas todos eram o mesmo homem; todos eram eu mesmo! Nunca, até então, eu conhecera o mundo. Acreditava ter sido criado, mas agora sei que nunca fui criado; eu sou o cosmos. Nunca existiu qualquer indivíduo chamado Sasaki’.



Livrar-se da diferença subjetiva entre ‘eu’ (o experimentador) e ‘minha experiência’ é descobrir a verdadeira relação entre eu e o mundo exterior (deste extraio minhas experiências). A identificação do homem com a idéia que ele tem de si próprio dá-lhe falso sentimento de permanência, porque essa idéia, baseada em memórias selecionadas de seu passado, que têm um caráter preservado e estável, é relativamente fixa. A convenção social encoraja essa fixidez porque a própria utilidade dos símbolos depende de sua estabilidade. Encoraja o homem a associar a idéia que faz de si próprio com funções simbólicas e imagens abstratas, dado que estas o ajudam a tornar essa idéia definida e inteligível. Mas, à medida que se identifica com essa idéia fixa, começa a ver a ‘vida’ como algo que passa por ele e o deixa para trás, cada vez mais depressa, à medida que envelhece, que suas idéias se tornam mais rígidas, mais cheias de memórias. Quanto mais tenta agarrar o mundo (a vida), mais o sente como um processo em movimento, impossível de ser agarrado.

‘Se observamos a costa quando viajamos de barco, sentimos que a costa se move e o barco está parado. Mas se olhamos para junto do barco, sentimos que este é que se move (tudo, no espaço-tempo, é relativo; nada é absoluto). Quando olhamos o universo em confusão de corpo e mente, temos a impressão enganadora de que nossa mente é constante. Mas se realmente praticamos (o Zen) e voltamos a nós próprios, percebemos o erro. O budismo não considera que inverno se torna primavera, nem que primavera se torna verão’.

O roshi tenta exprimir aqui a estranha sensação dos momentos sem tempo, que surge quando deixamos de resistir à corrente dos acontecimentos; a calma e auto-suficiência dos sucessivos instantes, quando a mente vai seguindo com eles e não tenta prendê-los. O roshi diz:

‘É apenas um grupo de elementos que se juntam para formar este corpo. Quando ele surge, apenas surgem esses elementos. Quando ele cessa, apenas cessam esses elementos. Portanto não digas, ‘Eis que surjo’, ou ‘Eis que cesso’. Assim acontece, também, com nossos pensamentos anteriores, posteriores e intermediários (e experiências): seguem-se uns aos outros sem estarem ligados entre si. Cada um é absolutamente tranqüilo’.



Ligada à persecução do melhor está a persecução do tempo, do futuro, essa ilusão pela qual somos incapazes de ser felizes sem um prometedor futuro para o ego convencional. O progresso em direção ao bom (ao melhor) é, assim, medido em termos de prolongamento da vida, num esquecimento de que nada é mais relativo do que nosso sentido de dimensão temporal. O medir o valor e o êxito em termos de tempo, e a insistente urgência de ter como certo um futuro prometedor, tornam impossível viver livremente tanto no presente como no prometedor futuro quando este chega, pois estamos sempre na expectativa de um futuro melhor ainda. Mas, nada há senão o presente eterno e, se não podemos viver nele, não podemos viver em tempo algum.

Esta é uma filosofia, não de olhar para onde se vai, mas de não dar tanta importância ao local aonde se vai (Krishnamurti: veja tudo com certa dose de humor e indiferença). A vida do Zen começa, pois, desiludindo a busca de fins que não existem realmente – o bem sem o mal, a satisfação de um ego que não é mais do que uma idéia, e o amanhã que nunca chega. Todas essas coisas são ilusões de símbolos que julgamos realidades e tentar alcançá-los é como querer atravessar a parede no lugar onde um artista pintou uma porta. Porque todas as idéias de aperfeiçoamento pessoal e de vir a ser ou a alcançar algo no futuro se prendem a uma imagem abstrata de nós próprios. Segui-las é reforçar essa imagem e o ego que é apenas ilusão. Nosso verdadeiro ser já é Buda, logo não necessita de aperfeiçoamento. Poderemos amadurecer no correr do tempo, e ninguém critica o ovo por não ter ainda se tornado uma galinha; nem um porco porque tem pescoço mais curto que a girafa. Daí, quando perguntaram a um roshi o significado do Budismo, ele disse:

‘Os ramos floridos crescem naturalmente, uns longos, outros curtos. Olha um comprido; olha um curto!’ (tudo é de acordo com a natureza; tudo, simplesmente, é o que é).

O ‘mistério’ (trabalho) do Zen, portanto, consiste em desviar nossa atenção do abstrato para o concreto, do convencionado para o real, do ego simbólico para nossa verdadeira natureza. Por isso, os mestres pouco falam do Zen; tentam nos fazer compreender a realidade tal como ela é. Se vemos esse mundo tal como é, vemos que não há nada de bom, nada de mal, nada de curto, nada de comprido, nada de subjetivo, nada de objetivo, nada de justo e nada de injusto, nada de certo e nada de errado. Não existe nenhum ego simbólico a ser esquecido, nem há necessidade de qualquer idéia sobre a realidade concreta a ser aprendida ou a ser recordada.

‘Só quando já não tiveres coisas na tua mente, nem tua mente nas coisas, estarás vago e espiritual, vazio e maravilhoso. ’

Ou:

‘Cada ação, cada acontecimento, cada pensamento, surge por si próprio do vazio como, da superfície de um lago tranqüilo, salta, subitamente, um peixe. ’ (Novamente o que Paulo ensinou: ‘não somos donos nem de nossos pensamentos; eles surgem e se vão independentes de nossa vontade’).

Somente quando percebemos que isto (tudo que sucede, tudo o que pensamos) é tão verdadeiro para o intencional como para o não intencional (espontâneo), é Zen. (Quando pensamos que decidimos, aquilo que chamamos ‘nossa decisão’, como tudo o mais, eventos, pensamentos etc., também surgiu do próprio vazio; saltando como um peixe).



SENTADO, TRANQÜILO, NADA FAZENDO.

O Zen nada aprecia mais que a espontaneidade (ou naturalidade), que representa o tom de sinceridade da ação que não é estudada nem planejada.

‘O homem soa como um sino rachado quando pensa e age com uma mente dividida em duas’, uma das partes separando-se para agir sobre a outra, para a controlar, julgar, condenar ou enaltecer. Mas a mente, a verdadeira natureza do homem, não pode se dividir em duas. Ela é

‘Como uma espada que corta, mas não pode cortar-se a si própria. Como um olho que vê, mas não pode ver-se a si próprio’.

Essa divisão ilusória é resultante do esforço da mente para ser ela própria e, ao mesmo tempo, ser a idéia que faz dela própria. Para pôr fim à ilusão, a mente deve deixar de agir sobre si própria, sobre a corrente de suas experiências, baseada nessa idéia de si mesma (de que existe um ego).

‘Sentado tranqüilamente, nada fazendo,

A primavera chega e a erva cresce por si própria. ’

Este ‘por si própria’ é o agir natural (espontâneo) da mente e da natureza, do mundo, como os olhos vêem por si próprios, os ouvidos ouvem por si próprios, e a boca se abre por si própria sem que os dedos a forcem.

‘As montanhas azuis são por si próprias montanhas azuis;

‘As nuvens brancas são por si próprias nuvens brancas’.

Ao enfatizar assim a naturalidade (tudo é de acordo com a natureza), o Zen ensina-nos que a ação espontânea é ‘atividade maravilhosa’ porque exclui qualquer idéia de raciocínio, propósito ou deliberação. Por isso, recomenda:

‘Ao andares, anda apenas; ao te sentares, senta-te apenas;

‘Acima de tudo, não te disperses’,

porque a qualidade essencial da espontaneidade é a sinceridade da mente que, por não estar dividida, não hesita, pois não escolhe entre ações alternativas. Logo, no Zen, é total a contradição de ‘tentar ser natural’, ou ‘naturalidade deliberada’, ou ‘sinceridade intencional’. Daí fugiu toda espontaneidade, do mesmo modo que, quando o homem pensa com muito cuidado e minúcia acerca da atitude a tomar, não consegue decidir a tempo de agir.

A mente está sempre dividida, pois sente que não devia fazer o que faz, e que devia fazer o que não faz; que não devia ser o que é, e que devia ser o que não é. Mais ainda, o esforço para estar sempre ‘bem’ ou ‘feliz’ é igual a tentar manter a temperatura ambiente sempre a mesma, tornando o limite inferior sempre igual ao superior, o que é impossível.

Essa identificação da mente com a imagem que faz de si própria é paralisante, pois é uma imagem fixa de algo que está sempre em movimento. Apegarmo-nos a ela é viver em constante contradição e conflito. Portanto: ‘ao te sentares, senta-te apenas... ’, não planeje, seja espontâneo. Por isso o Zen parece tantas vezes tomar o partido da ação contra a reflexão e por isso os roshi respondem instantaneamente e fora de toda premeditação às perguntas que lhes fazem. Assim, quando perguntaram a um roshi qual era o maior segredo do budismo, ele, sem hesitar, respondeu: ‘Pudim de maçã!’.

A tentativa de agir e ao mesmo tempo pensar sobre essa ação vem da identificação da mente com a representação que dela ela mesma faz. É como dizer: ‘Esta verdade é mentira’. É como, se estou me divertindo, me examinar para saber se estou mesmo me divertindo. Não contente por me sentir feliz, quero me sentir sentindo-me feliz, como para me certificar de que nada estou perdendo. Devemos nos entregar à ação sem olhar as conseqüências. Esta ação pode ser certa ou errada de acordo com os padrões convencionais. Mas, a verdade é que não podemos entender esta questão sem nos apercebermos de que não existe nenhuma outra forma de agir (a escolha não é nossa e, embora não pareça, tudo é espontâneo. Como diz o Zen: ‘Se compreendes, as coisas são assim; se não compreendes, as coisas são assim’).

O condicionamento social predispõe a identificação da mente com a idéia fixa que ele faz de si própria, do ‘eu’, como um meio de autocontrole, e daí resulta o homem pensar-se de si próprio como ‘eu’, o ego. O centro de gravidade mental vai da mente espontânea original para a imagem do ego. Depois disso, o próprio centro de nossa vida psíquica se identifica com o mecanismo de autocontrole. Torna-se então quase impossível discernir como poderá o ‘eu’ libertar o ‘eu-mesmo’, pois sou precisamente o meu esforço habitual para me agarrar a mim próprio. Todas as ações mentais são, então, intencionais, afetadas, insinceras.

Não posso ser intencionalmente intencional ou propositadamente espontâneo. Logo que se torna importante para mim o ser espontâneo, cresce a minha intenção de o ser. Mas, aí não há espontaneidade, pois há a intenção de ser espontâneo.

Subitamente compreendo que o meu querer é espontâneo, que meu próprio controlador – o ego – nasce do meu próprio não-controlador ou natural, isto é, tudo é espontâneo. Então, todas as maquinações do meu ego ficam em nada. Todas as maquinações não resolvem nada; são apenas esforços inúteis, pois sempre faço o que faria sem quaisquer esforços (isto é, sempre faço aquilo que tem de ser feito, queira eu ou não, mesmo que minha intenção seja outra). Verifico que é impossível não ser espontâneo porque aquilo que não posso deixar de fazer, faço espontaneamente. Mas se, ao mesmo tempo, estou tentando tentar controlá-lo, interpreto-o como uma compulsão. Então, com a compreensão daquilo que está exposto acima, como disse o roshi:

‘Neste momento nada te resta senão dar uma boa gargalhada’. (Porque tudo que fazemos, tudo que pensamos e tudo que pensamos que decidimos tinha de ser assim mesmo; tudo é espontâneo, como deve ser, embora nos pareça que não é assim).

Com essa compreensão a qualidade da consciência fica inteiramente modificada e ‘entro’ num mundo novo onde vejo, afinal, que sempre vivi. Assim que reconheço que minha ação voluntária acontece espontaneamente ‘por si própria’, tal como respirar, ouvir, sentir, estou finalmente livre da contradição de tentar ser espontâneo. E não há aqui nenhuma contradição porque ‘tentar’ é, também, ‘espontaneidade’.

A compreensão de que tanto o voluntário quanto o involuntário da mente são, de igual modo, espontâneos, põe fim imediato ao dualismo entre mente e mundo, conhecedor e conhecido, observador e coisa observada. O mundo novo em que me encontro adquire uma extraordinária transparência ou ausência de barreiras, fazendo com que se sinta, de algum modo, o espaço vazio em que tudo está a acontecer. Então se compreende que: ‘todos os seres estão no nirvana desde o inicio, que todo dualismo é falsamente imaginado’, ‘a mente comum é o Tao’. Por isso:

‘De um só golpe esqueci tudo o que conhecia!

‘De nada serve a disciplina artificial,

‘Pois, faça o que fizer, abro o antigo caminho’ (fazemos sempre exatamente o que tem de ser feito; não escolhemos, não decidimos).

Deixamos de tentar ser espontâneos ao percebermos que é desnecessário tentar, e então o satori pode acontecer (tudo é espontâneo).

Os roshi muitas vezes provocam o despertar por meio de um ‘truque’. Não respondem a uma pergunta e, quando quem os interroga se volta para partir, chamam-no subitamente pelo nome. O discípulo responde muito naturalmente ‘Sim?’ E então o mestre exclama ‘Aí está!’ (isso é espontaneidade).

Isso parece pura insensatez mas, segundo o budismo, a própria realidade não tem sentido, visto que não é um sinal a apontar para algo além dela (já que nada existe além dela). Chegar à realidade é entrar numa vida absolutamente desprovida de finalidade. Para o zen e o taoísmo, essa é precisamente a vida do universo, completa em cada momento e não necessita justificar a si própria nem procura nenhum mais além. Zenrin:

‘Se não acreditas, olha para Setembro, olha para Outubro!

‘As folhas amarelas caindo, caindo, a encher o rio e a montanha. ’ (isto é, tudo está de acordo com a natureza; nada deve ser forçado, pois não há o que forçar; tudo já é o que é e nunca podemos interferir).

Para o Zen, a vida sem finalidade nada tem de deprimente. Pelo contrário, sugere a liberdade das nuvens e dos rios da montanha correndo sem destino, e as flores dos desfiladeiros inacessíveis, belas mesmo que ninguém as veja, e o vai e vem do o mar lavando a areia, sem nenhum propósito.

‘Se és um verdadeiro homem, podes perfeitamente tirar o boi do

‘agricultor, ou arrancar a comida da boca de um esfomeado’.

Isto significa apenas que o Zen está além de uma ética cujas sanções se encontram, não na própria realidade, mas na convenção dos seres humanos. Quando tentamos universalizar (generalizar, tornar comum a todos), o ponto de vista de uma ética total, absoluta, isso torna a existência impossível, pois não conseguimos viver um dia sequer sem destruir a vida de alguma criatura.

Satori é a mente funcionando livre, sem estorvos, sem se dispersar entre alternativas, sem ter que parar para deliberar e ‘escolher’ (afinal, ninguém escolhe). A resposta a qualquer situação é tão instantânea (e espontânea) quanto o som que sai das mãos quando batemos palmas, ou como as faíscas de um isqueiro ao ser acionado.

Assim, quando um monge pára ante o inesperado da pergunta para, talvez, se lembrar para que lado gira a água, o mestre grita: ‘Não penses! Age! Assim...!’... e gira a mão no ar.

Em outras palavras, nosso organismo executa as atividades por mais maravilhosamente complexas que sejam, sem hesitação e sem deliberação (espontaneamente). O próprio pensamento se funda sobre todo o seu sistema de funcionamento espontâneo; por isso não há alternativa senão confiarmos completamente em nós próprios (pois sempre fazemos o que deve ser feito e tudo acontece como deve acontecer).

Libertamo-nos da contradição de ‘tentar ser espontâneo’ quando compreendemos que o ‘tentar’ é, ele mesmo, espontâneo.

O Zen não confunde espiritualidade com o pensar em Deus enquanto descasca batatas. Sua espiritualidade é, precisamente, descascar batatas (com total atenção ao que se está fazendo. Assim, quando lavares louça, apenas laves louça; quando chupares laranja, apenas chupes laranja. Nunca te disperses!).



‘Quando chega o momento de te vestires, veste as tuas roupas.

‘Quando tiveres que andar, então anda.

‘Quando tiveres que sentar, então senta-te.

‘Não mantenhas na tua mente um único pensamento relativo à busca do estado de Buda.

‘Os Budas são pessoas sem esses artifi cialismos.

‘O que falta à tua conduta neste preciso momento?

‘Que poderás acrescentar ao que já és?’

Por isto, diz um poema Zenrin:

‘Nada se pode comparar a vestir roupas e comer comida.

‘Fora disso não há Budas. ’







ZAZEN

A prática do Zen não é verdadeira enquanto se tiver um fim (um objetivo) em vista. O não haver um fim em vista é que leva ao despertar para a vida sem finalidade do eterno agora. O Zazen é a prática para se ver diretamente a realidade. É, simplesmente, uma atenção calma, sem julgamentos, sem comentários, ao que quer que aconteça aqui e agora. Essa atenção é acompanhada pela mais viva sensação de ‘não-diferença’ entre o praticante e o mundo exterior, mente e conteúdo, - os vários sons, formas e outras impressões do ambiente que nos rodeia. Naturalmente essa sensação não surge por desejarmos adquiri-la. Vem por si própria quando estamos sentados e atentos, sem qualquer propósito em mente, nem mesmo o propósito de nos libertarmos do propósito.

‘Procuramos, voltamos a procurar muitas vezes, mas nada conseguimos. Afinal, depois desistimos, e a resposta vem por si mesma’.

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Citação de Osho:

‘Você só encontrará Deus, quando você se sentir tão sedento ou tão faminto (de Deus) que fatalmente morrerá se não encontrar aquilo que procura.



Leia com atenção, analise profundamente, tente compreender.

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