quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O EGO É FONTE INTERMINÁVEL DE SOFRIMENTO E MISÉRIA

ROGER N. Walsh, M.D., PhD., catedrático de Psiquiatria na Universidade da Califórnia, autor de muitos livros de ciência da meditação e do cérebro, e Frances Vaughan, PhD., clínica e professora de psicologia do Instituto de Psicologia Transpessoal da Califórnia, autora de revistas científicas especializadas sobre o tema.


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A psicologia transpessoal (além da identidade e personalidade do ego) considera a pessoa por quatro dimensões: consciência, condicionamento, personalidade e identidade.

1) A consciência comum é um estado contraído e defensivo, invadido por um fluxo contínuo de pensamentos e fantasias “incontroláveis” (o filme emotivo-imaginativo, do Zen-Budismo), que estão de acordo com nossas necessidades e defesas para a sobrevivência. Assim, disse Dass: ‘Somos todos prisioneiros de nossa mente. Perceber isso é o primeiro passo para a libertação’. Enquanto o homem não o percebe, nada faz para se libertar.

É essencial para o crescimento da consciência ao extremo bem psicológico, abandonar tal contração defensiva, causada pelo ego, e perceber seu enorme potencial de ampliação, o que pode ser conseguido pela prática da meditação.

Satprem: ‘O que traz a revelação do segredo é o silêncio da mente. Na verdade, todos os tipos de descobertas ocorrem quando a mente pára, e a primeira descoberta é que, se o poder de pensar é um dom grandioso, o poder de não pensar é mais grandioso ainda’. As técnicas de meditação das tradições orientais sérias têm por objetivo exatamente a cessação do pensar, para que, cessando o pensar, a mente se livre de suas impurezas, esvazie-se de seus obstáculos e tenha condições de ver a ’Realidade’.

A afirmação de que nosso estado comum de consciência pode ser ampliado traz implicações inesperadas. Como já vimos, o estado comum de consciência do homem ocidental é idêntico à psicose. Nessa perspectiva, cada estado de consciência revela sua própria gama de realidades, podendo-se definir a psicose como um apego ou aprisionamento a ‘qualquer’ conteúdo da consciência, seja de qual nível for (exceto o nível da Mente pura, Deus, pois nesta, não há mais qualquer mal, obstáculo, doença, ou apego).

A realidade, tal como a conhecemos (sendo essa a única maneira pela qual a conhecemos), é apenas ‘parte’ da realidade. Ram Dass: ‘Crescemos num plano de existência, percepções e interpretações, que julgamos real. Identificamo-nos por inteiro com essa realidade, que consideramos absoluta e verdadeira, e descartamos as experiências incompatíveis com ela. O que Einstein demonstrou na física se aplica a todos os aspectos do universo: a realidade é relativa ao nível de consciência do observador. Cada realidade só é verdadeira dentro de determinados limites de consciência; não passa de uma versão possível do que as coisas são. Há sempre múltiplas versões da realidade. Despertar de uma delas é reconhecer sua relatividade’. (Só no nível da Mente pura a realidade é absoluta).

William James: ‘Nossa consciência desperta e comum é apenas um dos tipos de consciência; ao seu redor, separadas dela pelo mais fino véu, há formas potenciais de consciência que dela diferem inteiramente. Podemos passar pela vida sem suspeitar de sua existência, mas aplique-se a elas o estímulo necessário e, num instante, elas surgem em toda sua inteireza. Não pode ser completo o significado do universo em sua totalidade se não se considerar essas outras formas de consciência.’

Logo, a realidade que percebemos reflete nosso estado de consciência do momento, e jamais podemos explorar a realidade sem explorarmos, ao mesmo tempo, a nós mesmos, tanto por sermos como porque nós criamos a própria realidade que queremos explorar (conforme o misticismo e a física quântica).

2) Quanto ao condicionamento, a psicologia transpessoal afirma que nele estamos totalmente presos, mas que a libertação é possível. Estamos presos principalmente ao apego, o que significa que a não-realização do desejo (ao qual nos apegamos) produzirá sofrimento. Logo, o apego tem papel crucial na causa de toda infelicidade do homem, sendo o abandono do apego fundamental para a cessação do sofrimento (‘...e a verdade vos libertará’).

Dass: ‘Associar-se ao apego traz interminável sofrimento e miséria’.

Jung: ‘Enquanto estivermos apegados, estamos possuídos, e, quando estamos possuídos, existe algo mais forte do que nós, que nos aprisiona’.

O apego não é só a objetos externos ou pessoas. Há apego às posses materiais, a relacionamentos especiais, à condição social, à auto-imagem particular, a padrão de comportamentos e a processos psicológicos (modo de pensar, crenças, suposta realidade etc); entre os apegos mais fortes estão o apego ao sofrimento e à falta de valor próprio.

Enquanto acreditarmos que nossa identidade nasce de nossos papéis, problemas, relacionamentos ou conteúdos da nossa consciência, o apego será reforçado para fins de sobrevivência pessoal, porque acreditamos que dependemos deles: ‘Se abandono meus apegos, quem serei e o que serei?’

Há também apego ao drama ou história pessoal que cada um tem para contar aos outros sobre si mesmo; é um luxo desnecessário, parte de nossa bagagem emocional. É benéfico para todos desapegar-se de seu drama e dos dramas pessoais dos outros (das emoções, portanto).

3) Quanto à identificação, define-se como o processo pelo qual alguma coisa é vivenciada como o ‘eu’. E é tamanha nossa identificação que jamais questionamos aquilo que tão claramente parecemos ser. Toda tentativa de questionar nossa identificação pode encontrar considerável resistência de nós mesmos e daqueles que nos rodeiam.

Laing: ‘As nossas tentativas de despertar costumam ser punidas, especialmente pelos que mais nos amam, porque eles, abençoados sejam, estão ‘dormindo’ e pensam que quem desperta, ou percebe que o que considera realidade não passa de um sonho (ilusão), está ficando louco’ (‘A sabedoria de Deus é loucura para os homens’, disse Paulo).

A nossa identificação com nosso conteúdo mental torna-nos inconscientes do nível de consciência mais amplo que contém esse conteúdo; o conteúdo da mente passa a ser o crivo pelo qual interpretamos todos demais contextos. Por exemplo, se o pensamento ‘estou com medo’ surgir e for tomado pelo que é, ou seja, apenas um pensamento, pouca influência terá. Mas, se nos identificarmos com ele (se ele passar a ser nosso conteúdo mental), a realidade, nesse momento, será o nosso medo (Krishnamurti: somos o medo, a violência, a raiva, a inveja etc) e nós, muito provavelmente, geraremos uma série de pensamentos e emoções de medo, e nos identificaremos com eles; interpretaremos os mais indefinidos pensamentos como medo; perceberemos o mundo como algo ameaçador e agiremos de acordo.

A identificação põe em movimento um processo auto-realizador no qual os processos psicológicos tornam válida a realidade daquilo com que nos identificamos. Tudo parecerá provar a realidade do nosso medo. Ao se identificar, a pessoa não percebe o fato de que sua percepção vem do pensamento ‘estou com medo’. Não percebemos esse pensamento, mas passamos a interpretar todas as coisas a partir dele. A consciência passa a ver o mundo de uma forma limitada e auto-validadora. ‘Enquanto estivermos identificados com um pensamento ou objeto, somos seus escravos, não somos livres’. (Por isso, Jesus disse: ‘Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará’).

Quando nos lembramos de que nossa mente está sempre repleta de pensamentos com os quais, sem perceber, nos identificamos, fica evidente que, no estado comum de consciência, estamos, literalmente, hipnotizados. Como na hipnose, o indivíduo não percebe o transe em que está, nem as limitações impostas à consciência, nem se recorda de sua identidade anterior. Enquanto hipnotizados, pensamos que somos aquilo que nossa mente contém, o conteúdo mental, os pensamentos que ali estão. Assim, os pensamentos com os quais estamos identificados criam o nosso estado de consciência, de identidade e de realidade. (Por isso, disse o Buda: ‘Somos o que pensamos. Tudo o que somos vem de nossos pensamentos. Com eles vemos e interpretamos o mundo’).

Suzuki: ‘O que é consciente e o que é inconsciente está subordinado à estrutura da sociedade e aos padrões de pensamento e sentimento que ela produz. O efeito da cultura da sociedade não apenas canaliza ilusões para a nossa consciência, mas também evita a percepção da realidade... Esse sistema funciona como um filtro social condicionado; a experiência só chega à nossa percepção se puder passar por esse filtro’ (se estiver de acordo com os costumes e cultura da sociedade em que vivemos).

Pode-se, assim, considerar a tarefa de despertar como uma progressiva desidentificação do conteúdo mental em geral. Isso é bem evidente nas práticas como a meditação de percepção, em que se treina para observar e identificar, com rapidez e precisão, todos os conteúdos mentais. É um lento processo de gradual aperfeiçoamento da percepção que resulta em retirar a consciência dos conteúdos mentais cada vez mais profundos e sutis com que ela se acha identificada. No final, a percepção deixa de identificar-se com qualquer coisa, fato que representa uma mudança radical e duradoura da consciência, conhecida como iluminação. Como já não há identificação com qualquer coisa, temos a percepção como sendo, ao mesmo tempo, nada e tudo. A dualidade eu/não-eu é transcendida, e tem-se uma vivência de si mesmo como sendo, ao mesmo tempo, percepção pura (nenhuma coisa) e como sendo todo o universo (todas as coisas), dando lugar à transcendência do ego e do espaço-tempo.

Nos níveis mais sutis da percepção, atingidos por meditação de percepção, vê-se toda a Mente e, portanto, todo o universo fenomênico, em contínuo movimento e mudança; cada objeto é percebido vindo do vazio para a percepção e desaparecendo em seguida, em instantes, no vazio (Paulo: ‘não somos donos nem de nossos pensamentos’). Isso mostra a impermanência de tudo; tudo se transforma, tudo é transitório, nada é imutável. Perceber isso pode ser a maior força que motiva os meditadores avançados para transcender todos os processos mentais e alcançar o estado imutável e incondicionado que é o nirvana, satori ou iluminação (foi pela percepção da impermanência de todas as coisas que o Buda fundou sua filosofia).

Nesse estado de pura percepção, não há mais identificação com a mudança, pois não há mais identificação com conteúdos mentais. Como o tempo é função da mudança, isso resulta na experiência de se haver transcendido o tempo, fato que é experimentado como eternidade, o agora sem fim, e o tempo é percebido como produto ilusório da identificação.

Silesius: ‘O tempo é nossa criação. Quando se pára o pensamento, também o tempo pára, morto’.

Os conteúdos e processos mentais vêm do condicionamento, como afirmam as psicologias ocidentais e orientais. A identificação com esses conteúdos gera a experiência de um ‘eu’ condicionado. Transcendida essa identificação, cessam os efeitos do condicionamento e com isso, cessa o ‘eu’ (que nada mais é que um feixe de memórias, os conteúdos da consciência com os quais nos identificamos). Pensamentos e emoções ainda passam pela mente, mas não há identificação com eles, e vivencia-se uma percepção de bem-aventurança porque, não havendo identificação com pensamentos e emoções dolorosos, não há mais experiência de sofrimento (pois, a causa do sofrimento é a identificação ou apego aos conteúdos mentais dolorosos).

Sem condicionamentos, fica-se livre das identificações com conteúdos inconscientes distorcedores e restritivos, e a consciência é capaz de uma percepção clara e precisa que, no budismo, se chama ‘espelho de cristal’, porque ele reflete fielmente a realidade. Sem identificação, o espelho e aquilo que ele reflete, o sujeito e o objeto, são percebidos como uma coisa só. A consciência, agora, é percebida como sendo aquilo que antes ela observava (Krishnamurti: o observador é a coisa observada), pois o observador ou ego, produto ilusório da identificação, deixa de ser vivenciado como real. O indivíduo se vê como consciência pura em unidade com tudo, idêntico a qualquer outro indivíduo. Vem daí a afirmação mística de que ‘todos somos um’, e não mais ocorrem pensamentos que possam ferir os ‘outros’. Amor e compaixão são expressões naturais desse estado.

Todos os relatos de experiências nesse estado deixam claro que elas só ocorrem em momentos em que se vai além do ego (o ego cessa com a perseverança nas tentativas de meditação). Como a comunicação entre diferentes estados de consciência é difícil, as descrições em geral são incompreensíveis na visão da psicologia ocidental. Assim, é fácil rejeitar essas experiências sem qualquer análise, considerando-as sem sentido ou patológicas, erro cometido por alguns dos mais notáveis profissionais de saúde mental do Ocidente.

Nesse estado, a pessoa se vê como pura percepção, incondicionada, eterna e, também, experimenta ser tudo o que existe. Nas profundezas da psique humana, cessadas as identificações limitadoras com os conteúdos mentais, a percepção não encontra limites à sua identidade e se percebe como aquilo que está além do espaço e do tempo, aquilo a que a humanidade deu o nome de Deus (‘eu e o Pai somos um’). Por isso, afirmou Bugental: ‘Para mim, Deus é uma palavra usada para indicar nossa subjetividade inefável, o potencial indescritível e inimaginável que está dentro de cada um de nós’.

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